Bavarois escrita por Petit Ange


Capítulo 44
Capítulo LIII




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LIII

 

A chuva continuava caindo lá fora quando abri os olhos, interrompendo a escuridão que trazia apenas quando chegava perto da luz de ouro derretido que as labaredas deixavam, bem como os trovões que, ora ou outra, cavalgavam em direção a terra, deixando para trás um rastro de som estridente e furioso.

Tão logo me percebi desperta, também vi que estava, como o prometido, nos braços de Mitchell. As lembranças das últimas horas ainda envolviam-me, como aquela doce exaustão que insistia em arrastar-me para a inconsciência. Porém, percebi que já não estava assim com tanto sono. Ainda era madrugada, pensei, e não podia simplesmente acordar num horário assim.

Numa decisão automatizada, vi que, talvez, se eu fosse ler um pouco, o sono voltaria (ainda mais se fossem aqueles textos litúrgicos e irritantes).

Tão logo veio a inspiração, desfiz-me do abraço que me mantinha colada ao seu corpo, lentamente para não despertá-lo, e passei-lhe os dedos delicadamente pelo rosto, numa breve carícia, uma última vez. Procurei minhas roupas, abandonadas ao chão há algum tempo, e percebi que elas já não me aqueciam devidamente. A chuva trouxe consigo uma corrente de ar frio que ultrapassava a barreira da janela e fazia tilintar até as paredes.

Deslizei silenciosamente pelos corredores escurecidos, iluminados esporadicamente pelos raios que caíam, alguns com sons ensurdecedores. Se eu fosse uma menininha covarde, certamente estaria encolhida num canto com uma tempestade daquela envergadura.

Entreabri a biblioteca, a porta rangendo naturalmente, e entrei. A vela em minha mão iluminou o local.

Salpicando a biblioteca grandiosa, os montes de livros estavam todos ali, esperando-me. Capas de todas as consistências, de todas as cores, grossuras e até mesmo as folhas de papel tinham tons em sépia diferentes uns dos outros. Quando a luz argêntea de um raio inundava em um clarão temporário o local, os livros pareciam, se possível, até mesmo terem se multiplicado, como num milagre bizarro de peixes e vinho.

À luz de minha eterna fixação por aquele lugar em especial da casa, todas aquelas obras pareciam-me uma confraria secreta de anciãos, todos cheios de conhecimentos e promessas de mundos secretos; todos desejando seduzir-me com suas retóricas e belas palavras.

Escolhi, tão logo pus meus olhos neste exemplar, “Hamlet”. E então, sentei-me ao divã escarlate, abrindo na primeira página de leitura.

Distraidamente deixava-me arrastar por aquelas linhas, a alma do livro sugando a minha própria aos poucos. Imaginava que, se não ficasse com sono até o fim, então já teria amanhecido, talvez, até lá (nunca mais deixar Mitchell exceder-se antes da hora do jantar, anotei mentalmente. Iria sempre perder meu sono antes da hora, se fosse assim). Em todo caso, continuei.

Porém, ao deixar a mente vagar pelo resumo do dia, enquanto Hamlet descobria o fantasma do pai que lhe inspirava idéias de vingança, lembrei, nunca saberia dizer porquê, de uma frase peculiar que o próprio lord Sunderland me dissera, e que seu sorriso de troça sequer percebeu e ocultou.

E nem preciso de uma câmara nos subterrâneos para isso”.

Talvez fosse essa a sensação de incômoda latência, como se o corpo estivesse em um modo de alarme imperceptível para o cérebro, que eu tanto percebi.

Aquela frase, desde o início, inspirou-me algo, mas não sabia dizer o quê. Pensei ser apenas a diversão embebida de sensualidade, talvez apenas o conteúdo... Não. Ao deixar minha mente, perigosamente, vagar ainda mais por todos os caminhos que aquela única frase me dava, eu lembrei de Emma.

E, então, meu pai agarrou-me pelos cabelos e me jogou na mesma prisão onde o Mitch esteve. As mesmas bonecas, o mesmo odor...”.

Uma câmara nos subterrâneos.

Uma prisão subterrânea.

Sim, era até mesmo uma conclusão onde a própria Victoria Barrington havia chegado, mas nunca acreditei piamente nisso. Só agora, talvez porque tivesse feito um pingo de sentido, pensei nas construções da própria cidade.

As mansões das Quatro Famílias, possivelmente, estavam de pé desde tempos imemoriais, talvez, desde a fundação de St. Helens.

Naquele tempo...

Não era incomum alojamentos subterrâneos. Até hoje, em certos estabelecimentos, continuam existindo os mesmos”.

Quem sabe, nas casas mais antigas, podiam existir abrigos contra furacões, desastres inerentes à natureza. Sim... Talvez, até mesmo no centro da Polícia, podia muito bem existir prisões no subsolo.

...A polícia?

Shelser?

Não tente me enganar, Mitchell. Você jamais saiu de St. Helens. Esteve por todos os dez anos preso aqui, em algum lugar!”.

...Nos subterrâneos da mansão Shelser?

Antes que eu pudesse me mover, pregada àquele divã como Jesus Cristo esteve numa cruz de madeira, ouvi o som da porta entreabrindo-se.

Sentindo as mãos cobrirem-se de suor frio, virei o rosto, rezando para que fosse apenas o vento.

Vi quando um imenso vulto precipitou-se sobre mim.

E depois, não vi mais nada.


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