Exit escrita por Relinked


Capítulo 11
Capítulo 10


Notas iniciais do capítulo

Obrigado à Tri, por uma hora de revisão
E obrigado ao Bio, por críticas construtívas (ou não)



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Toda uma frota de bolachas-do-mar, brancas, engomadas e ensandecidas, ouvia pacientemente, batendo continência de quando em quando (mesmo sem possuir mãos), a ladainha continuada que saía da boca de Yuri e que durava, no presente momento, duas horas. A forte admiração pela baixinha arrogante - e todos os milhares de favores que na verdade haviam apenas sido conversas psicologicamente estruturadas para parecerem favores - impedia que os seres vivos que não pareciam aparentar vida se não pelos montes de membros movendo-se saíssem dali e fossem tomar um café em alguma cafeteria badalada no fundo do mar enquanto ouviam alguma banda nova e Cult que começasse com “The”. Estavam dispostos a largar todo o conhecimento que haviam ganho lendo livros e mais livros sobre guerra em uma batalha contra um único homem. Tudo porque uma garota extremamente mimada e sentada sobre uma bóia em forma de banana amarelo berrante nada confortável pedia. E fariam mais, até, se ela olhasse para eles com aquela cara que diz muito claramente quem manda em toda aquela corja.

Seres submissos, de qualquer forma, que ouviam pacientemente, sem questionar, o plano incrivelmente mirabolante e com poucas possibilidades de funcionar que Yuri planejara, tendo esse incluso, dentro de si próprio, outros planos (b e c) e até mesmo ordens para imprevistos que por serem curtas de mais e objetivas de mais não eram consideradas um novo plano.

- ... e, caso cheguemos lá e o ser humano tenha degolado todos os sapos que se atreveram à olhá-lo nos olhos e coaxar em seguida, poderemos comemorar e nos preocuparmos menos. Ele é um assassino em potencial capaz de matar mais de dois milhões de soldados, como esse meu lindo exército de seres marinhos. Mas lembrem-se: - acrescentou Yuri, depois de um falatório que daria sono até mesmo se as bolachas-do-mar tivessem ido tomar o café, numa pausa triunfal de efeito que faria até mesmo Raphael cogitar se seus métodos de destaque são bons o bastante – Somos dois milhões e um, contando comigo. – fez mais uma rápida pausa – Dois milhões e dois, contando com o Zé Lagosta, apesar de ele valer apenas meio.

E, após uma enxurrada de urros que nem mesmo algum rei espartano que tenha ganhado uma guerra com diferença numérica absurda poderia ser capaz de provocar, todas as bolachas-do-mar, ouriços-do-mar e mais outra infinidade de animais que têm nomes terrestres e um sufixo pouco criativo no fim do mesmo saíram em disparadas pela porta da frente do castelo, dirigindo-se à praia numa explosão de bolhas de ar que parecia transformar o oceano em um grande milk-shake azul.

Mais uma vez sobre o balão, agora decidido que o ato de colorir o mundo não levaria muito mais que um dia, Alec olhava emburrado as montanhas formosas se inundarem de cores belíssimas. Melanie, que por precaução não dissera mais nada depois do seu show dentro da caverna, achava que o monólogo tinha sido uma boa arma e funcionou perfeitamente, principalmente com a repentina entrada do urso feroz dono da caverna em cena. Sabia que, para Alec, seu orgulho ferido acabava sendo um ótimo combustível, e a vontade de “se mostrar importante” e até mesmo “útil” o fariam levantar, curar a própria perna, encher o balão, destruir qualquer bicho de pelúcia que se atrevesse a cruzar seu caminho e, de quebra, preparar uma deliciosa torta de maçã, que se encontrava no fundo do balão, com apenas dois pedaços faltando. Ambos haviam comido, sem falar, sem se olhar, sem comentar, sem descuidar, sem confraternizar, sem melecar, sem lambuzar e sem sujar. Enfim, tinham perdido toda a parte boa que uma deliciosa torta de maçã pode providenciar, apenas pelo fato de que haviam, de forma estranha, brigado. Alec por ter se ofendido profundamente com o que Melanie tinha dito, achando que jamais perdoaria a garota por tais insolências e, a muito custo, mantendo pensamentos violentos e cortantes envolvendo-a longe de sua mente agora incrivelmente fértil para os mesmos. Ela, por estar farta da grande manha que ele vinha fazendo, quando no fundo ele tinha absoluto poder para resolver qualquer um dos problemas que haviam aparecido, e por achar – corretamente, diga-se de passagem – que ele tentaria provar para ela que não era nenhum lixo tóxico que servia apenas para feder quando alguém mexia.

O balão amarelo voando por entre as planícies era incrivelmente bem humorado para toda a situação, que estava agora, surpreendentemente, em dissonância e contra todo o processo. Enquanto Alec sentia-se pressionado, inferiorizado e desacreditado, com o orgulho ferido e uma vontade enorme de deixar os pensamentos raivosos e todas as lâminas que ele não sabia de onde viriam acertarem Melanie, o céu era uma azul tão límpido que, mesmo que ele quisesse realmente ser tão límpido e azul não conseguiria. E o sol parecia convidá-los para um grande passeio na praia, com guarda-sóis de cores quentes e gritantes fazendo sombra sobre a areia branca. E a brisa brincava nos cabelos de Alec, dançando suavemente como uma ótima bailarina que treina desde os sete anos de idade e que muito possivelmente se aposentará em mais uns três, dedicando-se então a destruir a vida – e os dedos dos pés – de outras crianças de sete anos.

Destoante de mais, aliás, e Alec passou então a esquecer pensamentos e reparar nesse detalhe. Meio perplexo esqueceu-se momentaneamente de fazer o vento seguir conforme mandava e, reparando em todo o espetáculo, virou-se para Melanie:

- Não devia estar... chovendo, ou algo assim? – perguntou, em tom de dúvida, mas ainda assim sem esconder alguma raiva que sobrara em seus insultos contidos.

- Não. – respondeu ela, seca, sem emoção.

- Pensei que variasse conforme os meus sentimentos... – começou ele, agora decididamente na dúvida, mesmo com a raiva ainda a açoitar-lhe o cérebro.

- Variam. E essa sua raiva, nada mais é, do que o sentimento de felicidade em provar que eu estava errada. Um “Errou, otária!” que você está segurando há horas. – disse, olhando pra ele com cara de indiferença.

Alec murchou. Percebeu que ela estava certa e disse o que ele realmente queria dizer. E percebeu, também, que tinha feito por vingança, pra contornar seu orgulho ferido. Imaginou até se não tinha feito o urso verde-musgo aparecer na caverna apenas para calar-lhe a boca e mostrar para Melanie que era capaz.

Foi surpreendido, todavia, por uma súbita lufada de vento bailarino que, além de levar seus pensamentos pra longe, levou também o balão, dessa vez para cima de um grande edifício cinzento que era cercado por muros e que expelia, pela porta da frente, convidados aristocratas e sapos desmaiados e corroídos.

Cantarolando calmamente uma música que com algum esforço poderia se tornar um grande hit em algum lugar estranho do mundo como, por exemplo, a França, Raphael caminhava, arrastando a porta do guarda-chuva fechado no chão, acompanhado de perto por Kellyn, Erick e Rod, que parecia pretender desmontar a qualquer momento e carregava, com sufoco, o cano de metal. Haviam abandonado Takeso e a sapa verde – que ele disse se chamar Dayse – na esperança de resolver logo o problema e sair de lá o mais rápido possível. Haviam parado muito tempo, enquanto Raphael bufava impacientemente e olhava o relógio de ouro do bolso, para esperar a sapa acordar com os tapas insistentes de Takeso em seu rosto. Ela havia sangrado um pouco com a pancada, e ele tinha quase certeza de que ela só acordaria por mágica – coisa que Raphael se negou a fazer. Continuou, portanto, pacientemente esperando e desejando que ela voltasse a si, enquanto os outros quatro o abandonavam.

Raphael parecia mais frio que o normal, cantarolando e deixando montes de pegadas no chão lustroso e por vezes emborrachado da fábrica. Rod permanecia a uma distancia que considerava segura, normalmente atrás de Rod, que se quer se atrevia a perguntar qualquer coisa para o cara de cartola. Kellyn, porém, andava quase ao lado dele, sem aparentemente medo, o cano pronto para desferir um ataque se necessário. Ela já não suportava mais estar submissa a toda essa história, queria logo resolver o assunto, encontrar Alec, e arranjar um jeito de sair dali, de preferência antes do próximo jantar. Começava a pensar o que sua mãe poderia estar fazendo, lembrando-se que amanhã seria segunda-feira (isto é, se não tivesse perdido a noção do tempo) e que, há poucos dias atrás, tinha ido ao shopping jogar boliche e gastara mais dinheiro do que deveria. Seguira o conselho de Erick e comprara um jogo numa loja velha e, então, sem muitas explicações, estava metida numa guerra de sapos e homens de cartola.

Estacou, deixando o braço que segurava o cano pender, e, com isso, provocando um estalido ecoante no corredor deserto de piso de concreto. Rod, que estivera olhando para trás por um bom tempo, assustou-se e correu mais pra perto de Erick, que ao menos para ele, era a única segurança que o grupo tinha, e agarrou-lhe a jaqueta com a mão livre. Raphael não parou, continuando a cantarolar e caminhar, ignorando o estampido ensurdecedor que ocorrera ao seu lado.

Kellyn, lentamente, virou-se para Erick, que estacara também ou vê-la parar. Olhou fixamente para ele, seu cérebro tentando analisar a conclusão absurda que havia chegado, tentando, de alguma forma, provar para si mesma que estava certa, apesar da falta de argumentos. Precisava culpar alguém, e já havia escolhido o infeliz:

- Foi você! – berrou, erguendo de novo o cano e segurando-o com as duas mãos.

Avançou para Erick que, chocado e aterrorizado, ouviu barulhos de passos misturados à cantoria de Raphael, que caminhava para o fim do corredor ignorando a confusão. Olhou para Kellyn e, apenas por sorte, muito provavelmente, resolveu numa briga civilizada com o cérebro que deveria abaixar. E, graças a essa vitória rápida sobre seu próprio órgão, escapou de um impacto que possivelmente levaria grande parte da sua caixa craniana.

- Você tá louca?! – gritou Erick em resposta, sem erguer o cano, tentando recuar.

- Era o que você queria, não era?! – berrou Kellyn em resposta, erguendo o cano mais uma vez, enquanto Erick tropeçava de costas em Rod.

- Do que você está falando?! – continuou Erick, confuso, se desvencilhando de Rod e recuando pelo corredor, quando Kellyn se aproximava com um olhar acusador.

- Você queria vir para cá, não era?! – gritou ela, e desferiu um golpe meio às cegas que acertou a parede – Queria vir aqui, e por isso precisava de mais três idiotas pra sua brincadeira, não é?!

- Pára com isso! – berrou Erick, ainda sem erguer o cano, ouvindo a cantoria se distanciar...

- Queria vir buscar essa toupeira aí! Maldito! – berrou ela enlouquecida, tão estridente que eles deixaram de ouvir a cantoria por uns segundos enquanto a frase ecoava no corredor e Kellyn erguia, mais uma vez, o cano.

- Pirou?! – gritou Erick, recuando mais rapidamente pra evitar o próximo golpe – De onde veio tudo isso?!

- Não adianta se fazer de idiota! – berrou ela, com mais força, e desferiu, sem piedade, o golpe que acertou finalmente Erick.

Não acertou onde ela pretendia, todavia. Quebrou-lhe o braço direito, no qual ele segurava o cano, e uma dor lancinante fez com que Erick caísse de joelhos no chão. O que Kellyn não esperava nesse momento fatídico onde ela achava ter descoberto um motivo pra tudo, era que outro cano a acertasse nas pernas. Incapaz de erguer o cano muito mais além por ainda estar em choque com toda a situação, mas decidido a proteger Erick, Rod agira. Assim que Kellyn caiu, as pernas doendo mais do que ela já sonhara, Rod se jogou sobre ela e puxou seu rosto pelos cabelos.

- Agora você vai explicar – disse Rod, ofegante – o porquê disso tudo. E vai esperar ele dizer o que quer que tenha pra dizer, também.

Indignada com sua nova posição, olhando para Erick caído de joelhos à sua frente, com uma expressão de dor angustiante e segurando o braço direito com a mão esquerda, Kellyn percebeu que, finalmente, depois de todo o estrondo, já não ouvia mais a cantoria de Raphael.

Ainda fitando o sorriso radiante da mãe de Kellyn, o pai de Kellyn permaneceu sem reação quando ela levantou o braço e tocou-lhe o rosto, sentido seus dedos roçarem sua barba sem fazer a três dias que pedia por clemência, implorando para abandonar uma cara tão ridiculamente feia e unir-se aos montes de cabelos que abandonavam sua cabeça e juntavam-se ao pente para, depois, fazerem uma festa badalada no cano da pia do banheiro. Festas essas que durariam a noite toda, não fosse o fato de a água da torneira expulsá-los do cano.

Sorrindo, ainda, a mãe de Kellyn repetiu o seu desejo inesperado de ir para o Japão e, então, fechou os olhos mais uma vez, parecendo cair num sono sagaz que lhe traria boas maneiras de arranjar uma pequena fortuna para comprar passagens aéreas para o país asiático e esquisito que ela nunca dera muita bola. Afagou carinhosamente o braço de seu ex-marido e assim permaneceu até ele soltar-lhe a cabeça de súbito, fazendo-a bater na escada e exclamando, em seguida:

- O que deu em você?! – perguntou, e, logo depois de gritar o nome dela, exclamou espantado – lembra de mim?

Sentando na escada mesmo, um pouco menos bem humorada do que estivera alguns segundos antes, a mãe de Kellyn olhou para ele, sorrindo com uma cara que pretendia parecer brava, e disse:

- Amor, você sabe que eu não sou masoquista. – e, dizendo isso, chegou absurdamente perto do rosto dele, podendo ver cada mínimo defeito na sua pele incrivelmente deplorável.

A razão, por não pretender presenciar o momento mórbido e deplorável que se seguiria e que ela já havia presenciado no dia do casamento de duas pessoas tão extremamente diferentes, foi embora e, com isso, os dois se beijaram em paz. Não exatamente em paz, por que a escada continuava a suportá-los, agora pensando se não seria muito mais confortável ir para o sofá ou mesmo permanecer em pé, já que seus degraus não eram agradáveis de se escorar. Suportando-os, imaginou se a mãe de Kellyn realmente não era masoquista, por que ser pressionada contra vários degraus de uma mesma escada devia doer bastante, mas ela parecia estar adorando. Aliás, uma samambaia observou, não parecia tão feliz desde quando colocara aquele novo CD da Madonna pra tocar e colocou também um collant rosa cheio de lantejoulas que ela um dia usara para disfarçar-se de Drag queen num desses bailes que ela sempre teve vontade de dançar. Por sinal, a casa inteira agora se perturbava com o nível incrível de felicidade que a mãe de Kellyn chegava sobre a escada, agarrada à camisa molhada do pai de Kellyn, se quer comparável à qualquer outro momento que ela passara ali, incluindo nessa conta todas as vezes em que atirara algo com a disposição de machucá-lo. Nem quando ela soubera que ganhara o panettone de vinte quilos, ano passado, no hipermercado da avenida, estivera tão repentinamente alegre. E olha que ela adorava, de verdade, panettones.

Caminhando por corredores emborrachados, Raphael ainda arrastava o guarda-chuva e cantarolava a mesma música. Ainda havia dejetos fecais caindo de seus sapatos a cada passada, deixando enormes pegadas no chão. Ele olhava dentro de cada porta, mas de maneira indiferente, como se apenas estivesse escolhendo qual seria uma boa sala para se pintar de branco e ilustrar o teto com pinturas barrocas.

Subiu uma escada, duas, três. Há algum tempo já não ouvia a discussão fervorosa que se iniciara há poucos minutos, e que ele preferira ignorar. Voltaria para eles depois de eliminar, com as próprias mãos se fosse necessário, o idiota de smoking branco.

Depois de passar por pelo menos sete corredores, ouviu uma porta abrir. Não parou de cantar e, momentos depois do que pareceu uma hesitação, a porta pela qual acabara de passar se fechou não muito silenciosamente. Ele deu meia-volta, tocou a maçaneta com carinho, segurou-a firmemente e, em seguida, girou-a, vendo pela porta uma sala inteiramente branca, com pinturas barrocas ilustrando o teto, e um homem de smoking e cartola brancos e franja sobre o olhou o observando, segurando a tesoura com as duas mãos. O travesseiro permanecia caído ao lado.

As centenas de querubins e anjinhos celestes que os observavam do teto pareciam estar ali propositalmente para verem como se desenrolaria a cena, e Raphael achou ótima a idéia de ter uma platéia mesmo que esta fosse constituída apenas por amontoados de tinta formando um belo teto digno de uma basílica italiana. Caminhou pausadamente até um pouco a frente, deixando a porta aberta e sujando o chão imaculadamente branco de fezes, sem retirar os olhos de Isaac. Permaneceram em silêncio, até o de cartola branca começar a tremer e derrubar a tesoura.

- Não foi culpa minha... – começou, olhando para Raphael como se suplicasse. – Eu apenas pensei que poderia ajudar mais se eu...

Raphael levou a mão enluvada até a boca e colocou o indicador entre os dedos, fazendo Isaac calar-se e, imediatamente, começar a debulhar-se em choro silencioso e contido. Era estranho ver um homem humilhar tanto outra pessoa apenas por mover uma mão, e Raphael parecia entender - talvez planejar – o efeito de tal ato.

- Você não ajudaria, de forma alguma. – Disse, e abaixou a mão, segurando o guarda-chuva com mais firmeza.

Isaac olhou, horrorizado, para a ponta de prata do guarda-chuva, que não era muito afiada. Em um repentino movimento, esticou a mão e agarrou o travesseiro, pondo-se em pé e atirando-o para o alto. Raphael continuou olhando para ele, sem mover um músculo, segurando o guarda-chuva firmemente e, quando Isaac abaixou subitamente para pegar a tesoura, passou a segurá-lo como um bastão de basebol. Antes de o travesseiro atingir metade da altura em sua queda, Isaac ergueu a tesoura, segurando-a com as duas mãos, e cortou ao meio o travesseiro, batendo em ambas as partes como num movimento ensaiado, algo que ele fazia com provável freqüência. Em meio às penas brancas que voaram Raphael não viu absolutamente nada de Isaac, que se movera tão absurdamente rápido que parecia ter se desmaterializado.

Ouviu, sem reação, uma risada bucólica próximo ao seu ouvido direito, e sentiu algo roçar suavemente suas pernas. Ouviu em seguida a voz de Isaac, muito próxima do seu ouvido, dizer:

- Cortei ambos.

Raphael caiu de joelhos, em meio às penas, e permaneceu assim, deixando a cabeça inclinada pra frente. A cartola caiu no chão em seguida, de boca para cima, e ele sentiu Isaac se mover mais uma vez. Enxugava agora as lágrimas do rosto, e ia em direção à cartola, que permanecia estática e intocável, quase impenetrável no contraste que tinha com toda a sala. As penas se depositando no chão suavemente enquanto Isaac se curvava para pegar a cartola davam um toque angelical ao momento, trazendo uma sensação de pureza, leveza.

- Nunca joguei conforme suas regras. – disse Raphael, e ergueu a cabeça, com um sorriso.

Um coelho pulou de dentro da cartola e mordeu impiedosamente a bochecha esquerda de Isaac, que urrou de dor e ergueu a tesoura para cortar o roedor em dois, enquanto Raphael se levantava habilmente e pegava, caídos no chão às suas costas, dois pedaços do seu smoking. Quando Isaac fez menção de fechar a tesoura e partir o coelho ao meio, o orelhudo soltou a bochecha e caiu no chão. Saltou, em seguida, para uma de suas mãos e, com isso, impossibilitou-o de usar a tesoura.

Com um golpe de guarda-chuvas minimamente calculado, Raphael acertou-lhe as pernas e o derrubou. Pulou e, com um nível de frieza desumano, cravou o guarda-chuva exatamente no meio de sua coluna. Isaac urrou de dor, perdendo a ponta do dedo em seguida, quando o coelho terminou de decepá-la e passou a roer o resto. As lágrimas mais uma vez escorrendo em seu rosto, Isaac contorcia-se e deixou a cartola cair. Assim que viu que a mesma estava de boca pra cima, contorceu-se ainda mais, num frenesi de angústia, enquanto Raphael retirava a ponta do guarda-chuva de suas costas e enfiava uma mão no bolso, ao mesmo tempo em que o coelho começava a roer sua mão propriamente dita, deixando os ossos do dedo indicador à mostra. Raphael retirou do bolso dois dados e jogou-os dentro da cartola de Isaac, começando, então, a assobiar a música que vinha cantarolando desde que abandonara Dayse. Pegou o coelho, guardou-o de volta na cartola e se dirigiu até a porta, carregando os pedaços do smoking na mão esquerda, saindo da sala sem se quer olhar para trás.

Teve tempo de ouvir, antes de fechar a porta, Isaac gritar, num berro ensurdecedor:

- Sorte!

Fechou a porta e saiu andando e assoviando a música pelo corredor.


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