À Francesa escrita por Nana San


Capítulo 10
Capítulo 5.1




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Lívia estava me parecendo menos intrometida. Não sei se estava me acostumando com suas asneiras, ou se ela de fato tinha amadurecido os assuntos. 

Já não queria me irritar, cantando músicas antiquadas, sem letra ou ritmo. Falava mais de sua vida de como era bonito ver seu irmão crescer e a mãe envelhecer, perguntava-me se já tinha reparado na sensualidade das mãos e como as pessoas as ignoravam. 

E é claro, eu nunca respondi. Cheguei a olhar para as minhas próprias enquanto construía minhas peças e as notei cortadas, mal cuidadas, e não vi beleza nenhuma nisso. Talvez ela estivesse certa, mas em relação as mãos femininas.

Forcei a memória tentando lembrar de apenas um par de mãos que tenha notado em uma das muitas namoradas que tive, e sinceramente, só lembro de ver tinta vermelha nas unhas. Mas nunca reparei se eram bonitas...

Pelo falatório as segundas feiras, perdia a concentração em meio ao trabalho e deixava-o de lado. Se tirasse uma lasca errada ia jogar fora toda a obra. Preferia esperar que ela terminasse de falar para depois, ao longo dos dias da semana compensar o tempo perdido.

Não sei de onde ela tirou a certeza de que eu estava a escutando, de que não era só mais um velho surdo. Bom, a parte do surdo Matias deve ter resolvido. 

Por falar nele... Ela conversava muito com o garoto Calvin. Diferente das outras pessoas ela não o gozava. Por diversas vezes ele chegava no corredor para dizer a ela que o horário tinha acabado. Será que ela não tinha relógio? Ou eles macavam de ir embora juntos?

Garoto estranho daquele. Ela não ia se interessar por ele, ninguém iria. 

Tomei o porta retrato que Matias havia me presenteado com a foto de seu batizado. Eu o segurava no colo desajeitadamente e sorria para a câmera. Calvin tinha uns folículos cor de laranja do topo da cabeça, o que rendeu muitas piadas no bairro.

Lembro-me muito bem da algazarra que foi aquele batizado. A família de Matias nem deu as caras. O lado esquerdo da Igreja ficou vazia, com todos os lugares vagos, exceto pelo meu lugar, que estava vago para quando eu terminasse minhas honras como padrinho.

Matias se atreveu muito casando-se com uma mulher recém separada, poderia ter morrido pelas mãos do antigo marido. Assumiu a responsabilidade de um filho que não era dele... Mas a única tristeza era não ter conseguido chegar a tempo de dar seu nome ao garoto, que para o cartório e para o mundo é filho de chocadeira.

Na época eu mesmo o abominei. Casar? Naquela idade o casamento era uma rédea certa. Fiquei com um pouco de receio por ele, mas logo logo nos separamos. 

- Ai! Bosta! A bateria do meu celular acabou. Terei que voltar para casa sem ouvir música... - Escutei Lívia dizer.

Interrompi minhas lembranças e levantei-me da cama. Havia muitos anos eu não recordava de um passado tão agradável. Resolvi retribuir Lívia de alguma maneira.

Abri a tampa da caixa da vitrola e assoprei a poeira. Peguei o primeiro vinil da pilha e coloquei para tocar. Lívia ficou quieta no início e teve uma reação inesperada, pelo menos para mim.

-   I know your eyes in the morning sun,  I feel you touch me in the pouring rain... - Ela começou a cantar e eu a acompanhei, mentalmente. Aproveitando aquela velha música dos Bee Gees. 


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