Felina escrita por MuriloVonNachtwind


Capítulo 10
Dois cães




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Victor estava lendo “Quincas Borba” pela primeira vez. Ficava fascinado pela eloquência do grande filósofo em seu elogio da guerra. Estavam justificados, logicamente, todos os conflitos humanos, toda a competição. Todo o vestibular. Sim, o vestibular o preocupava. Era como uma coceirinha só, já que Victor era daqueles gênios em que todos apostam como primeiro geral. Não estudava, ainda assim era sempre primeiro, no máximo segundo, dos quadros gerais de cada simulado que fazia. Sua aprovação era tão evidente que já se tinha comprado a champanhe do vencedor e as passagens de uma prometida – talvez merecida – viagem para a Europa.

Ia a pé para o curso. O Humanitismo brincava na cabeça de Victor como o Emplasto Brás Cubas no Trapézio do homônimo: uma ideia fixa. Era lógico que a crueldade humana é um instinto de sobrevivência, que a competição intraespecífica era, como seu professor de Biologia gostava de afirmar, a mais natural das relações e era, enfim, benéfica. Categoricamente benéfica. Estava nisso, quando parou.

O leitor me desculpe a pausa brusca, mas a cena merecia um parágrafo. Dois cães. Famintos como se tivessem passado um inverno russo. E um estava pior que o outro. Quase morrendo mesmo. Victor parou e observou toda a cena, como se observasse toda a história da humanidade no lombo de um hipopótamo. Era o resumo. Ia dar-se o Diabo. Dois cães famintos, um morrendo. O certo, o correto, era que um comesse o outro e então sobrevivesse e não mais esfaimasse. Observava com a curiosidade de uma vizinha que espia, e com a sofreguidão que um dia foi lançada sobre o cadáver de certo nadador da manhã, engolido pela vaga.

E lá estavam os dois cães. E junto deles toda a expectativa que antecede o assassinato. O crime do século, que vale por mil latrocínios, posto que seja deles todos a síntese. O cão que tinha força se moveu. Os rins de Victor fizeram seu coração palpitar. O primeiro cão se aproxima do segundo, o moribundo. Ia mesmo dar-se o diabo, a emoção fazia lágrimas verterem dos olhos do nosso jovem gênio. O cão aproximou o focinho do pescoço do moribundo. Jugular, morte certa. Ia-se dar o diabo. O Humanitismo estaria então comprovado.

O cão não mordeu a jugular do outro. Começou a cutuca-lo, com obsessiva curiosidade e uma tenacidade tremenda, como se quisesse compartilhar a vida que ainda tinha com o moribundo. Cutucou, cutucou. E deu-se que o outro morreu. Então o Borba estava errado. Se a lei do universo era o Humanitismo, era a conservação, a absorção de Humanitas por Humanitas para a sobrevivência de Humanitas era o que devia se dar. Mas não, Humanitas escolheu morrer. Humanitas desistia de Humanitas. Victor estava desolado. O Borba estava errado. Um só fato destruía toda a sólida filosofia do mais são filósofo brasileiro. E continuou seu caminho lentamente, como a catabolizar toda a filosofia que antes o nutria o gênio.


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