Fight for the cure escrita por Pat Black


Capítulo 3
Marcos




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“Sabe o que é mais estranho agora?” Marcos perguntou fixando o olhar em algum ponto perdido no horizonte.

 

“Para você tudo é estranho, Marcos” John respondeu sério. “Aliás, você é estranho.”

 

O garoto de cabelos curtos baixou a cabeça e sorriu levemente.

 

“Somos um grupo muito estranho na verdade meu caro amigo John... Mas não me referia a isso. Falo do silêncio”

 

Marcos voltou a olhar a paisagem. A estrada de terra que se perdia em uma curva, as árvores à direita que se erguiam imponentes e escondiam um pequeno lago, agora de águas turvas e cheias daquele lixo zumbi, o muro alto de pedra, onde a marcas vermelhas de sangue criavam tristes figuras geométricas, pichado por eles para manter aquelas coisas longe da casa.

 

Marcos encarou o jovem loiro, seu perfil forte e atraente.

 

“Todo esse silêncio é estranho. Cara... ainda não me acostumei a ele. Foi a primeira coisa que me fez perceber que algo estava errado quando acordei naquela manhã.”

 

E John não precisava perguntar a que manhã o garoto se referia. Aquele dia estava marcado a fogo em sua mente. Ainda doloroso demais para pensar no que ocorrera... No que perdera... Ainda presente demais para falar sobre o assunto, ou ouvir sobre o assunto, sem que lágrimas lhe subissem aos olhos.

 

“Foi como se a Terra acordasse morta naquela manhã John”

 

Marcos suspirou

 

“Mesmo agora, não há nada. Nenhum som... Nenhum som de vida. Fecho meus olhos e só escuto minha própria respiração”

 

“É mais que suficiente. Estamos vivos” John sussurrou mais para si mesmo que para o amigo.

 

Marcos riu com cinismo, os olhos escuros duros, a face encovada, tão mais velha agora que seus poucos dezessete anos. Uma máscara fria e marcada por anos de dor e sofrimento que ainda nem possuía.

 

“Estamos vivos” Marcos repetiu agarrado à espingarda que fora de seu pai. Acariciando o cano longo e gasto. Para depois afagar o cabo de madeira marcado pelo tempo e pelo uso.

 

Voltando a olhar o horizonte lembrou-se das muitas caçadas ao lado do pai em que a usou. E naquele tempo era jovem demais para saber o que o velho Sr. Rerys queria lhe ensinar com tudo aquilo de mato, terra, chuva e sangue.

 

Dizer que odiara cada uma daquelas caçadas era estar mentindo para si mesmo. A emoção de encontrar sua presa, mirar, escolher o momento certo e apertar o gatilho sempre estivera presente e latente, mesmo que arrastasse os pés quando o pai lhe arrancava da cama às quatro da manhã, mesmo que dissesse ao velho odiar tudo aquilo.

 

E agora em que o mundo se tornara sua selva particular, e de caçador se tornara a caça, os momentos que sempre lhe pareceram um martírio se tornavam a cada dia as únicas lembranças felizes de sua parca existência.

 

A lembrança do pai saudável, vestindo aquele seu colete de caça e o boné surrado para esconder à calvície precoce, os olhos negros sorridentes, a língua sempre afiada para gozar de seu corte de cabelo ou de suas tolas e adolescentes idéias para chocar a família e a vizinhança, essa era a imagem que queria levar consigo. Não a daquela coisa do outro lado da porta de seu quarto, naquela manhã, quebrando o silêncio, esmurrando a madeira em baques surdos e aterrorizantes, grunhindo, os olhos apagados, dois poços de nada além de um horripilante ódio, a roupa coberta de sangue.

 

Marcos fechou os olhos em busca de algum som que não a de seu próprio corpo ou do amigo ao lado, tão quieto, e ainda mais melancólico do que ele próprio um dia poderia ser.

 

Mas não ouviu nada por um longo tempo, até que Sam apareceu no terraço pisando duro, caminhando na direção dos dois com a sua sempre presença marcante e segura.

 

Marcos admirou a amiga em todo o seu conjunto. Seu corpo forte, um pouco mais magro agora que lutavam para conseguir comida e não podiam simplesmente pedir uma pizza. Seus olhos de um castanho claro, como mogno ou cedro, profundo e enigmático. Seus cabelos escuros, curtos e sempre presos.

 

Era estranho pensar que a conhecia quase sua vida inteira e nunca a imaginara tão poderosa como a via agora.

 

Lembrou-se claramente de quando olhara pela janela de seu quarto em busca de uma fuga do pai, que quase derrubava a porta, e vê-la lá embaixo com a família ao lado do carro. Seu rosto quando o encarou nada mais tinha da garota doce e tímida que vivia com um livro enfiado na cara. Sua blusa e mãos estavam sujas de sangue e seguravam com força uma das armas do pai.

 

A janela não abriu e teve que correr para o banheiro. Sua última defesa. Achou que estava morto, mesmo sem saber o que realmente estava acontecendo. Por que a única coisa que sabia com clareza era de que aquela coisa do outro lado da porta não era mais seu pai. Não poderia ser. E ao ouvir o tiro que derrubou o monstro que o queria matar, e logo após escutar com alívio e tristeza a voz firme de Sam que varava a porta, soube, com toda a certeza de seu coração juvenil e já enamorado pela garota da casa ao lado, que Sam seria a única mulher que poderia amar nessa vida.

 

Marcos desviou os olhos da figura amada e chamou atenção de John. Não adiantaria sonhar. Não com Sam. Por vezes ela deixava até claro demais que só o via como amigo. E isso parecia bastar, por enquanto. Mesmo quando a vontade de tocar sua mão, ou soltar seus cabelos e mergulhar os dedos na massa sedosa se tornava quase insuportável, tê-la por perto satisfazia o bastante para não enlouquecer completamente naquele mundo já totalmente insano.

 

Quando John se virou, Marcos pode notar o brilho fugaz que a presença da jovem atiçara naquele cara sempre taciturno. E a chama do ciúme pareceu queimar seu peito e transformar seu coração em cinzas.

 

Não que notasse o mesmo brilho de apreciação de Sam para com John. Não mesmo. Sabia que o coração da amiga ainda pertencia a Doug. E aquela perda era muito recente para que alguém como Sam, onde os sentimentos eram profundamente arraigados, pudesse se interessar tão brevemente por um novo alguém.

 

Mas os olhos castanhos pousaram em John por um instante longo demais para que Marcos, a quem tudo sobre Sam interessava, não notasse.

 

Não foi uma coisa romântica, mas decididamente a garota avaliou o mais velho como uma mulher avaliaria um homem que lhe interessasse. E isso era tão pouco usual em Sam que aqueles poucos segundos tornaram-se algo gritante e intrigante para Marcos.

 

“Algum maldito desmorto?” Ela perguntou se agachando ao lado dos dois.

 

“Nenhum” John respondeu voltando a perscrutar a imensidão abaixo e ao longe.

 

Sam avaliou o mais velho por um momento com as sobrancelhas franzidas. Depois encarou Marcos com aquele olhar decidido de sempre.

 

Pareceu por um minuto que ela podia ler sua alma.

 

Então Marcos soube, mesmo antes de ela começar a falar, que a hora de arriscarem tudo havia chegado.

 

“Com os remédios que trouxemos, os mantimentos e o combustível que estocamos, acho que não podemos adiar mais nossa partida.”

 

John não a encarou por um longo momento. Depois descansou a arma no colo e pareceu pesar bem as palavras.

 

“Não podemos levar todas as crianças”

 

Sam concordou com a cabeça.

 

“Nunca pensei em arriscar levá-las.” Ela disse.

 

“Não podemos nos separar.” Marcos falou sabendo que, a despeito de seus desejos e dos outros em permanecerem sempre juntos, diante do que parecia estar em jogo, não podiam arriscar seguirem com um fardo a mais.

 

“Não seria seguro nem para elas, nem para os que irão Marcos.” Sam afirmou o que era óbvio para todos.

 

“E quem ficará para trás?” John perguntou encarando Sam novamente.

 

“Quem cuidará delas?” Sam não fugiu ao olhar insistente do outro. “Pensei que você e a Meg poderiam fazer isso.” Ela respondeu com vagar.

 

“Ou o Giles, ou o Marcos.” John replicou piscando sem graça pela confiança que ela colocava nele.

 

“Giles seria minha segunda opção” Sam confirmou desviando o olhar para o Marcos e continuando. “Meg terá de ficar para trás de qualquer maneira, não confio que levá-la seja uma opção viável.”

 

“O medo naquela garota atrairia até um podre sem nariz há um quilometro de distância” Marcos brincou para quebrar o clima de morte que parecia rondar Sam e John quando estavam juntos.

 

“Por que você mesma não fica para trás?” John perguntou. "Os generais em batalha geralmente ordenam seus soldados que cumpram tarefas. Eles não colocam as suas vidas em perigo indo para a linha de fogo.”

 

“Não sou um general, nem vocês estão submissos a mim John. Em verdade, pensei em deixar que o grupo se voluntariasse para esta viagem. Mas não posso arriscar que Meg ou Lucy fiquem sozinhas aqui. Não confio totalmente em Lucy. E Meg tem medo até da própria sombra.”

 

“É bom saber que você reconhece que não abandonaríamos você.” Marcos retrucou com os olhos em chamas.

 

“Você é minha família Marcos. Mesmo que queira vê-lo em segurança, sei que não nos separaríamos. Não depois de tudo o que já passamos. ”

 

Marcos sentiu o coração se aquecer com aquelas palavras. Mas sabia ler nas entrelinhas. E mesmo não dita, a palavra amigo ou irmão eram o que ela pensava quando falava dele. Não amante ou amor.

 

“Precisamos levar Lisa a Atlanta. Fato John. Nada agora é mais importante. Eu irei e Marcos também, Lucy deve ir e Anton com toda a certeza não vai querer ficar para trás. Você e Giles são minhas melhores opções para cuidar das outras crianças.”

 

“Eu irei com vocês. Sou o melhor atirador do grupo e o único que entende de mecânica.” John destacou antes que ela pudesse abrir a boca para contrapor.

 

“Giles não vai gostar nada de ficar aqui com a Meg” Marcos falou sorrindo.

 

E o comentário fez com os outros dois também sorrissem do martírio que o garoto padecia com a paixonite da ruivinha.

 

“Amanhã sairemos às sete. Já dei ao Scott e ao Anton uma lista do que separar. Meg subirá para render vocês. John verifique a Ranger, abasteça-a e pegue qualquer coisa dos outros veículos que possamos utilizar em uma necessidade.”

 

Sam parou como se continuar lhe custasse muito.

 

“John precisamos conversar sobre algumas coisas. Quando terminar me procure no estoque.”

 

Marcos sentiu que o rosto da amiga corou um pouco, mas poderia ser apenas a exposição ao Sol da manhã.

 

“Marcos, quero que avalie o perímetro. Verifique qualquer ponto desguarnecido que um errante possa usar para entrar. Depois chame o Giles e reavivem a pintura do muro.”

 

Sam se ergueu e finalizou:

 

“Nós teremos uma reunião final às dezessete horas para avaliar a melhor rota para Atlanta.”

 

Quando ela se afastou Marcos a seguiu. O coração aos pulos, o rosto vermelho e a respiração ofegante.

 

“Sam?” Ele chamou retirando um pequeno embrulho do bolso.

 

O papel de presente estava amassado, mas ainda exibia um padrão muito bonito entre verde e azul.

 

Sam sentiu que pela segunda vez naquele dia seus olhos marejavam. Recebeu o presente o apertando na mão por um instante, sem saber o que dizer. Sem saber se deveria abrir ali e agora e correr o risco de perder a pose de durona se derramando em lágrimas como uma tola.

 

Marcos percebeu que ela realmente não esperava que ele se lembrasse. Não quando calendários não faziam mais parte do cotidiano, e a contagem dos dias parecia incerta depois de tudo o que passaram, e passavam, naquela existência de fugas, medo e desespero.

 

Seu presente era uma faca, onde trabalhou o nome de Sam no cabo e escondeu algo dentro.

 

“Feliz aniversário” Ele sussurrou enfim quando ela apertou mais forte sua mão e se afastou para que ele não pudesse perceber toda a sua emoção.

 

Marcos a viu partir.

 

"Feliz aniversário, meu amor" Ele sussurrou para si mesmo vendo-a sumir apressada escada abaixo.






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