Tu Me Amarás escrita por MuriloVonNachtwind


Capítulo 2
II


Notas iniciais do capítulo

Nelson Rodrigues, nosso maior dramaturgo, e Samuel Wainer, o também falecido dono do extindo jornal "Última Hora" são pessoas reais. Os hábitos e personalidade de Nelson pude apreender lendo sua biografia "O Anjo Pornográfico" de Ruy Castro. Seu nome não me pertence, mas o uso como personagem assim como ele mesmo usou pessoas reais, amigos reais como personagens.



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Na semana seguinte ele não a viu. O que não quer dizer que não pensasse nela: Era certo que ele não a amava, a uma louca, desvairada, descabida e profética. Dormia mal as noites e passava o dia ansioso. Sentia-se perseguido mesmo não mais o sendo. Desejava ser perseguido, talvez, mas o que era certo era que desejava saber mais. O relógio marcava sete horas da manhã. Vinha acordando cedo, às cinco e meia, desde aquele dia sem razão aparente. Acordando cedo, chegava cedo à redação onde trabalhava. Fitava a máquina de escrever, mas só fitava. Seu pensamento estava na profecia.

– Ô doutor Escobar – disse, num tom maternal – Meio avoado esses dias?

Era um humilde contínuo que trabalhava na redação. Ele, um colunista do “Última Hora”, amigo do Samuel Wainer, dono do jornal, e colega do Nelson Rodrigues, podia ser daqueles que destratam os contínuos. Não era. Já tivera seus dias de contínuo. E nem era tão bom redator assim – lido ele era, mas se não fosse a amizade de Samuel Wainer talvez seus dias de contínuo não tivessem acabado tão cedo.

– É, amigo. Nas nuvens, e nuvens de tempestade.

– O doutor é cacete mesmo, hein, doutor? - disse, rindo

– Só duas coisas - disse uma terceira voz, suave e lenta, pausada - deixam um homem nas nuvens: Mulher e credores. Mas anda, conte o que sucede. Vamos lá em baixo e você me paga um café.

Era o próprio Nelson Rodrigues, que chegava para bater mais uma crônica d'"A vida como ela é...". Nelson falava assim mesmo: devagar, pausado, com uma cadência quase musical. E era principalmente um curioso, gostava de ouvir histórias, e como aquela pudesse ser promissora, sua Remington 5T podia esperar. E Nelson estava mesmo habituado a pausar diversas vezes seu trabalho para tomar café e fumar cigarros.

Foram ambos a um bar. Sentaram lado a lado e nosso rapaz pediu dois cafés. Nelson acendeu mais um de seus queridos e habituais mata-ratos, enquanto nosso amigo, ávido, já tomava seu café. Era em parte por nervosismo. Todos que conheciam Nelson sabiam que não era exatamente um sujeito tímido, e Escobar sabia que conversar fiado era um dos esportes favoritos do dramaturgo, mas ainda assim era um sujeito importante. Muito mais importante que Escobar. E ainda que fosse ele quem pagasse - não por sovinice, já que Nelson herdara do pai não dinheiro – muito pelo contrário –, mas o trato de ser mão-aberta. Escobar não se sentia à vontade com aquela situação. Ser amigo de Samuel Wainer, sujeito distinto e importante, era uma coisa: Tomar café com seu maior ídolo teatral era outra.

Já estava na metade do café e não tinha dito palavra. Nelson estava já na metade do cigarro, mas nem tinha tocado no café: gostava dele frio, era paciente para esperar a hora certa de tomar. E como fosse dos ouvintes e não dos falantes, esperava seu amigo começar a contar o que sucedera.

– Tudo começou há cinco meses atrás. Eu estava num parque com uma pequena quando...

Desculpe-me o leitor a pausa abrupta, mas foi o próprio rapaz que a fez. Ficou em silêncio, aparentemente precisava recapitular todos os eventos do dia em questão, fichá-los, analisá-los e só então relatá-los. Nelson ouvia atentamente o silencio de seu amigo.

– Eu estava num parque. Com uma pequena. Linda a pequena. Minha noiva. Noiva! Minha noiva foi pegar algodão doce. Antes que ela pudesse voltar veio essa louca e me tasca o maior beijão sem dizer palavra. Minha noiva viu, e nem chegou a voltar.

Barulho de fósforo. Nelson acendia mais um cigarro. Ouvia em silêncio como de costume, enquanto um derrame de informações vinha de seu amigo. Aparentemente existem abcessos físicos e psicológicos. O do nosso amigo acabara de romper, e o fluxo de informações, apesar de um pouco irregular, era constante e todo processo era tão doloroso quanto a drenagem de um abcesso físico.

– A família da noiva me acha um canalha, agora. Eu! Um protestante! Adventista! Homem de Deus! Jamais eu. Jamais! Faz cinco meses agora. E desde aquele dia no parque aquela menina me vinha perseguindo, aonde quer que eu estivesse. Era uma sombra. Uma sombra muda e onipresente. Até que um dia, eu estava com amigos no bar – e apesar de homem de Deus, cultivo o mau hábito de beber, e por vezes além da conta – Já estava inspirado quando ela apareceu. Não pude me conter. Afastei-me dos meus amigos e fui ter com ela. Antes, eu até a expulsava de quando em quando, mas dessa vez. Dessa vez! Dessa vez eu fiz uma ameaça: “Ou me contas o motivo de tamanha perseguição ou trate de não me procurar mais. Isso ou uma bala no meio dos cornos”. Algo do tipo. E então pela primeira vez ela falou. “Tu me amarás” Vê se tem cabimento! Dizer algo desse calibre!

Nelson estava no terceiro cigarro. O café do nosso amigo já tinha se acabado, e o de Nelson já havia esfriado fazia tempo, e finalmente o dramaturgo começou a bebericar, em silêncio, enquanto ouvia.

– E dizia que não morria se eu não a amasse. Parece até coisa dos teus contos. Estava tão certa, tão certa que eu a amaria, que disse que mesmo que um lotação a atropelasse ela não morria, se eu não a amasse.

– Disse que não morria? Detalhes! Eu quero detalhes!

Nosso rapaz ficou espantado. Uma reação, uma palavra rodriguiana! Nelson, que ouvira tudo silente tinha dito algo, finalmente. Reação de ouvinte, mas ainda assim uma reação. Detalhes, ele queria detalhes.

– Disse que tinha certeza que eu a amaria antes que ela morresse e até então. Acho que foi isso. Não compreendo a razão de tal certeza, mas só pode significar uma coisa: Ela é uma louca, desvairada, obsessiva e maníaca. Eu, um perfeito estranho! Ela deve ser imortal então, não é possível que eu venha a amá-la. Acho possível que ela me ame, mas eu, eu não. E talvez nem ame, não a vejo desde quando ela disse adeus.

Nelson ouvira tudo com certo espanto. Não que a história o espantasse, a ele que viu tanto como jornalista, mas com o toque verdadeiramente rodriguiano que o Destino deu a ela. A menina não era doida, muito pelo contrário. Mais provável era que seu colega de redação o fosse. Ela, a moça, tinha uma certeza. Tão certo quanto o retorno de Cristo era o amor do jovem incrédulo. E se essa certeza era tão absoluta, a moça fazia perfeito sentido, de um jeito psicótico e esquisito. E a espreita da senhorita era como a perseguição da Salvação, a espera da Segunda Volta. A menina esperava o amor de uma forma religiosamente linda.

– Essa menina não é louca, é uma santa. Espera o seu amor como se esperasse o Salvador. – Nelson disse isso, e foi embora. O rapaz pagou e ambos voltaram silentes para a redação.


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