A Era dos Sonhos escrita por NESCAU


Capítulo 3
Capítulo 03 - Pesadelo. parte 1.




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                   Há algumas décadas, um fenômeno natural de origem desconhecida acelerou a destruição dos recursos necessários à sobrevivência. Mares secaram, árvores apodreceram, terras se tornaram inférteis e muitas pessoas morreram. Alguns pesquisadores dizem que tal fato já estava destinado a acontecer, uma vez decorrente de um acúmulo de poluição na atmosfera durante anos e que só ali fora liberado, de uma única vez. Outros põem a culpa nos diversos vazamentos historicamente presenciados em usinas radioativas, que gradativamente afetaram o subsolo até tal problema subir à superfície. Até hoje, ninguém conseguiu provar do que realmente se tratava.

 

                   Num desolado cenário confeccionado por tal tragédia, estava uma humilde cidade em ruínas. Os casebres, simetricamente distanciados uns dos outros, demonstravam uma antiga sofisticação, agora apodrecida. Ladrilhos que antes ocupavam todo o chão, sob o qual a vila fora construída, passaram a enfeitar o túmulo daqueles que haviam perecido. Na única residência a permanecer em pé, um menino estava deitado no chão de seu quarto, olhando de forma triste para o teto, que a qualquer hora poderia desabar.

 

                   Pai, você ainda está aí? – perguntou ele, alienado em relação a seus arredores.

 

                   Que tipo de pergunta foi essa, meu filho? – disse o pai, adentrando o cômodo. Eu sempre estarei próximo a você nestes tempos difíceis. Eu e sua mãe. – continuou a falar, aborrecido com a pergunta do garoto.

 

                   Pai...posso lhe fazer outra pergunta?

 

                   Mas é claro. Jamais se esqueça: estarei aqui com você para o que precisar – respondeu. E saia logo do chão antes que contraia alguma doença. – ordenou.

 

                   Por acaso você...já preparou o meu túmulo? – questionou o menino, com a voz trêmula, virando o rosto para encarar seu pai.

 

                   Ao contrário do que esperava, seu pai não lhe falou nada, limitando-se a deixar o cômodo rapidamente. Diante do silêncio profano que reinava no local, o garoto percebeu um ruído com o qual estava pouco familiarizado. Seu pai estava chorando.

 

                   Sua mãe havia adoecido e se encontrava em repouso no quarto do casal, impossibilitada de receber qualquer tipo de assistência médica em face da distância existente entre o lugar onde moravam e as outras cidades. Seu pai, figura que sempre representou confiabilidade e o inspirou a sempre se esforçar para obter tudo aquilo que desejava agora se encontrava em prantos. Ele queria poder demonstrar tantos lamentos quanto seus ascendentes, mas achava que já havia desespero demais naquela casa.

 

                   (Não importa. Tudo vai acabar em breve, não é mesmo?) – refletia ele, sentindo-se mísero, enquanto aguardava sua morte chegar.

 

                   Entretanto, naquela noite, chegou à vila uma pessoa. Um homem de um metro e oitenta centímetros de altura, olhos castanhos, um deles coberto por seus longos e grossos cabelos negros curvos, que se estendiam até a cintura. Ele caminhou até um chafariz quebrado, situado no meio da cidade, e começou a observar o ambiente ao seu redor.

 

                   (Ninguém aqui? Ai, ai, que perda de tempo!) – pensou o homem, irritado com a possibilidade de ter ido para lá a troco de nada.

 

                   O garoto, que tinha ouvido passos vindos de fora da casa, aparece em frente ao homem, incrédulo por ter visto um novo rosto depois de tanto tempo. Ele viu seu primeiro traço de esperança. Como o homem estava bem vestido, portanto um sobretudo cinza, luvas pretas e sapato de couro, pensou que poderia lhe pedir ajuda para salvar sua mãe do adeus próximo.

 

                   Você aí. Venha comigo. Vamos! Vamos! Rápido, rápido, rápido!!! – disse o homem em tom imponente, após reparar na cor dos cabelos do rapaz.

 

                   S-senhor, você precisa me ouvir! A m-minha mãe...ela está doente...o meu p-pai, desesperado...eu peço, v-você precisa... – gaguejou o garoto, que mal sabia por onde começar a descrever seus problemas.

 

                   Ignorando as preces do menor, o homem segura seu braço direito e faz força para puxá-lo consigo para a saída da cidade. O pai dele, que fora ver de quem era a voz desconhecida, presenciou a cena e dirigiu-se até onde os dois se encontravam, a fim de tirar satisfações com o indivíduo que estava tentando sequestrar seu filho.

 

                   Ah, não! Vou ter que explicar tudo agora? – esperneou o homem, dirigindo suas palavras ao pai do garoto. Veja bem, eu vim aqui levar este garoto para fora deste lugar imundo e miserável. Estamos entendidos? – continuou rapidamente, antes que os outros tivessem chance para responder.

 

                   Não estamos. – respondeu o pai, com expressão séria, puxando o garoto para si. É melhor você explicar direitinho por que veio até aqui e está tentando raptar o meu filho!

 

                   O homem então bateu o pé no chão e bufou em reação à resistência que estava sendo oferecida. Ele se sentia enojado de estar ali e indignado por ter que gastar sua delicada voz com pessoas tão nojentas e desgraçadas. Queria finalizar logo seu trabalho. Lembrou-se, porém, de um meio fácil para alcançar seu objetivo.

 

                   Se você sequer é capaz de ler, veja isso. – falou o homem, franzindo a testa, incomodado por ter que prestar informações ao sujeito.

 

                   Ao ler o que constava no cartão que lhe fora entregue, o pai ficou pasmo. Aquele homem realmente possuía poder para tirar da miséria todos que ali se encontravam. Ele definitivamente representava a solução de todos os terríveis problemas que a família vinha enfrentando.

 

                   Percebendo a expressão de entusiasmo do pai com a leitura, o homem finalmente se acalmou e mostrou algum interesse na presente situação.

 

                   Sabe de uma coisa? – disse o homem, sorrindo de forma solidária. Eu estou aqui para ajudar. – complementou, estendendo a mão. Não estou autorizado a fornecer meu verdadeiro nome, mas pode me chamar de Cheshire – terminou, segurando e apertando a mão do menino.

 

                   O homem estranhou ao perceber que as palavras de Cheshire haviam sido direcionadas a seu filho, mas deduziu que seria uma gentileza cumprimentar o mais jovem primeiro, já que este se via mais nervoso que seu pai perante a situação. Após o cumprimento entre os dois, o homem abraçou seu filho, envolvendo-o com o braço esquerdo, enquanto estendia o direito para cumprimentar Cheshire.

 

                   Ora, ora...parece que alguém ainda não se deu conta da situação, não é mesmo? – falou Cheshire, sem responder ao cumprimento. Fui mandado aqui para “buscar a pessoa mais talentosa do local”, e apenas ela. – as extremidades de sua boca se alargavam enquanto voltava a direcionar olhares para o menino, formando um sorriso sádico.

 

                   O pai, ao perceber o que Cheshire queria dizer, cessou o abraço com o filho, pondo uma de suas mãos a cobrir a face desolada, pronta para ceder ao desespero uma segunda vez. A partir daquele momento, ele entendeu que não havia ninguém em quem pudesse confiar. A solidariedade é uma dádiva concedida apenas em tempos fartos, como o excedente de felicidade que o egoísmo não pôde abocanhar. Nos tempos de necessidade, havia apenas oportunidade e conveniência, fatos dentro dos quais sua sobrevivência não estava incluída.

 

                   Desculpe-me, senhor... – falou o garoto, com a cabeça virada para o chão, estendendo seu braço e segurando uma ponta da camisa suja de seu pai. Mas eu não vou! – levantou o rosto, retribuindo Cheshire com um sorriso confiante, de quem possuía forças para sobrepujar qualquer adversidade.

 

                   Ohh, não é uma gracinha? Tentando proteger o papai... – disse Cheshire, enquanto se abaixava à altura do rapaz, acariciando o cabelo do mesmo com uma das mãos. Mas sabe o que é eu considero mais irônico? Seu pai seria o escolhido caso você não existisse. – completou, descendo a mão ao rosto do pequeno.

 

                   Em uma fração de segundo, toda confiança que o garoto tinha reunido até agora foi estilhaçada. Era como se ele estivesse assistindo a um filme, uma obra na qual nunca deveria ter figurado. Ele não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Era surreal, imoral. Insuportável.

 

                   Isso é verdade? – perguntou o pai. Interessante...

 

                   O garoto não acreditou ter ouvido tais palavras. Seu próprio pai estava interessado em sua morte? Antes que pudesse refletir devidamente sobre o assunto, percebeu que seu pai tentava lhe agarrar, e instintivamente pulou para trás.

 

                   (Isso tudo não passa de uma brincadeira, não é? Tem que ser! Só pode ser!) – perguntou a si mesmo, agoniado com a atitude de seu pai.

 

                   Aquela era mesmo a pessoa que o criou desde a infância? Que se preocupava todos os dias com seu bem estar e torcia para que um dia surgisse a oportunidade de retornar à vida maravilhosa que um dia tiveram? Que prometeu inúmeras vezes viver o bastante para presenciar o nascimento de seus netos? Os descendentes de seu único filho. Em meio a seu desespero, avistou sua mãe encostada na porta. Ela parecia ter ouvido as partes cruciais da conversa. Correu até ela e abraçou-a, perdendo-se em lágrimas ao encostar-se ao corpo materno. 

 

                   Isso, querido. Fique paradinho assim para facilitar as coisas para a mamãe, tudo bem? – cochichou ela no ouvido dele, enquanto revelava uma faca de cozinha em sua mão esquerda.

 

                   Diante das palavras de sua mãe, que lhe tentara perfurar um dos olhos com a faca, recobrou-se do medo por um instante, protegendo o rosto com o antebraço direito, que é perfurado superficialmente na parte superior, tendo o corte se arrastado para perto de sua mão durante sua esquiva.

 

                   (Se ao menos ele deixasse de existir, talvez eu também fosse escolhida. Talvez aquele homem aceite levar o casal inteiro se o meu amado for escolhido. Eu poderia ser curada, mostrar do que eu sou capaz...eu estaria bem. Eu poderia ter tantos filhos quanto eu quisesse. Este aqui já está até preparado para receber seu túmulo, não é mesmo? Então não tem problema!) – raciocinava ela para si mesma, enquanto se juntava ao pai em perseguição ao filho, que, sentindo a dor dos ferimentos, já se encontrava sem forças, e fugia para os fundos da cidade.

 

                   Segurando com a mão esquerda o ponto inicial da perfuração para tentar inutilmente amenizar a hemorragia, e correndo sem saber para onde ir, ele se depara com sua reta final. Estava à beira de um precipício, em uma extensão triangular de terra que se encontrava no espaço entre os dois últimos casebres do lugar. Seu pai já o havia alcançado, mas não o encarava, limitando-se a andar em sua direção, como um animal faminto perseguindo sua janta. Sua mãe vinha logo depois, respirando com dificuldades, mas obcecada em buscar sua salvação a qualquer custo.

 

                   Cheshire presenciava a cena toda de olhos fechados, aproveitando ao máximo o som da voz desesperada do garoto enquanto implorava para que eles cessassem a agressão. Ele se sentia surpreso com o fato do mesmo não tê-lo buscado para pedir ajuda, atitude comum entre os desesperados.

 

                   (Soa tão bem...a sua voz quando você está à beira da insanidade. Garoto, essa é a verdadeira natureza das pessoas! Já percebi que você possui um incrível potencial. Você escutou meus leves passos de uma considerável distância, percebeu o golpe de sua mãe a tempo de se salvar e ainda busca a sobrevivência. Mas ainda há algo que limita seu desenvolvimento: a sua humanidade) – pensou Cheshire, enquanto tentava prever qual solução o garoto encontraria para o atual problema.

 

                   Os pais se aproximavam, na intenção de empurrá-lo de encontro a seu fim. A impaciência tomava conta da consciência do garoto, conforme todas as possibilidades de escapatória iam se dissipando. Não havia solução. À sua frente, estavam seus predadores, intentando meramente o homicídio. Não há mais espaço para três daquelas pessoas no mesmo mundo.

 

                   Garoto! – gritou Cheshire. Diga seu nome...E DECIDA O FUTURO!!!

 

                   O garoto então tirou a mão esquerda do antebraço ferido, impulsionando-a semicircularmente para a direção contrária, e, observando o homem aquém de seus pais através da brecha formada pelo espaço entre os casebres, exclamou de forma imponente:

 

                   Ren! REN CASTELLI DE VASCONCELLOS!!!

 

                   Diante dessas palavras, todo o ambiente se silenciou. E quando o garoto voltou observar seus pais, estes nada mais eram senão cadáveres, cortados pela metade, formando um rio de sangue no chão. Ele percebeu em sua frente um pequeno traço semicircular de cor vermelha, que aos poucos desaparecia.

 

                   (Eu sabia. Ele é brilhante!) – concluiu Cheshire, extremamente satisfeito.

 

                   Cheshire correu até onde Ren estava, excitado com o luto do garoto por ter tirado a vida de seus pais. E sem esperar suas lágrimas, Cheshire anunciou:

 

                   Meus parabéns, Ren! Agora você finalmente poderá fazer parte do seleto grupo de pessoas destinadas a sobreviver neste mundo profano. Eu vou te levar para um lugar fantástico, maior que as maiores cidades, mais luxuoso que o maior dos tesouros. Você foi escolhido.

 

                   Ao ouvir estas palavras, restara apenas um olhar furioso, que se misturava às lágrimas.

 

                   Diga-me, caro senhor. Qual o nome do meu próximo inferno?! – questionou o rapaz, prestes a ser dominado pela ira.

 

                   Sephia Lumerantium. – foi a resposta que Cheshire lhe deu.

 

 

 

[17:00 – seção #4, dormitórios, bloco A, apartamento 52]

 

 

 

                   Dentro de um dos cômodos do apartamento, uma pessoa se levanta bruscamente da cama onde estava dormindo.

 

                   Desgraçado! – disse Ren em voz alta, ainda em transe com o pesadelo que acabara de ter.

 

                   Quando olhou à sua volta, aliviou-se ao visualizar um apartamento comum da corporação. O quarto onde havia repousado possuía uma decoração bastante plana, com um pequeno armário encostado à frente da cama e um sofá alguns metros à direita, onde uma garota estava sentada, bem como uma mesa à frente do sofá. Para seu temor, notou que um novo pesadelo estaria para começar quando parou para observar melhor quem estava junto dele no local, lendo uma revista, indiferente ao seu pequeno escândalo.

 

                   S-s-s-setsuna! Não me diga que eu... – gaguejou, caindo de volta na cama, absolutamente apavorado sobre a possibilidade de ter dormido durante o filme.

 

                   Irresponsável. – respondeu Setsuna, ainda sem olhar para o rapaz, amassando levemente a revista que estava lendo.

 

                   (Depois da minha infância, eu jamais pensei que me sentiria traumatizado novamente. Isto é...até o dia de hoje) – pensou Ren, lacrimejando.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


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