As chaves giraram na fechadura e ela inspirou profundamente, bufando logo após, ao soltar o ar dos pulmões. Sentia-se cansada, pensou. Na realidade, o que sentia ia muito além de cansaço, mas enganar-se parecia ser muito mais confortável, ela repensou, levando os dedos aos olhos para esfregá-los. Não acendeu as luzes, não queria acordar ninguém. Era a última vez que pisaria naquela casa e queria que sua partida fosse muito diferente da chegada: totalmente em silêncio. Antes de subir as escadas, pensou que deveria tirar os sapatos, afinal eram de salto e certamente fariam barulho; não queria arriscar acordar seu pai que tinha um sono bastante leve. Precisou apoiar-se na mesa da sala de jantar por conta do pequeno excesso alcoólico cometido horas antes junto dos ex-colegas de faculdade. Ela sorriu ao lembrar-se de cada um daqueles rostos; sabia que não falaria mais com quase todos eles, mas de alguma forma sentiria saudades. Mesmo que fossem apenas colegas de aula, parceiros de farra, com os quais tivera apenas contatos superficiais. Sentiria saudades daqueles tempos. Ainda que a sensação de ter vivido uma mentira até ali fosse muito clara para si, sabia que sentiria saudades.

Segurando o par de sapatos pelos saltos finos, atravessou a sala e subiu as escadas, tomando o cuidado de pisar o mais leve possível. Andou apressada e silenciosa pelo corredor de acesso aos quartos e logo fechou-se naquele que deixaria de ser o seu dentro de poucas horas. Apenas acendeu a luz do banheiro da suíte observando-se por alguns instantes diante do espelho. A expressão melancólica começava a tomar lugar no rosto ainda maquiado da mulher e ela mordeu o canto interno do lábio inferior. “A que eu quero enganar, afinal?” – ela pensou consigo mesma, levando ao rosto o algodão embebido no removedor.

Em poucos minutos, o banheiro estava repleto de uma névoa espessa formada pelo vapor da água quente do chuveiro que caía furiosa sobre as costas nuas da mulher que estava sentada no chão, abraçando os joelhos como uma criança acuada. Lavou o rosto inchado pela última vez naquela noite e colocou-se em pé para desligar o chuveiro e enxugar-se.

Vestiu-se de forma simples e confortável, com um jeans skinny de lavagem escura e uma camiseta da banda Ramones. Foi ao quarto e encarou a mala feita sobre a cama; o ar pareceu-lhe mais pesado do que em qualquer outro lugar em que já estivera antes e ela suspirou. Não havia como e nem porque voltar atrás, então, certa de que não havia esquecido de nada, fechou a mala. Checou a mochila, na qual guardara pertences mais urgentes, tais como produtos de higiene pessoal, medicamentos, celular, fones de ouvido e uma muda de roupa. Calçou um par de tênis Vans e vestiu um moletom roxo estampado com a logo da mesma marca, a fim de proteger-se um pouco do frio que fazia do lado de fora da casa e finalmente colocou a mochila nas costas.

Carregou a mala com sofreguidão até a sala, uma vez que estava bastante pesada e se usasse as rodinhas para transportá-la, faria barulho demais no assoalho. Rumou para a cozinha, pretendendo sair pela porta dos fundos, sem olhar para trás.

O frio que fazia àquela hora da madrugada era bastante intenso e seu agasalho não era suficiente para aquecer seu corpo, então, apressara ainda mais os passos na tentativa de amenizar um pouco a sensação. O vento gelado dificultava sua respiração e acabava com sua coragem de tirar a mão livre do bolso, no entanto, precisava dar um telefonema. Assim, sacou o celular e discou o número que já sabia de cor há anos.

- Julie, ainda está na cidade? Espere por mim, chego em dez minutos. Eu aceito sua proposta.