A Escolhida escrita por Rfictions


Capítulo 2
Morte




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Era agradável lembrar-me que eu não tivera aquele Pesadelo novamente desde a noite do meu aniversário, aquela noite em que supostamente eu tivera caído em um sono profundo levando-me ao abismo e a um milhão de acontecimentos inexplicáveis e medonhos.
Balancei duas ou três vezes a cabeça, tentando livrar-me das imagens que voltavam a minha mente. As árvores caindo, os pássaros se revoltando, lavas de vulcões, chuva de pedras caindo sobre minha pele frágil e... Por fim, meu fechar dos olhos, imaginando poder sair daquele desespero, daquele
quase fim do mundo.

Hoje seria um novo dia, talvez o dia em que eu me socialize mais nessa cidade aonde eu não conheço ninguém. Só uma família que conhecemos no avião...

A porta bateu. Desviando-me dos meus pensamentos.

Emily querida. Já está arrumada? Seu pai já acabou o café...

Eu já estou indo! — essa interrupção me deixou irritada. Odiava aborrecimentos logo de manhã. — Só mais um minuto! — minha voz engrossou. De raiva.

Abri a porta, destinada a pegar apenas algumas torradas e pegar carona com Carlos. A imagem era como sempre a mesma: Carlos com o jornal em uma das mãos e na outra segurando uma xícara de café. Katerine sentada à mesa passando manteiga ao pão. Típico como era em Washington.

Está pronta? Não vai tomar café? —pergunta Carlos, insistindo em ouvir a mesma resposta.
— Não. Você sabe que não sinto fome de manhã. Podemos ir agora? — pergunto apressando-o.
— Como quiser, querida. — ele fechou rapidamente o jornal e levantou-se. Despediu-se de Katerine e jogou as chaves do carro no alto, deixando-a cair exatamente de onde foi jogada.
Ao chegarmos à Escola, nem acreditei quando Carlos disse que ali seria minha mais nova escola. O campo era perfumado, bonito e completamente verde. Era uma imensidão! A escola parecia ter cinco andares ou mais. Assim que me despedi de Carlos, entrei na escola. Pude ver vários grupos, cada um com três ou mais. Alguns riam, outros faziam cara de nojo e outros nem se quer tinham expressão facial. Andei vagarosamente, pretendendo registrar cada parte daquela escola, embora eu fosse olhar para aquele lugar durante cinco dias da semana...
Entrei na secretaria, e fui falar com uma moça de verde.

Bom dia... Eu gostaria de saber onde fica a sala 3-B?

Ela olhou firmemente em meus olhos e sorriu, respondendo:

Bom, primeiramente você deverá subir até o quarto andar e entrar na terceira sala à esquerda.
Chegando lá, entrei na minha sala. Uma bagunça só. Pude ver vários grupos unidos, as cadeiras nas mesmas posições, deixando apenas algumas cadeiras atrás. Como não tinha alternativa e principalmente nenhum amigo, sentei-me num canto, próximo a parede.
— Olha temos aluna nova. Quem é você? — pergunta uma garota com mechas vermelhas e olhos pretos. — É da Califórnia? — pergunta ela, rindo de mim.

Sorrio para ela, disposta a ignorar seu sarcasmo.

Me mudei para a Califórnia há alguns dias. E pretendo morar aqui a partir de agora. Porque, algum problema?

Ela ficou séria. E depois respondeu:

Acho melhor você continuar nesse canto. E espero não ter que fazer algo ruim com você. Qual é o seu nome mesmo hã?

Eu a fuzilo com o olhar e viro o rosto. Ignorando-a. Percebi que ela sorri falso pelo canto do olho. Logo depois, pego o livro de Biologia.

Senhora Ângela é professora de Física. — Olho para o lado, vejo uma garota com cabelos vermelhos e olhos castanhos claros.

Obrigada. — digo azeda. Puxando o livro de Física e colocando no lugar o de Biologia.
— Ignore a Tífanny. Ela é popular e ridícula. Espero que não se junte a ela no final da história. Acredite, ela sempre dá um jeito de estragar a vida dos que cruzam seu caminho.
— Quem é Tífanny? —pergunto confusa com o que a ruiva dizia. Na verdade nem prestei atenção no que ela disse.

A morena... Que falou com você... Há menos de cinco minutos... Lembra? — ela franze as sobrancelhas imaginando-me uma retardada.

Ah... Sim... Ela... — balanço a cabeça. — Imaginei.

Está vendo o outro lado? Próximo a parede? — pergunta ela apontando com a cabeça. — Bom, lá é lugar onde apenas os populares ficam e nenhum ser fora do alto índice de popularidade é bem vindo lá. E acredite as pessoas que já sentaram lá e tentaram se familiarizar se deram muito mal, tão mal que resolveram mudar de turma, ir para a 4-B. Como a Tífanny diz, é a turma dos Nerds antipopulares. Então pelo o que eu percebi você não é bem vinda lá. Como eu também não sou. — ela me olha com carinha de triste, desejando estar com aqueles palhaços.

Reviro os olhos e observo a professora com óculos de grau e cabelos grisalhos. Tífanny se levanta e abraça a professora, dando um colar de pérolas para ela. Ângela sorri e cochicha algo em seu ouvido.

Por um motivo estúpido eu queria muito poder ouv...

De repente algo se estendeu nos meus tímpanos tão alto que eu conseguia ouvir exatamente

tudo. Eu olhei para os lados assustada e conforme via algumas pessoas cochichando, eu ouvia o que diziam. Quanto mais ia fitando as pessoas que falavam (que eram praticamente todos) mas baixo ficava o som dos fundos e eu conseguia concentrar-me apenas ali, nas que eu fitava. Então era assim.

Bastava eu querer que automaticamente a minha mente dispõe meus tímpanos a expandir. E então eu consigo ouvi-los.

De repente o som ficou tão agonizante que uma rajada de dor atingiu meu cérebro e eu implorei para que parasse. E como o imaginado.

Parou.

Tudo absolutamente tudo voltou a ser como antes. O som alto se fechou e apenas conseguia ouvir o “normal” novamente. Era incrível. Tão incrível que agora era certo: possuía um dom.
Será que tenho ele desde o meu aniversário? Será que já passei por isso antes?
—... O que houve? — Perguntou María ao meu lado, cutucando-me.

Nada. — disse, meio rude.

Era a hora do intervalo. Finalmente a hora em que eu mais esperava, poder ficar quieta em um canto refletindo sobre o que acabara de descobrir e “quase”adquirir. Mas a minha pequena felicidade repentina foi quebrada de imediato quando María me puxou para sentar com ela. Ah...
— O intervalo é muito cheio de grupos, não pode ficar sozinha!

Eu olhei de relance meio incrédula. Eu estava nem ligando para grupos, populares, anti-populares, metidas, patricinhas... Porque o que realmente estava acontecendo comigo, não era nem comparado a uma pequena humilhação em sentar-me sozinha.

Nós avançamos em meio a um pátio imenso com várias mesas agrupadas à esquerda, do outro lado havia a cantina onde a fila chegava à uns sete metros. Havia muita gente, realmente. Os alunos sentavam em grupo, como disse María. Alguns riam, faziam palhaçadas, outros nem falavam. Mas mesmo assim, o barulho era desnorteante.

Paramos em frente à uma pequena mesa no canto onde dois meninos estavam sentados.
— Ufa, esse lugar está cada vez mais cheio! — arfou María. — Garotos, essa aqui é a Emily Foster. — ela deu um empurrãozinho nas minhas costas.

Emily? — perguntou um menino moreno de olhos azuis. Aqueles olhos... exóticos. Uma espécie infinita de cores em azul mantinha-se dentro deles, era inexplicável a sensação quando olhamos profundamente.

Eu assenti, fixada em seus olhos. Havia algo a mais neles. Neles. Sim, algo a mais nos olhos dos dois meninos que estavam olhando para mim. Algo que eu sentia que também possuía dentro de mim, algo louco.

Hm... Glauco Thompson é esse chato. — ela soltou um risinho, apontando para o menino de olhos azuis.

Um outro menino de olhos pretos e cabelos negros olhava para María sorrindo.
— Esse aqui é Erick Martins. — ela falou lindamente.

Eu assenti, numa fixação estranha em seus olhos.

Ela é da turma 3-B. A minha turma, ora. — disse ela.

Demorei alguns segundos para perceber que Glauco ainda me fitava, numa forma tão estranha que parecia que iria me engolir ali mesmo. Ou me assassinar, ou como se eu fosse algo precioso que estivesse desprotegido.

Eu assenti, pelo o quê? Também não sei.

Emily — sussurrou Glauco, baixo o suficiente para eu ouvir. Novamente meu Dom exposto.
O mais engraçado era que, a cada momento em que eu o utilizava, bom, mesmo sem querer, era como se eu conseguisse controlá-lo a cada momento em que se passava. Ele me possuía de tal forma em que eu poderia jurar em ter controle absoluto dele. Eu podia
ouvir o que eu quisesse. O que bem quisesse. O que antes não tivera descoberto, já que por um simples descuido e desinformação acabei ouvindo o lugar inteiro.

É eu não sabia. Não foi justo.
Mas... quem disse que
eu queria ouvi-lo?
Talvez mais um dos fatos loucos que eu precisasse descobrir.
— E então me conta — disse María despertando dos devaneios — está gostando do colégio?
— Hm... sim — sorri.
— Só isso? — ela fez cara de – hã? — Tipo, a Stohenthill é... demais! Como pode simplesmente dizer isso?
Eu assenti concordando.
— Ah, já sei. Foi a Tífanny Snewers — Tífanny? Nossa, esqueci-me dela.
— Ah, não não.
— É claro que foi.
— Tífanny já marcou você? — Perguntou Erick, pela primeira vez ouvi o som melódico da sua voz. Ele parecia cantar.
Eu neguei.
— Ah, é mentira! No início da aula ela foi falar com Emily, que coitadinha, não sabia com quem estava falando!
Explodi.
— Esperem, estão falando com o quê, afinal? Com o Presidente Americano, com o Papa, com o rei dos reis?
Ela me fitou séria observando meu drama.
— Argh, me desculpe.
— Não — ela pausou — tudo bem. Só quero que saiba que... ela não é o Presidente Americano ou o Papa... Ela é Tífanny Snewers, filha do diretor do colégio. Então, se eu fosse você, não pensaria duas vezes em manter a distância dela, porque como já deixou bem claro, você não é bem vinda no clube dela.
Eu assenti sarcasticamente.
— Então?
Ela bufou.
— Se ela quiser, pode acabar com você.
Eu engoli a saliva desejando sair dali. Estava tonta. Não pela informação, é claro, mas sentia perfeitamente algo dobrando meu estômago, o ar pesava e minha cabeça doía.
Uma dor familiar.
— Você está bem? — perguntou Glauco, parecendo ter toda a certeza de que fiz algo que não devia. Fiz?
— Hm... — a dor rangeu.
Glauco olhou para Erick, eu consegui ver com uma pequena parte do canto do olho. Eles ficaram se entreolhando diversas vezes até chegarem a um acordo.
— Emily, seria melhor ir até o campo — avisou Erick. C-como ele sabia que era
isso que precisava?
— Como? — Perguntou María com a voz rouca.
Poderia estar parecendo estranho para María de primeira, é óbvio. Ela parecia tão pequena e frágil que nunca entenderia o que está passando comigo. Mas não parecia estar sendo estranho para Glauco ou Erick, por algum motivo parecia que eles já
esperavam que isso aconteceria comigo. Era algo comum para eles.
— Venha, eu a levo — Glauco levantou e me puxou pelo braço levemente, seu toque me arrepiou e senti uma presença estranha porém prazerosa.
— Obrigada — disse fitando seus olhos azul.
Ele sorriu para mim e alisou com o dedão uma pequena parte do lugar em que segurava, um ponto agradável para o meu arrepio.
Ele me levou a um campo enorme de Beisebol. Haviam alguns jogadores há alguns metros e um grupo de meninas do outro lado. Líderes de Torcida provavelmente.
Glauco sorriu soltando meu punho.
— Líderes de torcida. — Algo na sua voz parecia soar como uma afirmação, ou algo como uma concordância com meu pensamento. — Estão treinando para o grande jogo. O Senhor Robinson está ficando com os cabelos brancos pelo simples motivo de “tudo tem que dar certo” ou do tipo “não pode chover em hipótese alguma”.
Eu ri, feliz com a dor que parecia melhorar aos poucos. Enquanto caminhávamos eu refletia sobre algumas coisas das quais desejava muito fazer.
Agora. Como por exemplo desabafar-me com ele, ou que o que eu achasse (sobre o simples fato de ele saber alguma coisa sobre meu dom) fosse verdadeiro. As chances são mínimas, mas uma esperança sempre surgia no meio perdido. Queria muito falar com ele sobre isso, queria poder entender o que realmente há em mim. Eu mesma não sei realmente. E por incrível que pareça eu sentia que tinha alguma coisa haver com o simples fato de eu ter um Dom.
— Você era de Washington?
Assenti lentamente. Ele coçou a testa.
— Porque veio para Califórnia? — disse.
— Eu não sei.
É realmente é verdade. Não sei, nem nunca soube o porquê tivemos que vir para cá. Foi tudo uma correria muito esquisita. Meus pais cismaram que precisavam sair de Washington a todo o custo, mas nunca soube o verdadeiro motivo. Ou na verdade, nem houve desculpas. Embora eu insistisse muito há apenas um mês em descobrir a verdadeira causa, nunca se abriram comigo. E isso me matava por dentro.
Precisei abrir mão de amigos, escolas, estudos... e convivência.
Ele riu enquanto assentia, como se achasse que eu não queria falar.
— Ah, por favor, não pense que sou eu é quem não quero dizer — eu parei olhando assustada —, é porque eu não sei realmente. Meus pais nunca me contaram.
— Emily, eu entendo.
Os olhos azul se viraram para mim.
— Não, não entende — rebati.
Ele balançou a cabeça e pegou na minha mão. Um movimento suave e íntimo me fez tremer. Ele me olhava de forma estranhamente profunda e triste. Como se a minha vinda não fosse durar muito, e algo terrível aconteceria.
— O que foi? — Disse, nervosa.
— Seus olhos — ele quase pareceu dizer para si mesmo, afogando nos pensamentos —, são bonitos e me lembram...
Ele pausou, como num despertar de um sono profundo, senti um leve sobressalto quando tropeçou nas palavras que dizia, os olhos arregalaram-se.
— Lembram o quê? — Perguntei apavorada.
— Ah, por favor, não se assuste. Lembram uma Atriz Americana.
É, ambos sabíamos que não era
bem isso que iria dizer. Ele não estava sendo sincero.
— Uma Atriz Americana? Jura? — eu não estava lisonjeada, pelo contrário, era sarcasmo.
Ele assentiu.
— Quem?
Seu pensamento voou, eu senti, parecia que eu via milhões de opções confusas criando-se através da sua mente. Ele abriu a boca duas vezes mas nada saiu. Uma voz no fundo me fez pular.
— Glauco.
Erick.
Nós olhamos.
Alternei o olhar entre os dois e percebi que Glauco assentira de leve. Erick também não disse mais nada, apenas virou de costas ao receber o assentimento.
Bom, uma coisa era clara nessa roda confusa de novos amigos. Glauco e Erick eram
muito estranhos. O modo de agir, o mistério, sempre tão fechado para certas coisas, os dois — e muito menos Erick — não pareciam ter um senso de humor agradável, como também não pareciam estar ali apenas para “estudar”. Havia algo a mais em seus olhares.
Algo misterioso. Principalmente em Erick Martins.
Sobressaltei despertando-me dos devaneios quando bateu o sinal. Demorei para perceber que Glauco já estava longe, na verdade, sumira de vista junto com Erick. Algumas pessoas esbarravam em mim. Por um momento eu me senti sozinha, num mundo sozinho. Ninguém me via ou me ouvia. Não havia ninguém para me ajudar.
O céu estava ficando escuro, as nuvens densas e pesadas vinham de longe rapidamente. Ventava e algumas meninas cobriam os cabelos com a bolsa, não podia chover. Para ninguém.

Exausta. Era uma definição perfeita pelo o que sentia agora. Uma exaustão infinita. Caminhei lentamente pelas ruas ao sair do colégio, estava abafado, soava frio. A chuva ainda não tivera chegado.
Precisei de uma ou duas informações até encontrar a minha rua. Como era nova aqui, não conhecia muito bem o verdadeiro caminho que Carlos me explicara tantas vezes. Me enrolei numa encruzilhada.
Quando por fim cheguei em casa, estranhei o portão entre-aberto.
Um vento forte e carregado soprou em mim. Eu parei assustada apoiando-me na parede áspera ao meu lado.
— Ah — gemi depois de sentir-me tonta, muito tonta.
Havia algo...
Houve sussurros, risos melódicos, maliciosos. Havia alguém na minha casa. Quem?
Automaticamente eu desejei usufruir mais uma vez do meu Dom, então por fim consegui ouvir perfeitamente. E parecia que “isso” sabia que estava ouvindo.
“... a profecia deverá ser cumprida — sussurrou uma voz masculina e grossa, na verdade não era-se possível saber exatamente o sexo da voz. Parecia amaldiçoado.
Profecia.
Mais risos.
“O sacrifício deverá ser feito, nós deveremos ser rápidos” — disse um deles.
Uma tonteira absurda quase me engoliu e uma energia negra estava me tomando.
Mais risos.
Meus pais. Eram risos dos meus pais.
Avancei agoniada com a tensão do lugar, as coisas pareciam tremer de forma brusca ao meu redor e eu precisei de apenas alguns segundos para passar pela porta da frente. Eu corri em direção à sala e então eu os vi.
Vi algo apavorante. Um ritual.
Um enorme pentagrama invertido localizava-se no centro da sala. Não haviam móveis ou sequer objetos. Estava vazio. Haviam símbolos envolta do Pentagrama e um Cornífero desenhado de giz, ele parecia ferver.
Dois homens com capas pretas estavam no meio, um olhando para o outro enquanto um deles segurava um punhal. Havia sangue...
Os meus pais estavam em volta do círculo, de cabeça baixa como se estivessem adormecidos e uma escuridão absurda tomou conta de mim. Olhei em volta sem ver mais nada, apenas um foco horripilante do círculo mágico e dos homens em volta.
— Q-quem são vocês?
Um deles me olhou, droga! Não haviam rostos. Não havia olhos, nem boca, nem nariz, era um vulto preto sombrio por baixo do capuz. Mas eu sabia, que estavam rindo para mim, ambos estavam me encarando freneticamente.
O homem do punhal ergueu-o para cima, olhando diretamente para mim enquanto sussurrava palavras em diferentes tons. Uma língua diferente.
Latim. Merda, o que está...
— Valentina, é você. A salvadora, a anfitriã que nos guiará para o poder absoluto. O poder absoluto — risos, mais risos, a voz, mais risos.
E então eu caí, apavorada. Cai de cara no chão, um arrepio mútuo e frio me atingiu pelas costas. Eu fechei meus olhos enquanto rezava, implorava. Uma certa significância surgiu.
Foi quando
tudo parou. Uma luz passou por trás de mim, uma quentura acolhedora e graciosa passou ao meu lado, e então tudo se fechou numa claridade muito forte. Uma paz surgiu no meu coração e eu conseguia sentir a fé se expandindo dentro de mim, não havia medo, nem temor. Eu sabia que no fundo, estava sendo protegida, o tempo todo. A todo instante. Não estava abandonada. Nunca.

Reluzente, lindo, esplendoroso... Não havia palavras para descrever o que eu via. O que se passava à minha volta. Talvez perfeita fosse uma definição próxima ao que eu estava dizendo. Tudo era muito lindo, parecia um mundo diferente. Uma menininha de cabelos grisalhos e olhos extremamente pretos rebocados com uma forte camada de lápis invadindo a olheiras que assustava, mas sua pele era tão linda e pálida que poderia se comparar a minha. Ela parecia ser como eu. Agora ela sorria e entregou-me uma flor, entre duas mãos em concha. Estendi minhas mãos e puxei-a para mim, fechando os olhos ao sentir o cheiro doce e profundo invadindo meu corpo e se alastrando entre as partes mais sensíveis, dando uma sensação de prazer. Seus dentes brilhavam num brilho intenso, pisquei duas vezes para ter certeza do que eu via de tão linda, tão pequena!
Abri minha boca, tentando falar, mas não vendo resultado. Tentei novamente, mas falhei. Não era possível falar através de sonhos? Ou talvez eu não estivesse sonhando? Algo latejou em minha mente, uma voz. Um sentimento familiar tomou conta de mim: O sentimento de perceber que alguém falava dentro dela, a voz soava entre meus ouvidos e entrava em minha mente, apenas possibilitando-a de ouvir. Era mágico e ao mesmo tempo assustador, tão suficiente que me fez arfar.
Observei a linda menininha, ela começou a pular de um canto para o outro, mexendo nas rosas que pareciam sorrir para ela, o cheiro... Ah o cheiro! Perfumava todo o campo, era real. Ela parou, e olhou para frente. Observou o nada e de repente ficou séria, tão séria que começou a me assustar. Tentei procurar seus olhos, mas ela estava de costas para mim. Ela virou-se para mim por um instante e balançou a cabeça, como um aviso. Olhei para o nada, as nuvens cobriam toda a região e consegui ver borrões pretos e brilhantes parecendo vir de muito longe. Capas. Capuz. Pretos. Fiquei assustada.
Quem eram eles? . Eles se aproximavam vagarosamente, tão vagarosamente que pareciam em câmera lenta. Um vento pegou-me por trás, fazendo-me alertar. Logo atrás de mim vinha dois homens. Suas peles brilhavam distante. Alternei o olhar entre os dois e pude ver que eles pararam. Eu estava bem no meio deles, andei mais para perto dos homens da caixinha. Pareciam sorrir para mim. Enquanto o outro grupo me seguia rapidamente, imaginei correr, mas não seria uma boa idéia. O paraíso parecia estar ali, ainda. Parei em frente a eles, olhei bem em seus olhos. Tão hipnotizantes... Tão reais... Tentei tocar, mas minha mão foi levada pelo ar, eles não existiam. Peguei a caixinha vermelha, mas quando fui tentar abri-la, fui impedida por uma forte pressão de raio. Tombou-me para trás e bati com a cabeça, caindo logo abaixo dos três de Capas.
Tentei olhar em seus olhos, procurá-los, mas nada eu encontrei. O capuz fazia uma sombra escura que tampava o que vinha atrás. De repente um deles foi desaparecendo, sumindo até ficar tão fraco que seria impossível dizer que ele está presente ali, e não estava. Ficaram apenas dois deles, balancei a cabeça tentando achar alguma resposta, até que eles, em sintonia, puxaram o capuz para trás, amostrando suas lindas faces extremamente surreal e perfeitas que eu nunca tivera visto antes.
Um deles não era homem como imaginava, era uma mulher.
A mulher.
A mulher linda e atemorizante do meu sonho anterior, a mulher que dissera uma última palavra sombria que poderia significar milhões de coisas, a mulher que dissera que
voltaria. E ela voltou, e agora me olhava com serenidade, como se eu fosse o motivo de algo terrível ter acontecido a eles.
Eu não percebi que ela tocava em mim, fora distraída, foi quando terrivelmente, eu caí.

Abri meus olhos, hesitante em me mexer. Qualquer pequeno e mínimo movimento parecia brusco o suficiente para um susto. Estava de barriga para cima, então lentamente virei de bruço para o lado esquerdo, implorando para não olhar na direção da porta. Ao contrário do meu aniversário — da suposta noite em que coisas atemorizantes aconteceram comigo —
desse dia eu me lembrava muito bem.
Haviam ou ainda pessoas na minha casa.
E estavam praticando magia negra.
O Cornífero. O círculo mágico. O pentagrama Invertido. As roupas, o punhal.
Tudo. Era muito simples que estavam envolvendo magia nisso. E eu entendia.
E meus pais? Ah meu Deus, meus pais, estariam bem?
Não, não podia simplesmente sair assim com pessoas na minha casa. Até porque aquela luz — até onde sei — me ajudou a
sair dali e vir parar aqui. Não há comprovação de que não havia aqueles homens ali.
E aquela
mulher. O Pesadelo novamente.
E o manto preto era exatamente o mesmo em que utilizavam no ritual.
A porta bateu e eu sobressaltei. Havia algo errado naquela casa, havia algo errado em
mim.
— Quem é? — Disse apavorada.
Ninguém respondeu.
Precisava ser corajosa novamente, não poderia simplesmente ficar sentada ali durante o resto do dia...
Triiii-triiiii...
O telefone soou como uma flecha no meu quarto, eu me cobri hesitando em atendê-lo. Argh aquele som era horrível! Parecia alto demais mesmo quando não estava utilizando meu Dom...
Houve uma pausa no telefone. E então lentamente levantei-me até a porta. Toquei na fechadura e parecia
dura demais. E então eu abri de uma vez só.
Não havia nada.
As luzes estavam apagadas. Embora estivesse no final da tarde, as cortinas
ainda estavam puxadas, tampando o brilho da luz de entrar. Fui até a borda do corredor e vi de cima.
Eu
vi.
Nada estava mais lá. A única diferença era que os móveis estavam ali, mas afastados o suficiente para deixar o centro da casa livre, perfeitamente para um Círculo Mágico. Olhei para os lados e algo parecia estar a minha vista.
Meus pais!
Haviam duas cadeiras uma distante da outra e duas sombras. É claro! Só podiam ser meus pais...
Desci em disparada e acendi a luz...
Foi quando eu vi. O pânico se acendeu em mim e uma onda de tensão e pavor surgiu. Meus pareciam... mas tão brancos...
— Ah Meu Deus.
Algo me tombou para trás e não vi mais nada além.
Emily!

Haviam barulhos por todos os lados. Um som agudo embutia além da minha capacidade de ouvir. Haviam vultos na minha frente, o lugar parecia lotado e agora conseguia enxergar vultos vermelhos, pareciam rodar.
— Emily! — uma voz doce e grossa ao mesmo tempo chamou.
Susan.
— Pelo amor de Deus! Você está bem?
Ela pausou observando-me, eu conseguia sentir seu olhar penetrando em mim.
— Querida, você poderia por favor se afastar, precisamos levá-la... — disse uma voz masculina. Mas... levar-me pra onde? Porque estava aqui?
Foi quando eu
vi. Quando eu lembrei.
A chegada, o barulho, os homens, o círculo, o punhal, o sangue... meus
pais.
Sobressaltei assustada, enxergando as coisas mais nitidamente. Agora eu conseguia ver plenamente. O barulho era a sirene e os vultos vermelhos eram a cor que rodava dentro da caixinha. Haviam
muitas pessoas espalhadas por todo o canto, duas ambulâncias há alguns metros. Girei a cabeça para o outro lado, haviam fitas amarelas na minha casa...
— Meu Deus. Onde estão meus Pais? — Perguntei desesperada olhando a menina de cabelos dourados e olhos sombrios na minha frente. Eu estava numa maca.
Susan me fitou por alguns instantes e o médico apareceu ao meu lado, segurando meu pulso.
— Precisamos partir, por favor deite-se. — Pediu.
— Não, onde estão meus pais? O que
aconteceu realmente?
Mas eu me lembrava. O terror.
— Olha...
Cláudia e Fábio chegaram correndo vindo em nossa direção. Eles pareciam tão assustados quanto eu e Susan.
— Emily, por favor escute o médico — pediu Cláudia.
— Não!
Não! O que vocês estão fazendo aqui, e meus pais, eu quero saber dos meus pais! — Explodi.
— Emy...
Olhei em volta, ainda haviam realmente
muitas pessoas em volta. O cenário era assustador e eu me arrepiei, minha cabeça doía. Uma forte pontada de dor me atingiu, e eu senti um mal estar imenso de repente.
Algo havia acontecido.
— Já disse, não vou entrar nesta ambulância enquanto não me disserem...
Mortos.
Uma voz, ou um pressentimento ou algo sussurrou na minha mente. A palavra me davam calafrios e uma dor embrulhava meu estômago. Havia areia na minha garganta e a minha respiração permaneceu descontrolada. Eu parecia não ter mais controle sobre mim mesma, a dor que acompanhava as minhas lágrimas era imensa, mais imensa do que todas as dores que tivera na vida.
Meu Deus, meus pais... Meus pais! Mortos.
Um olhar sombrio de Susan foi lançado para seus pais que assentiram. Eu
sabia. No fundo...
— N-n-não...
As lágrimas começaram a cair doentiamente, não consegui contê-las. Meu pais estavam mortos, mortos! Ah meu Deus como isso é possível? Porque fariam algo assim?
— Emily...
— Ah m-m-meu De-e-e-us... não por favo-r!
Não!
— Acalme-se, por favor... ficará
tudo bem.
— Não! — Berrei — Não-vai-ficar-
tudo-bem! Meus pais morreram! Morreram! Não vou mais vê-los, não vou mais tocá-lo ou ouvir suas vozes, não vou mais viver sem eles!
Uma dor carnívora me engolia por dentro. Meus músculos doíam e a minha cabeça parecia queimar, algo dentro de mim estava em chamas junto com meu estômago e meu coração. Os batimentos estavam me sufocando e fiquei tonta. Estava sem ar. Iria morrer.
Morrer? Que sentido faz? Meu pais estavam mortos! Se morresse agora, seria um bem maior para mim, um presente...
Nunca mais iria tocá-los, nunca mais iria sentir o carinho, nunca mais iria falar com eles. Suas vozes...
Algo me fez gemer por dentro. Era um fogo que se alastrava dentro de mim. Minha coluna estalou e eu tombei na maca. Os vultos voltaram e eu estava sentindo meu subconsciente ao meu encontro. Estava... morrendo? Por fim iria encontrá-los. Pelo menos não iria sofrer tanto com suas perdas, não é mesmo?
Agora eu sentia. Eu
via. A escuridão me tomava, me engolia. Mas eu não me importava. Deixei com que tomasse conta de mim e me levasse para as profundezas desconhecidas.

Não ligava. Não estava nem aí pelo o que eu via. Eu perdi totalmente a vontade de voltar. Não queria voltar, ao contrário, queria insistir que me levassem. Não tinha mais razão para sonhar, não tinha mais razão para viver. Eles estavam mortos! Num plano além da minha capacidade, além do meu Dom. Que se dane se estava no inferno, que se dane se tudo parecia cair a minha volta e apenas o chão em que pisava me suportasse!
Aliás, porque não desmoronava também? As coisas estavam
bem mais atraentes afundando em volta de mim, e porque eu também não afundava? Junto com tudo?
Foi quando eu parei e esperei uma imensidão de crateras chegando próximo a mim, afundando rapidamente de longe e vindo em minha direção. Eu sentei no chão frio e úmido rochoso, aguardando que me levasse. As pessoas podiam morrer no sonho, certo? E isso com certeza não me parecia um
sonho. E então de alguma forma teria que atingir meu corpo verdadeiro, precisava matá-lo. A morte não me assustava mais, nada me assustava.
Somente a idiota vontade de
viver que agora me assustava. Porque a presença da vida agora me trazia arrepios e não era nada bom.
Quanto mais me sentia viva, mas me irritava. Por que só demonstrava o quão longe estava dos meus pais. O quão longe a jornada a enfrentar estava longa.
Volte! — sussurrou uma voz aguda e grossa — Volte agora! — alguém apalpava meu peito e senti uma pressão desagradável em torno de mim. Uma pressão de volta, e eu não queria voltar! Me recusava, não, não, não e não!
Recuso-me!
Uma tempestade de chamas caiu na minha frente, mas não me atingia! Por algum motivo, alguma força estava me protegendo! Mas porque diabos? Eu não quero!
NÃO!
Algo me suportou, algo estava me afastando do inferno. Ouvi um som dócil cantando uma voz melódica, mas eu não entendia, só os sussurros em torno de mim. Era como... magia.
Uma força sobrenatural me elevou afastando-me. Eu agora via vultos e sentia meu peito sendo pressionado por uma força incrível e insuportável. Merda!
Rebati-me implorando para voltar ao chão. Para voltar ao inferno que estava me agradando, onde iria morrer. Onde iria vê-los novamente...
Foi quando
algo me empurrou. Mas, empurrou pra valer. Eu caí de costas tombando no chão, um chão quente e aconchegante. E então abri os olhos.
Estava escuro. Estava no escuro. Susan estava na minha frente e haviam alguns panos numa vasilha com água.
Era ela quem estava apalpando meu peito. Seus braços médios estavam pressionados numa posição estranha e ela me olhou com os olhos escuros arregalados. Somente a luz da lua iluminava o lugar. Mas era claro o suficiente para ver sua expressão. A palidez e os dourados elevados exerciam uma figura linda e angelical. Uma luz parecia exercer em volta de si. Era como...
— Você está bem? — Perguntou sorrindo lindamente. — Porque estava lutando?
Ela sabia. Ela sabia que estava forçando ficar, ela sabia...
— Onde estou? — Estava grogue.
Ela recolheu as mãos e o pano.
— Na minha casa — ela sorriu demonstrando fileiras perfeitas de dentes esbranquiçados.
— Porque? Porque não morri?! — Eu sentei na cama inconformada. Uma pontada de amargura e desapontamento subiu em mim.
— Por que eu
não deixei! — Murmurou levantando-se.
— E porque está cuidando de mim?! Você me odeia! E... porque
estou aqui? Não no médico?
— Não. Não te odeio Emily, não mesmo. É só o meu jeitinho confuso de ser. Porque não se adapta? — Ela sorria de leve. — E... eu insisti em trazê-la para cá, achei que seria melhor eu cuidar... esquece. E ah! O que você fez foi
muito feio.
— O quê?
Por que eu sabia do que ela falava?
— Você sabe — ela me olhou como se estivesse óbvio —, não deveria estar querendo morrer Emily. Não mesmo. Não pode mudar o destino. Você
quase deixou com que a levassem.
— Como sabe sobre isso? Como sabia o que estava acontecendo?!
— Emily — ela se sentou novamente — eu
sei das coisas. — Parecia brincadeira.
Encarei-a assustada percebendo que não inventava. E realmente não parecia estar inventando, ela
fez, ela me tirou de lá. Eu senti.
— O que você
é?
Ela riu tombando a cabeça.
— Um dia você descobrirá. Mas antes, precisará tomar decisões erradas
sobre mim. Achará que sou algo que eu não sou definitivamente.
Ela ia se retirando quando perguntei.
— Susan... — comecei a chorar. As lágrimas desciam fortemente — o enterro...
A palavra era difícil pronunciar, eu a sentia me ferir. Eu não tinha
ninguém.
Ela fechou os olhos tocando na porta.
— Será amanhã às dez...
Eu assenti sentindo a ferida aberta no meu peito.
— Certo... Tem tanta coisa que preciso saber...
Por algum motivo eu senti algo acender em si.
Ela voltou.
— Preciso fazer algumas perguntas a você.
— Porque?
Ela respirou fundo.
— Certo, entendo que isso é papel de um investigador criminal ou algo parecido... mas agora finja que eu sou uma policial, certo?
Isso estava estranho, mas quando olhava para ela sentia que poderia responder
muitas coisas. E ela estava bem mais legal agora, embora seu olhar sombrio que ainda parecia me engolir me incomodasse, isso não era nada do que estava sentindo.
— Certo.
Ela sentou na minha frente largando a vasilha de lado.
— O que vou perguntar é
muito importante. Sei que você viu algo naquela casa quando chegou... além dos seus pais. E preciso saber o que viu.
— Que diferença faz? Não vai trazê-los de volta!
Ela pegou meu pulso quando eu estava prestes a explodir.
— Cala a boca! — Eu dei um leve pulo. — Desculpe-me.
Assenti.
— Por favor, me diga. Apenas
me diga.
Eu ainda não entendia muito bem por quê ela queria saber sobre mim, e sobre o que aconteceu naquela noite. E muito menos por que uma criança de dez anos estava cuidando de mim numa situação dessas. Imagino que ela tenha ordenado a seus pais para não se meterem e ela faria isso sozinha. Isso de certa forma me incomodava.
Eu respirei fundo destinada a contar-lhe tudo, exatamente tudo sobre o que eu entendia sobre magias (desde pequena fui assim, lendo livros e mais livros sobre coisas assombrosas, porque por algum motivo eu parecia
ter alguma ligação com isso.)
— Quando cheguei senti uma energia mútua e forte. Uma energia obscura — eu parei arrepiando-me ao lembrar sobre
aquele momento —, quando entrei haviam dois homens de capa preta. Um manto cobria seus rostos, não havia rosto — por um momento senti que não valia a pena comentar sobre isso com ela —, e havia um círculo com uma estrela. Um pentagrama invertido... velas por todos os lados e... meus pais... desmaiados.
— Droga — ela sussurrou quase que para si mesma — não acredito... mas
?
— O quê?
Ela arregalou os olhos ao me fitar, como se esquecesse que falava em voz alta.
— Sus. Era magia negra, não era?
Ela assentiu. Será que ela entendia mesmo?
— O pentagrama invertido significa o Cornífero... — ela fechou os olhos. Estranha.
— Eu sei. Entendo. Como eu não sei. Mas aquilo significava algo muito ruim, eu sabia.
— Seus pais foram vítimas de Magia Negra, um sacrifício mortal. Bruxaria.
Por mais que imaginasse isso, doía saber que sofreram tanto.
— Suas gargantas foram cortadas... mas porque...
Ela me olhou rápido.
— Por que queriam algo em troca. Usaram o sangue dos seus pais. Para algum ritual.
— Porque fariam isso? Porquê?! — gritei. A porta bateu.
— Emily... — Cláudia aparecera na porta. — agora que você acordou vou preparar um chá para você. Susan, por favor, deixe-a sozinha um pouco. Ela precisa.
Eu preciso.
— Certo então — ela se levantou e saiu pela porta.
Estava sozinha. Agora e em todos os sentidos. Sozinha numa cidade desconhecida, na casa de uma família “amiga” dos meus pais a qual não tínhamos muito contato. E que a propósito, conhecemos no vôo pra cá.

Duas Semanas.
Passaram-se quase duas semanas.
Estava chovendo. Chovendo muito. O padre murmurava algumas coisas inteligíveis no microfone. Não havia muita gente na missa, apenas algumas pessoas que ainda puderam viajar para cá tempo o suficiente para assisti-la, já que não puderam vir no enterro.
A tia Celeste era uma delas, aliás, não só
uma delas como também a pessoa com quem iria morar sabe Deus até quando... ela iria ser a minha responsável agora. Eu não tinha avós por parte de pai ou mãe, apenas a Tia Celeste. E ela não pensou duas vezes em cuidar de mim. Um fato bonito para ela. Mas para mim parecia o começo de um pesadelo.
Durante esse tempo, não fui às aulas ou voltei à minha casa por motivos de investigações. Permaneci na casa de Susan e até hoje não comentamos mais sobre a nossa última conversa do acontecimento. Meu mundo estava de cabeça para baixo. No que resultou sobre a investigação é que, não houveram rastros de alguém ter entrado na casa. As câmeras de segurança em torno da vizinhança apenas gravou o momento em que meus pais já estavam em casa. No punhal,
suas digitais estavam gravadas, e então a investigação terminou e resultou-se em suicídio.
Idiotas.
Meus pais
nunca se matariam. Nunca, nem que algo precisasse ser cumprido.
A Tia Celeste
estava aqui. Me olhava algumas vezes e parecia refletir sobre como seria a nossa vida agora. Embora ela pedisse para voltar para Washington, não, eu insisti em continuar aqui, porque pelo menos assim não iria me sentir tão longe dos meus pais.
Haviam também alguns amigos antigos, alguns choravam, outros fitavam o altar como se houvesse uma doença altamente contagiante... A dor era insuportável. Tanto para eles quanto para mim. Não haviam palavras, nem parecia haver uma
explicação concreta sobre o que ocorrera. Logo depois vieram desejar “meus pêsames”. Como se isso fosse aliviar a minha dor, ah não ajudou nadinha. Só demonstrou o quanto estavam sofrendo com A morte dos MEUS pais. Ora bolas, quanto mais tentava esquecer, mas a minha mente explorava a minha alma. Isso me arrebentava.
Saímos da igreja. Susan estava ao meu lado vestindo uma roupa “comum” para mim. Da cor preta, não havia muita diferença. Ela só vivia vestindo preto. Parecia uma gótica. Cláudia segurou minha mão enquanto avistávamos a Tia Celeste vindo de longe. A blusa Branca e a calça da mesma cor, ambas pareciam flocos de neve. Os cabelos brancos eram como algodões perfumados. Ela era bonita. E essa idosa era quem iria ser a minha maior companhia, a pessoa com quem agora
deveria contar.
Isso é um inferno.
Tudo é um inferno.
Ela me abraçou depois de se ajeitar debaixo do guarda-chuva. A Chuva estava muito forte.
— Emy... — ela me olhou — você vem comigo...
Ela estava meio sem jeito pra falar a verdade. Também era estranho para mim, mas mesmo assim, precisava aceitar as coisas como estão andando...
Nossa casa já estava liberada, as coisas pareciam voltar a serem normais novamente. Menos para mim,
nunca voltará a ser normal.
A casa estava com o cheiro dos meus pais. Por incrível que pareça eu estava
sentindo o cheiro deles perfumando a casa. Os móveis eram os mesmos, o sofá estava no lugar, tudo estava como era. Até as piores recordações.
Ela largou a bolsa que carregava em cima da mesa da cozinha.
— Precisamos conversar meu bem — avisou-me recostando na beirada da pia. Ela me olhava calmamente como se
tudo não se passasse de uma pequena e rápida férias em família.
Meu celular tocou.
Blacky. Ah, Blacky minha amiga. Minha queria amiga de Washington.
— Preciso atender — murmurei. Tia Celeste assentiu ignorando perfeitamente o tom grosso na minha voz, mas agora, nada importava.
Eu me retirei subindo para o meu quarto, o ar quente atingiu meu rosto. Um ar deprimido.
— Alô?
— Amiga! — A sua voz era de tristeza, não de felicidades, não de “há quanto tempo”.
— Blacky...
— Sinto muito. Liguei só hoje porque senti que já tivera superado um pouco...
Houve um silêncio.
— É, as coisas não mudaram muito desde quando meus pais morreram. Bom, desde o enterro as coisas estão fluindo normalmente, para
eles.
Senti um assentimento por trás da linha telefônica, ela parecia estar tão mal quanto eu.
— Sinto a sua falta, Emm. — Emm, um apelido que ela não me chama há muito tempo. Desde o tempo em que éramos crianças e brincávamos de parquinho a luz do luar. Tudo era tão perfeito, tão inocente. Daí ela começou a me chamar de Emy e por fim ficou esse apelido. Agora
todos me chamam de Emy. Era algo já comum para muita gente em que conhecíamos.
— Também sinto muita — respondi com sinceridade.
— Craig está com muitas saudades também — voltou-se lembrando do querido Craig. Ah, bem o que teria que falar sobre Craig? Que ele sempre foi apaixonado por mim, tem lindos e sedosos cabelos negros e olhos grandes e castanhos? Pois bem, isso não é novidade. — Ele cortou o cabelo. Está muito bonitinho — ela soltou um risinho.
Eu ri um pouco também me fazendo lembrar dos velhos tempos. Às vezes era bom falar com Blacky pelo telefone. Quando saí de Washington deixei muitos amigos legais para trás, deixei alguns professores irritantes da Chatom Elementary mas que agora, sinto
muita falta. Realmente estou sentindo falta até das coisas mais insuportáveis que precisei passar. E agora estou aqui, perdida e sem pais na Califórnia, apenas com uma velha louca que nunca na minha vida morei com ela e agora será a substituta para sempre dos meus pais.
Inferno.
— Ah, Craig é bonito.
— Se falasse isso na frente dele, pensaria que estava se apaixonando por ele. Algo impossível talvez?
— Sim. Agora
tudo é impossível que não seja derivado de chorar.
Houve um outro silêncio e uma leve batida na porta. “Entre”, mandei assim que desliguei o telefone, o que não demorou alguns segundos. Blacky realmente me entendia, a única aluna Líder das líderes de torcida da Chatom Elementary que me entendia.
Tia Celeste olhou o meu quarto observando os lados e parando no teto. Ela parecia estar vasculhando alguma coisa, ah era só o que me faltava uma tia que não largava do meu pé, embora não fosse ter muitos problemas com isso.
— Posso entrar? — Perguntou educadamente. Eu assenti.
— Fique à vontade, vou lhe amostrar seu quarto.
— disse por educação.
— Ah, não precisa, já sei bem onde é. Enquanto você falava no telefone eu fui conhecendo melhor a casa.
Pra falar a verdade, eu nunca a considerei a minha tia. Apenas uma amiga próxima ao meu pai que quase nunca via. Mas ainda assim, eram irmãos e era algo que não dava pra negar. Nem se eu quisesse.
— Hã que bom.
Ela estava me analisando, olhando todos os pontos do meu rosto. Era típico dela analisar as coisas? Ou ela só queria falar alguma coisa e estava hesitante?
— Só quero que saiba, que não quero
substituir definitivamente seus pais. Eu vou entender se não quiser que eu faça algumas coisas que eles faziam, mas farei o possível para sermos grandes amigas. Certo?
Eu assenti depois de alguns segundos.
— Sei que é difícil ser “grande amiga” de uma velha de 60 anos mas...
— Eu não estava pensando nisso — interrompi, nervosa.
Ela sorriu. Não havia nenhum dente podre na enorme fileira. Com certeza era dentadura.
Permanecemos parada uma olhando para a outra, eu desviei o olhar algumas vezes mas... as vezes era difícil
não olhar para ela porque você tinha aquela pequena impressão de que ela está te olhando quando não está. E isso era estranho. Não acontecia antes.
— Vou descer para preparar o almoço. Fiz algumas compras — outro sorriso.
Assenti.
— Você irá à aula amanhã?
Assenti novamente. Argh, escola... onde milhões de comentários seriam feitos. Onde María voltaria a tagarelar nos meus ouvidos ou um dos garotos esquisitos iriam adivinhar mais alguma coisa...
E nisso, me fez lembrar sobre meu Dom. Não o uso há tanto tempo! Porque também nunca precisei, e pensei que seria cansativo demais naqueles dias. Foi melhor não.

Subi para o meu quarto. Estava anoitecendo e a Tia Celeste lia algum livro desconhecido na sala. Ela adorava ler, me contou que lia desde a infância e aprendeu sozinha. Isso é meio estranho de se ouvir mas não questionei muitas coisas. Sempre estava lendo, pelo menos desde depois do almoço não desgruda daquele livro. Talvez estivesse querendo me dar mais algum espaço, deixar-me sozinha por alguns minutos. Só que não estava me fazendo muito bem.
Silêncio. Um silêncio mútuo permanecia naquele quarto sempre quando subia. Ou melhor, sempre permanecia
naquela casa. E o pior, eu poderia jurar que em algumas vezes na tarde, algo nos observava almoçando ou distraída com algo. Eu só sei de uma coisa desde que vi aqueles homens nessa casa — e eu não estava definitivamente louca, estou certa disso —, aqui nunca foi a mesma coisa.
Já era de noite. As estrelas não iluminavam o céu desde o acontecimento, desde quando
perdi meu coração. Elas me faziam falta quando não havia nada pra fazer, ou com quem conversar, elas me faziam falta o tempo todo.
A campainha tocou. Numa hora dessas era difícil imaginar
quem seria. Quem poderia ser numa hora dessas?
— Emily — gritou Celeste. —, tem um tal de Glauco aqui embaixo. É seu namorado?
Eu corei nervosa. O que Glauco estaria fazendo aqui? E porque diabos ele seria meu namorado?
Desci as escadas em disparada não pensando muito no que iria falar. Quando desejei alguém agora não era um “alguém” que eu mal conhecia — mas que parecia me conhecer muito bem. Era uma amiga que eu já conhecia há muito tempo. Como Blacky.
Eu dei de cara com ele. Os seus olhos azulados eram ainda atraentes, meu corpo se remexeu por dentro e um nervosismo descontrolado surgiu em mim. Ele me olhava sério, mas algo em seus olhos me dizia que estava sorrindo por dentro. Lancei um olhar para a Tia Celeste que logo alternou o olhar entre nós dois e sorriu para ele. Mas que reação foi essa?
— Estou na sala de jantar — avisou olhando por fim para mim.
— Entra — pedi fechando a porta atrás dele.
— Você está bem?
Ele me encarava com os olhos tão grandes e tão azuis quanto o mar. Eles brilhavam.
— Um pouco sozinha. Só isso. — Sorri tentando não ser azeda.
— Nós estamos com saudade. Pensei em te ligar mas María insistiu que não era uma boa idéia. Você estava passando por um momento difícil.
— Eu
estou passando por um momento difícil. Sabe... para os outros passou. Mas para mim... rá, pra mim vai ser pra sempre — minha voz falhou e eu sabia que estava sendo um pouco grossa com ele, era injusto.
— Me desculpa.
Eu assenti encarando o chão.
— Como achou a minha casa?
Ele riu um pouco.
— Jornal? Eu leio sabe.. e o “tal” acontecimento saiu nele. Foi fácil.
— Ah, nem sabia... fiquei muito por fora da investigação. Quem resolveu tudo foi a Tia Celeste — apontei para a sala de jantar com o polegar sobre os ombros.
— Ah, ela é legal — ele sorriu. — Você vai pra aula amanhã, não vai? — A pergunta foi do tipo
você-tem-que-ir-à-aula-amanhã.
Eu vou — suspirei.
De repente uma enxurrada de lágrimas pareceu sair dos meus olhos. Algumas até escorreram e eu implorei para sumir agora mesmo.
— Droga — grunhi limpando-as.
— Ah, Emily! — Ele me puxou para seu peito. Era tão macio como o algodão. Por mais musculoso que era, ele parecia leve como uma pluma. Tudo nele parecia leve, seus olhos passavam uma mensagem ácida e agradável. Aconchegante.— Desculpa se eu te fiz chorar.
Eu me afastei um pouco olhando em seus olhos. Seus lábios estavam a pequenos centímetros dos meus e eu tive a sensação de estar flutuando.
— Não. Chorar faz bem, as vezes. Você me fez tirar o que estava acumulado — eu ri um pouco abaixando a cabeça. Ele pegou no meu queixo e observou meus olhos durante alguns segundos.
— Seus olhos.
— O quê? — Perguntei.
— São grandes, perfeitos. É um lindo castanho brilhante.
Corei.
— Já viu os seus senhor Glauco? — Disse como se estivesse acusando-o e ele corou.
— Mas... — Parei e respirei — é sério, não é sua culpa. É só que as investigações terminaram com um resultado nada favorável. Até contrataram psicólogos para mim. Não fizeram Magia Negra para os meus pais.
Eles estavam praticando. Mas o mais confuso era que nunca em toda a minha vida tinha visto algo relacionado a Magia ou Bruxaria em casa. E disseram que eles se sacrificaram, se suicidaram. E a minha explicação de que haviam dois homens naquela casa foi descartado e...
— Espere — ele arregalava os olhos como se eu estivesse deformada —, você disse que viu dois homens naquela casa?
— Sim, e havia um círculo com um pentagrama invertido e velas...
Ele fitou um espaço vazio.
— Não... — ele fazia como Susan tivera feio. Ele sussurrava para si como Susan tivera feito e depois olhado para mim como se eu estivesse definitivamente marcada.
— Ah Glauco, por favor,
você não! Já não basta Susan querendo esconder fatos de mim, e agora você está fazendo mistérios.
— Me desculpa — ele sacudiu a cabeça como se estivesse espantando os pensamentos.
— Você tem 17?

Parei observando-o incrédula.

Sim, mas o que isso tem haver?

Ele arfou. Eu senti na sua respiração que ela se alterara imediatamente. Algo estava acontecendo e ninguém estava querendo me contar!

Mas que Droga! — gemi. — Por que diabos ninguém me conta nada? Eu tenho o direito de saber!

Ele me encarou com o olhar sombrio. Seus olhos eram azulados e escuros agora, pareciam uma pedra negra que antes brilhava como o sol. Tudo a minha volta pareceu escurecer também e somente eu e ele estávamos ali. Ele tinha algo a dizer, mas temia, mas hesitava toda vez em que abria a boca pra falar.

Emily, na hora certa você descobrirá. Eu prometo.

Eu sussurrei:

Tem alguém atrás de mim? — As palavras saíram tão involuntariamente quanto o meu arfar. Eu sentia a sombra.

Sim — o seu assentimento foi mais do que um simples assentimento. Foi lento e doloroso, algo percorreu minhas veias e eu precisei sumir. Estavam atrás de mim. Mas quem? E porquê?


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Notas finais do capítulo

Segundo capítulo, se gostarem, deixem um review :)



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