Valfria - Apocalipse escrita por Napalm


Capítulo 3
A Enorme Rocha Diante do Portão


Notas iniciais do capítulo

A importância de um voto de confiança...



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Capítulo Dois

A ENORME ROCHA DIANTE DO PORTÃO

O cavaleiro de armadura negra batia com força as esporas no couro do animal, brandia sua espada contra a noite e fazia juras a si próprio quanto a concluir a missão lhe incumbida. Avistara o pano branco da túnica da Alta Maga. Ela corria cada vez mais lenta, não conseguiria escapar. Ele a tinha em sua visão e só precisava cavalgar até lá. Foi o que fez. Avançou com a espada em riste, inclinou o corpo para que cortasse o ar e de repente ouviu um baque, um uivo de dor e um relinche e se viu jogado ao chão de folhas, o corpo do cavalo o esmagando. O outro cavaleiro correu em seu auxílio, deparando-se com a barreira que se formara à frente de seu parceiro: os caules das árvores adjacentes haviam se unido, como uma parede resistente feita de galhos e folhas entrelaçados. O cavaleiro amaldiçoou ao vento e brandiu suas rédeas, contornando a parede. Mas à medida que se aproximava das árvores, estas se davam os galhos como se fossem mãos, formando uma barreira viva. Contornou-a pelo outro lado. O mesmo acontecera. Os fugitivos certamente já estavam muito avantajados. Sacou sua espada e a golpeou contra o muro de árvores. À medida que os galhos iam caindo ao chão, outros milagrosamente cresciam em seu lugar.

Um grito de fúria ecoou por Lessália. Neste instante, um cavalo avermelhado deixava a floresta pela saída sul. Sobre ele, montavam-se uma Alta Maga de vestes brancas e um explorador Semi-Sombrio.

***

O Sol iluminava aquele vasto prado de modo tão radiante, que as simples gramíneas verdes brilhavam de forma inacreditável. As flores espalhadas pelo caminho magicamente soltavam suas pétalas, pintando o ar com as cores vermelha e azul. Um rapaz caminhava pelo campo, lenta e suavemente, como se tivesse medo de estragar aquela bela paisagem. Era um homem de aparência jovem, tinha rebeldes cabelos castanhos que alcançavam seus ombros e olhos muito brilhantes, que se destacavam no cenário, mesmo este já tendo tantos destaques. O rapaz gritou por alguém, mas naquele momento, não recebera uma resposta. Porém, tomou-se por uma alegria contagiante, como se tivesse conhecido a bela voz que possuía somente naquele instante que gritara. E como se sempre tivesse estado ali, uma moça de belos cabelos loiros esbranquiçados sorria para ele. A brisa reconfortante soprava através dela, fazendo suas vestes balançarem majestosamente. O rapaz sentiu uma inexplicável vontade de abraçá-la. Quando finalmente deu um passo em direção à moça, um enorme bloco de pedra a esmagou contra o chão. O Sol sumira. As pétalas transformaram-se em gotas de sangue. A grama sob seus pés havia morrido. A suave brisa se dissipara e o ar tornara-se inalável. O rapaz olhava apavorado para o bloco no chão. Ficara ali, paralisado por alguns momentos, sem acreditar no que acabara de acontecer. Até que uma poça de líquido vermelho começara a surgir de baixo do bloco, indo com velocidade em direção aos seus pés. Ele deu alguns passos trêmulos para trás, quando sentiu-se pisar noutra poça, que havia ali logo atrás de si. Outra poça de sangue. Ao se virar, deparou-se com um homem que lhe era familiar. Ele estava deitado sobre uma cama de espinhos, que perfuravam-lhe incontáveis partes do corpo. O sangue de suas feridas abertas escorriam pelo chão, indo de encontro ao outro líquido. Uma dor lancinante atingiu o corpo do homem, que acabou caindo de joelhos sobre o rio de sangue que o local se tornava. Começou a gritar de agonia, sentia todo seu corpo em chamas. Sua voz se tornava um grunhido à medida que a dor crescia. Enquanto sua pele parecia querer destruí-lo com repuxos violentos, a mesma aos poucos dava lugar para um couro escamoso. O fogo chegou em seus olhos e a pouca luz que incidia naquele lugar, agora sombrio e melancólico, atingia sua visão como lâminas em brasa. Logo se viu deitado sobre o rio de sangue, ofegante e derrotado. O líquido brincava em suas presas afiadas, mas o mais novo Sombrio não tinha forças sequer para fechar a mandíbula. Quando conseguiu abrir os olhos, avistou, coberta de sangue e ainda assim extremamente bela, a esfera negra que encontrara, artefato que as lendas tanto ressoaram pelos anos de escuridão e de luz: a Lágrima da Morte.

Então, Lamond, mesmo já estando no chão, sentiu-se cair. Ouviu cascos de cavalo contra o chão perto de si, desacelerando e ficando mais alto. Ao abrir os olhos, deparou-se com uma mulher que se ajoelhava para ajudá-lo. Antes de reconhecê-la, os olhos do Sombrio a julgaram de um forma que antes ele não a havia considerado.

– “Anjo...”

– O que disse? – Perguntou-lhe Liere, que não assimilara.

Ele finalmente retomou seu foco completo. Os olhos brilhantes da moça o olhavam preocupados.

– O que houve? – Lamond perguntou, ao voltar a si. Sentou-se de forma rápida e sentiu sua cabeça rodar.

– Consegue se levantar? – Liere o perguntou.

– Por mais horrendo que seja este corpo, tenho comigo uma resistência de pedra e uma recuperação excepcional.

Liere assentiu e se levantou, retirando uma adaga num cinto à sela.

– Você caiu do cavalo. Seja lá o que fizeram com você enquanto esteve na cela, não quiseram lhe deixar apenas com um ferimento qualquer.

Liere se agachou novamente e determinada, segurou a mão bestial de Lamond.

– Isso não é...

Mas antes que ele pudesse terminar de falar, Liere perfurou o dedo indicador do Sombrio com a ponta da lâmina. Ele instintiva e ligeiramente puxou a mão de volta.

– O que está fazendo?! – Sua voz fez Liere se retesar por um momento. Ela ainda não se acostumara com o timbre gravíssimo e ameaçador que o Sombrio possuía. A Maga voltou a si, passou a ponta do dedo no sangue da adaga e o levou a boca, cuspindo imediatamente.

– Tive receio que estivesse envenenado. – Ela explicou.

– E estou? – Lamond perguntou.

– Felizmente, não.

Lamond se levantou e olhou ao redor. Ainda dava para ver a entrada da Floresta dos Lamentos no horizonte, ao norte. Estavam sob uma planície de rochas esverdeadas, sem muito a ver, fora a própria pedra íngreme sob seus pés. Liere agora agradava seu cavalo vermelho, que supostamente haveria morrido. Lamond notou o laço de corda envolta do pescoço do animal e a ponta desfiada da mesma dependurando-se ao ar, sem chegar perto de alcançar o chão.

– Parece que você reconquistou a confiança de Lessália. – Lamond analisou.

– Não teríamos escapado dos cavaleiros do Conselho se não fosse pelo auxílio da floresta. – Liere disse, se voltando para as árvores no horizonte. – Pedi por ajuda e ela respondeu.

– Seus poderes estão de volta. Bem planejado. – Lamond disse, num tom de implicância. Liere se virou para ele, demonstrando-o seu semblante de esgotamento.

– Qual é o seu problema? – Ela perguntou. – O que mais você espera que eu faça?

– Nada. Afinal, você já fez sua parte. Só não me peça para estar contente. – Lamond disse, andando de modo a se afastar da Maga.

– Aonde você vai?! – Liere perguntou encabulada.

Ele não respondeu. Continuou andando, ainda um pouco manco, para o sentido contrário da Floresta.

– Venha comigo. – Liere disse ao longe. Lamond interrompeu-se. Ela correu de encontro ao Sombrio e parou em sua frente, o olhar fixo nas pupilas vermelhas do mesmo. – Lamond, venha comigo.

***

O vento soprava com força pelas janelas de madeira das simplórias casas em Azbahr. As telhas tremiam e um uivo incessante ressoava pelas ruelas de pedra, fazendo daquela uma das mais apavorantes madrugadas registrada na história da vila. A Lua Cheia dependurava-se ao céu, fugindo dos vastos montes setentrionais abaixo.

Parecia que o vento resolvera castigar com mais força uma casa em especial. Batidas fortes contra a madeira se misturavam com os baques ao vidro. Os cavalos relinchavam alto de seus estábulos. Os galos cantavam, mas não se fazia a hora de seus cacarejos. Uma velha mão alcançou a lamparina sobre a cabeceira da cama, à medida que um par de velhos pés calçava as sandálias surradas, sem receberem o luxo de serem amarradas. O ancião posicionou a lamparina contra seu rosto de feições gentis, embora bastante marcado para que pudesse transmitir simpatia numa primeira impressão. Os olhos minúsculos brilhavam cinza contra o fogo. Os ralos cabelos grisalhos ondulavam-se às orelhas, que por vez, tentavam discernir os sons daquela agonizante madrugada. Olhou com dúvida através da pequena vidraça no teto, constatando que as estrelas da noite ainda brilhavam intensas no céu negro. O baque na madeira de repente se tornou mais forte e ligeiro. Sem se importar com a camisola de dormir que trajava, o velho alcançou uma lança de caça à parede e marchou para a porta de entrada com passos leves. Posicionou a mão inquieta que segurava a lamparina sobre a argola da porta e a puxou. Um trovão não hesitou em soar e espantá-lo mais do que já estava. Paradas contra a porta, estavam duas figuras trajadas com capas escuras, que ocultavam suas face e corpo. No mesmo instante que o trovão dissolvera no ar, uma voz doce, embora intimidante, reverberou de dentro de uma das capas:

– Senhor Torwell, creio que isto não será necessário.

O senhor Onodir Torwell olhou por um instante para ambos, mas não se largara da lança. Ele então se posicionou:

– Com certeza não será. – Ele abriu um sorriso que fechava totalmente seus olhos e deu passagem aos recém-chegados.

Os dois se apressaram para dentro da cabana, fazendo o cômodo parecer menor ao ser inusualmente ocupado. O velho fechou a porta atrás dos dois e colocou a lança recostada próxima à porta. Levou a lamparina ao rosto:

– Senhorita Vallet, mesmo sendo quem a senhorita é, não devia viajar sob noites tão frias e sombrias, principalmente numa como esta, onde os lobos não se aquietam e o silêncio nunca vem à tona.

Liere retirou o capuz. Mesmo tento uma estatura pouco avantajada, a Maga parecia um gigante perto do pequeno sr. Torwell. Este, tremia contra o frio de maneira descontrolada.

– Obrigado por nos receber, sr. Torwell. Sinto muitíssimo perturbá-lo novamente, ainda mais nesta hora da noite.

– Minha cara, você sempre será bem-vinda. – O ancião disse, – E quem é seu amigo, também é nosso amigo. – sorriu para Lamond.

– Obrigada, senhor. Tomei a liberdade de acomodar meu cavalo no celeiro.

– Pobre animal! Vou levá-lo para um estábulo ou morrerá de frio.

O sr. Torwell alcançou uma capa num gancho à parede próxima e saiu pela porta contra a noite gelada.

Na ausência do ancião, a voz temerosa do terceiro ser ressoou cortante sob sua capa:

– Não devia ter nos trazido pra cá.

– Não pretendo ficar. – Disse Liere em tom baixo. – Apenas esta noite.

Lamond se aproximou de Liere. Quando seus orbes vermelhos encontraram com o de Liere da escuridão de suas vestes, a Maga desviou o olhar. O Sombrio disse então, com certa rapidez.

– Tirou-me daquele buraco e agradeço por isso. Mostrou-me determinação, mas agora falha por não saber como continuar.

– Eu só preciso de um tempo para pensar. – Liere falou, embora não demonstrasse desejo de convencê-lo com a frase. – Eu tenho um plano. Veja, você está livre agora, não está?

– Livre? – Lamond disse debochado, retirando o capuz e revelando sua face monstruosa.

– Lamond, coloque o capuz! – Liere falou nervosa. Não ousara levantar o tom que mantivera durante a conversa. Não queria preocupar o sr. Torwell ou acordar sua esposa.

– O que diria o bom velho ancião, ao ver que sua protegida trouxera um monstro para sua casa?

– Lamond, por favor, coloque o capuz!

O olhar do Sombrio de repente se tornou tristonho e logo foi ocultado pelo pano escuro onde havia estado. O sr. Torwell entrou dois segundos depois, batendo os pés no tapete:

– Sillas está bem acomodado, minha querida. Vou preparar algo para vocês comerem.

Liere tentou negar, mas o sr. Torwell já se dirigia ao fogão à lenha, e sua fome falou mais alto.

– Sobrou um pouco de sopa aqui. Na verdade, sobrou bastante. Verina sempre cozinha mais do que o necessário, sabe? Aquela pobre mulher...

O sr. Torwell hesitou um momento antes de usar um pequeno pedaço de pau junto à lamparina para acender a lenha. Liere sabia que Verina Torwell jamais aceitaria a morte do filho e mantinha esperanças ardentes de que um dia o rapaz entraria pela porta sorridente e exigiria da mãe alguma coisa para comer, resmungando de sua fome insaciável, enquanto espalhava alegria com sua simples presença. A Maga tinha houvido diversas histórias sobre Mirelo Torwell, sobre sua infância e adolescência. Muitas delas repetidas, pois a mãe nunca conseguia se lembrar se já havia contado tal história ou não e Liere nunca a interrompia.

A chama do fogão iluminou a pequena cozinha dos Torwell e os três se sentaram nos banquinhos de madeira em volta da mesa quadrada de mesmo material. O sr. Torwell colocou a lamparina sobre a mesa e virou-se para a Maga:

– Minha querida, você deu sorte. – Ele tremia ligeiramente, e seu queixo de vez em quando batia contra o maxilar, distorcendo uma palavra ou outra. – Não há nada melhor neste frio do que uma boa sopa de tambros e arvolas, além de uma boa carne, é claro. Os vegetais são da horta do senhor Bisquis, lembra-se dele? – Liere concordou. – Eu não teria paciência para cultivar tambros! Dão muito trabalho e exigem muita água. Não que sofremos de sua escassez, mas regar é um trabalho cansativo. Sem falar do plantio em si. E eu já tenho muito tempo gasto com a criação dos cavalos. E Verina se ocupa com a costura quinto sextos do dia. Falando nisso, minha querida, o que achou das capas que te demos?

– São ótimas, sr. Torwell. – Liere respondeu. – Meu amigo e eu agradecemos muitíssimo.

– É pouco para o que você merece, minha querida. Oh! – Ele exclamou, levantando-se, – Quase me esqueço da sopa no fogo! Quando começo a falar é difícil parar, sabe. – Ele deu uma risada tremida e duradoura. – Já seu amigo, não é de falar muito, não é? Mas isso não é problema, gente que fala demais, como eu, só se dá mal nesta vida. É como dizem por aí: o silêncio vale ouro.

Com luvas, o sr. Torwell segurou a panela redonda e despejou a sopa de legumes sobre dois pratos. Sua mão tremia e ele acabou derramando um pouco na mesa.

– Estou muito desastrado! Perdoem-me, é provável que seja o sono... Além do frio, é claro.

– Perdoe-nos, sr. Torwell. – Liere se pronunciou. – Mas o senhor pode ir se deitar, se quiser. Deve estar cansado e amanhã sei que ainda terá uma longa jornada de trabalho.

– Você não está errada, minha querida. – O ancião disse, embora se contrapusesse sentando-se à mesa novamente. – Mas vou ficar aqui até que terminem. Não quero que seu amigo pense que sou mau anfitrião.

Liere não disse mais nada e, enquanto os dois se alimentavam, o sr. Torwell ficou ali contando-os sobre um caso de fuga de alguns cavalos do celeiro da família Bahukir para o seu. Em certo momento, a sra. Torwell surgira no cômodo com os cabelos para o ar, tentando enxergar os visitantes que a haviam acordado. Por mais que tivesse a aparência mal tratada, era uma mulher dócil e sorridente. Perguntou algumas dezenas de vezes para Liere se podia a ajudar em alguma coisa e se rendeu, voltando-se para seu quarto com passos lentos, balançando sua camisola colorida, como um sino ambulante.

O sr. Torwell guiou Liere e Lamond por um corredor adjacente e abriu a porta de madeira no final do mesmo, revelando-os um quarto, já familiar à Liere.

– Só há uma cama disponível... Mas sintam-se à vontade para usar as roupas de cama que estão dentro das estantes, estas estão em abundância.

– Ficamos muito agradecidos. – Liere o respondeu. O ancião despediu-se então com um breve sorriso e partiu com sua lamparina.

Lamond se dirigiu para o canto do quarto e se sentou à parede.

– Você pode ficar na cama. - Liere interviu. – Estou acostumada a dormir no chão.

Lamond riu baixinho.

– Que tipo de homem dorme numa cama enquanto uma mulher dorme no chão?

Liere ergueu as sobrancelhas.

– Estou lisonjeada.

– De qualquer maneira, é apenas mais uma noite de solidez somada àquela quarentena...

O barulho da espada sendo retirada da bainha foi assimilado pelo Sombrio. Mas ele não demonstrara nenhuma reação. Liere erguia a espada à altura de seu próprio peito, segurando-a pela empunhadura com as duas mãos.

– Sei que de nada será necessário dizer que sinto muito. Aceite meu juramento, então. Enquanto não retornares à forma original, não o abandonarei. Mas para isso, preciso de seu apoio para lutar contra o Conselho.

Lamond olhou para ela.

– Você tinha o poder em suas mãos. – Ele falou, – Por que decidiu voltar contra seus parceiros? Não era isso que o Conselho buscava? Força?

Liere abaixou a espada.

– Estavam cegos pelo poder.

– Mesmo na oposição, seria de maior benefício estar entre eles.

– Eu tinha medo... – E Liere deixou-se sentar sobre a cama, a espada querendo escapar de seus dedos afrouxados.

– Você enfrentou os dez Altos Magos corajosamente.

– Não medo deles. – Liere disse lentamente. – Medo de me corromper também.

Houve um longo momento de silêncio. Nem Liere, nem Lamond se olharam desde então, até que o Sombrio se pronunciou,

– O velho sabe sobre mim,

– Perdão? – Liere se virou para o Sombrio, sem entender.

– Quando retirei o capuz, o velho me viu, mas não disse nada.

Lamond levou a mão a altura do rosto, como se a admirasse.

– Existem instintos em mim que reconhecem o medo. O medo como tremia não era de frio. Era pavor.

Liere se levantou de impulso. Lamond fizera o mesmo. A Alta Maga fechou os olhos, tentando escutar alguma coisa a mais entre os ruídos noturnos. Subitamente ela abriu as pálpebras e se virou para Lamond:

– Fogo.

A Alta Maga rapidamente jogou a capa sobre si e a amarrou no pescoço. Agarrou a argola da porta e voltou-se para Lamond:

– Estamos trancados!

Lamond se precipitou e logo a porta voou pelo corredor, arrancada de suas estribeiras violentamente por um chute do Sombrio. Ambos correram para fora da casa e avistaram que, à aproximadamente quarenta pés em direção a noroeste, crepitava ardente uma fogueira que já alcançava os três metros de altura.

O sr. Torwell juntamente com a esposa surgiu atrás dos dois:

– Por favor, nos perdoe! O Conselho mandou homens na manhã passada, dizendo que a senhorita havia se associado aos Sombrios e se tornado uma inimiga mortal!

Liere os olhava incrédula.

– Por favor, senhorita Vallet. Sentimos muitíssimo, por isso! Eu...

Mas Liere não ficou para escutar. Juntamente com Lamond, a Maga correu para o celeiro pulando hábil pela cerca. Alcançou os estábulos e retirou uma sela de um gancho à parede de madeira, jogando-a para Lamond.

– Pegue um cavalo. Seguiremos o Rio Hasmirdan, indo para sudeste até sua nascente.

– A nascente de Hasmirdan demarca a fronteira entre reinos. É para lá que esperam que vá.

– Surpreso? – Perguntou Liere, em tom de zombaria.

Lamond retirou seu capuz e a mostrou um sorriso, que destacava suas presas involuntariamente.

– Não.

Ele abriu a cerquilha de um dos estábulos e selou um dos cavalos, montando sobre o mesmo e tomando domínio das rédeas. Liere já se esgueirava para fora do celeiro montada em Sillas.

***

Havia, a aproximadamente quatro milhas das fronteiras ocidentais de Azbahr, uma ladeira que despontava no horizonte como o infame Morro Roleiro. A descida íngreme para a vila era extremamente lisa e direta, fazendo com que aquele caminho dificilmente fosse tomado pelos viajantes. Estes, preferiam descer primeiro pelo nordeste, em direção aos Montes Verdes, ou pegar a trilha para a Grande Capital, a oeste do mapa sumarsiano, e desviar-se para o sul, passando pelo Arco da Medalha. Mas naquele fim de noite, o caminho mais curto e menos favoritado seria tomado. O sinal estava claro no horizonte ao leste e brilhava flamejante nos olhos do Alto Mago. As pessoas de Azbahr agora estavam em suas casas. As que não dormiam, olhavam atentas pelas frestas das janelas. Já fazia algum tempo desde a última vez que o Farol das Vertentes havia sido aceso e jamais tinha trago boas notícias com suas chamas.

– Devemos partir, senhor? – Perguntou respeitoso um cavaleiro sob sua armadura negra, cor que simbolizava o elo entre o Conselho dos Magos e o Reino de Sumarsa.

– De imediato. – O Alto Mago de cabelos pretos espetados respondeu, montando em seu cavalo. – Os alvos marcham para Mafiza em linha reta.

O alto mago Yagoori Ventimense alcançou seu cajado em forma de raio Às costas da túnica retalhada com estampas azul-elétricas. Finalmente, bradou:

– Vão!

E do alto da ladeira, irromperam duas dezenas de cavaleiros negros. O chão estremecia aterrorizante com a cavalgada violenta que tomava rumo a Azbahr.

Liere olhou para cima. As nuvens fecharam em torno de um ponto à sua altura, como um temeroso redemoinho. O céu negro agora bradava com trovões em fúria. Ela segurou firma as rédeas de Sillas e advertiu Lamond, que montava um cavalo ao seu lado:

– Cavalgue o mais rápido possível e não pare! - Ela firmou o tom, – Lamond, não pare por nada até que tenhamos alcançado a nascente.

Lamond assentiu. Neste momento, eles viram ao longe a grande mancha negra se aproximando e ganhando velocidade à medida que os cascos dos cavalos ressoavam retumbantes.

Mas a Alta Maga não se deixou apavorar. Armou-se com o cajado e brandiu as rédeas de Sillas.

– Mostre-os o que é velocidade, garoto!

Os dois cavalos dispararam para longe das cabanas da vila, seguindo à beira oeste do rio Hasmirdan. A trilha seguia numa longa estrada de grama retilínea margeada por uma mata de sipeiras ao leste e pelas águas, cada vez mais vastas, a oeste. Liere conduzia Sillas o mais diretamente possível e observava em pequenos intervalos o curso do rio. Lamond e o cavalo dos Torwell seguia-os quase ao encalço, embora não conseguissem alcançar a mesma velocidade. Subitamente, uma sipeira mais próxima brilhou intensamente e, após um estrondo ensurdecedor, jorrou faíscas de suas folhas para o ar. Neste momento, os cavalos derraparam e ameaçaram virar, empinando as patas dianteiras e relinchando.

Liere olhou para cima em direção ao céu e avistou as nuvens pesadas e negras que preenchiam todo o espaço sobre suas cabeças. Os raios se espalhavam entre as nuvens, como se estivessem se aquecendo antes de cair violentamente.

– Devemos nos distanciar do rio? – Gritou Lamond entre os trovões. Liere balançou a cabeça negativamente e disparou outra vez pela trilha. Mas dali a poucos metros, Sillas novamente se enguiçou quando um relâmpago brilhou em sua frente, enquanto parte da grama era consumida por chamas causadas pelo raio.

– Não se assuste, Sillas – Liere disse, próxima ao pescoço do animal, guiando-o pela direita e esgueirando-se das chamas. Lamond tomara a dianteira, porém, parou de brusco ao enxergar três vultos a alguns metros dali.

– Vão nos atacar de todos os lados – Lamond gritou para a Maga que vinha veloz em sua direção. Mas ela simplesmente passou direto por ele. – “Não pare”, não é?

O sombrio sorriu e voltou a segui-la, tendo na parte traseira da área de visão o lampejo do raio que por pouco não lhe atingira.

Os vultos ao longe se aproximavam velozes. Dois cavaleiros do Conselho portavam lanças em riste e marchavam interruptamente em direção aos dois. O terceiro ficara para trás, parado. Liere posicionou seu cajado de modo que apontasse contra o peito de um dos cavaleiros. Lamond seguia contra o outro, sem armamento algum, apenas indo corajosamente em direção ao seu oponente. Estavam próximos. Liere se encurvou lentamente para frente e o Sombrio agora colocava seu braço esquerdo ao léu. Os capuzes dependuravam-se para trás. Deixando amostra as faces determinadas dos dois.

No momento em que havia apenas dois metros de distância entre Liere e o cavaleiro negro, a Alta Maga desfez sua posição de ataque, girando o bastão para a direita e firmando-o com ambas as mãos. Sillas deu um pequeno salto e desviou-se ligeiramente para a esquerda. A lança do oponente perfurou o vento, enquanto seu empunhador recebia em cheio um golpe contra o pescoço. Ele voou para fora do cavalo e caiu pesadamente no chão. O oponente de Lamond estava a centímetros de perfurá-lo e já acreditava que o Sombrio era algum tipo de suicida para seguir de peito aberto contra a ponta da lança. O que ele não esperava era se ver lançado para fora do cavalo, num movimento simples e bruto, do qual Lamond segurava com um força excepcional o bastão da lança, antes que sua ponta pudesse tocá-lo e o arremessava para trás contra o chão.

Uma flecha passou raspando pelo ombro de Liere. O terceiro cavaleiro negro atirava à distância e outra flecha já estava a caminho. Liere usou o cajado - que agora emitia uma luz bela e intensa - como escudo e a flecha ricocheteou. Lamond disparou em direção àquele último cavaleiro. Uma nova flecha adejou em sua direção e o acertou o ombro direito. O Sombrio fechou os olhos por um momento, suportando a dor. Mas continuou incansável contra o oponente e, antes que esse pudesse atirar novamente, Lamond agarrou-o pelo pescoço como se fosse um simples boneco e o atirou no chão violentamente. Ele se virou para Liere que cavalgava para onde ele estava e arrancou a flecha de seu ombro, deixando um leve urro escapar.

– Lamond, saia daí!

Um raio estourou brutalmente contra o cavalo ao lado de Lamond, que só teve tempo para proteger os olhos. O animal jazia no chão e as chamas já se alastravam em sua volta. Sillas voltara para a trilha e Lamond o seguira ao encalço.

A estrada estava cada vez mais sendo engolida pelos flancos do rio.

Liere parou de súbito e Lamond viu o porquê: uma mancha negra descia do horizonte em sua direção. Ela se virou e viu a outra mancha que marchava furiosamente contra os dois. A Alta Maga olhou ao redor desesperadamente em busca de uma fuga. De um lado, as trilhas entre as sipeiras fechadas que iam mais fundo em Sumarsa. De outro, o rio, que naquele ponto, estava fundo demais para ser atravessado, além da correnteza forte que não ajudaria. Ela olhou para Lamond. Procurou nele algum sinal de desespero ou decepção. Mas não encontrou.

– Confio em você. – Ele disse. – Seu destino não é morrer aqui.

Liere o olhou por um instante, surpresa por aquelas palavras. Logo foi surpreendida novamente por um raio que caíra próximo aos dois. Os cavaleiros se aproximavam. A Alta Maga sabia que não podia perder mais tempo. Com o cajado em mãos, fechou os olhos e se concentrou.

Os céus trovoam sobre a terra em chamas

Quão profundas são as águas de minha ternura

Na escuridão que ascende deste abismo

Para herdar-me a sabedoria e erguer-me

A enorme rocha aos meus portões”

Lamond olhou ao redor. Fora a maior proximidade de seus inimigos, nada havia mudado. Liere sussurrou para si mesma:

– Mostre-nos o caminho.

E como se tomasse vida, as águas do Hasmirdan se levantaram, cascateando majestosamente para os lados opostos. O vão entre as paredes de água revelou-se num chão de pedras firmes. Liere e Lamond cavalgaram para dentro do vão e escalaram o outro declive, atravessando o rio. Mas os cavaleiros negros haviam chegado e dois deles já estavam no vão. Liere brandiu seu cajado e as águas caíram, voltando ao que era antes e esmagando violentamente os dois homens e suas montarias. O exército negro pairava numa margem, enquanto Liere e Lamond os olhavam vitoriosos da outra.

Do meio dos cavaleiros, surgira então um Alto Mago conhecido por Liere.

– Que pena. Não foi dessa vez, Yagoo.

O Mago estremecia de raiva. Olhou para o rio e constatou a impossibilidade de atravessá-lo a nado. Yagoo deu ordens para que os cavaleiros dessem a volta, mas sabia que o rio não podia ser contornado em tempo suficiente a alcançá-los.

Liere e Lamond então se esgueiraram para longe dali, movendo-se em direção às terras setentrionais mafizenses.

***

– Senhor Bisquis, como pôde?!

O sr. Torwell batia com uma bengala na cabeça do outro ancião. Este, protegia com os braços seus fiapos de cabelo que lhe desciam pelo rosto feio e ingênuo.

– Perdoe-me, Torwell! Mas eu fiquei apavorado! Pude ver o rosto do monstro de minha janela!

– Você mal enxerga o que está dois palmos a sua frente! – O sr. Torwell bradara, batendo novamente a bengala no velho. – Você colocou em risco pessoas boas que estão sendo injustiçadas!

– Eu não fiz por mal. – Gaguejou o sr. Bisquis.

– Quero que me avise da próxima vez que quiser acender o Farol. Aquilo não é brincadeira!

O sr. Torwell deixou a casa do sr. Bisquis bufando e xingando ao vento. Caminhou pesadamente de volta a sua casa e levou a mão ao peito esquerdo ao avistar quatro cavalos de selas negras parados à sua porta.

– Por Gaev! – Exclamou, correndo atormentado para dentro de sua casa. Quando entrou na pequena cozinha, foi surpreendido por duas mãos enluvadas que o agarraram pela gola e o jogaram contra a parede.

– Você, seu velho imundo! Ajudou os traidores a escapar! – O cavaleiro negro rugira. Ele avistou mais dois deles, que agora encurralavam sua esposa na outra extremidade.

– Não, senhor! Eu...

O sr. Torwell não sabia o que dizer. Seria o seu fim. Podia escutar sua mulher em prantos enquanto um dos cavaleiros a puxava pelos cabelos, forçando-a a falar. Mas ela negava e repetia a negar qualquer envolvimento com os “traidores”.

O ancião olhou ao redor, como se esperasse alguma salvação milagrosa... A caldeira de sopa sobre o fogão a lenha, a lamparina sobre a mesa, a lança de caça atrás da porta...

Foi então que o sr. Torwell avistou no corredor o que seria sua escapatória.

– Eu fingi ajudá-los, senhor. – O ancião começou, trêmulo como sempre. – Sou fiel a Sumarsa, meu senhor. Tentei trancá-los naquele quarto, veja!

O cavaleiro olhou pelo corredor e viu a porta que havia sido arrancada no chão.

– Eles avistaram o Farol e suspeitaram. Arrombaram a porta e fugiram.

O cavaleiro pensou por um momento, mas acabou soltando a gola do velho. Ele ofegou por um instante, levando sua mão ao pescoço e massageando-o.

– Vamos embora – O cavaleiro negro disse para os outros e rapidamente subiram em seus cavalos e partiram.

A sra. Torwell agachou-se perto do marido, que havia se arrastado da parede ao chão, e o abraçou.

– Aquela porta não tinha tranca. – Ela disse.

– Não, – O sr. Torwell respondeu em meio aos suspiros – Não tinha...


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Notas finais do capítulo

Não deixe que os Cavaleiros do Conselho prendam nossos heróis! Quanto mais reviews houver, mais chances deles escaparem! =D



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