Valfria - Apocalipse escrita por Napalm


Capítulo 2
Nesta Noite Os Lobos Uivam


Notas iniciais do capítulo

Numa situação nada confortante, Liere terá que enfrentar oponentes inesperados, aliados e até a si mesma, em prol da razão e do equilíbrio entre as Grandes Forças. Mas ela notará que está mais sozinha do que pensara e se verá desolada à beira do abismo negro... Porém, descobrirá que nem tudo que reside na escuridão deseja ficar nela.



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Capítulo Um

NESTA NOITE OS LOBOS UIVAM

Pouquíssimas pessoas sabiam da existência daquela peculiar clareira em Lessália, Floresta dos Lamentos. Seus troncos grossos de gravetos e folhas que se emaranhavam, muravam de maneira natural caminhos secretos daquela mata. A floresta não era muito aconchegante, viam-se raras flores, em sua maioria pranto-de-dunas, que eram pálidas e sem muita vida. A grama batia no joelho de uma pessoa de estatura mediana. O Sol estava a noroeste e iluminava pelas copas fechadas ora sim ora não o caminho da floresta, pouco trilhado durante a alvorada. Excetuando-se a esta norma, uma mulher encapuzada numa túnica muito branca, a qual reluzia intensamente a luz do Sol, seguia sobre o seu cavalo, cuja pele avermelhada contrastava ainda mais a branquidão da moça naquele cenário. Cavalgava lentamente pela trilha ladrilhada, ouvindo os solavancos de Sillas contra as pedras, quando num certo ponto desviou-se para o Norte contra uma falsa cerca viva. Naquele novo caminho, perdurava-se uma densa vegetação nem um pouco encorajadora, que dava razão para a trilha ter caído no esquecimento. Mas ao alcançar o final dela, escondido após quatrocentos e cinquenta pés de uma tranquila cavalgada, Liere Vallet largara as rédeas de Sillas tocando a grama, agora baixa e completamente iluminada pela luz solar, com suas botas de cano alto. A túnica lhe cobria o corpo até abaixo dos joelhos, terminando numa abertura na cintura. Seus braços não eram cobertos por ela, contudo Liere os tinha protegidos por luvas longas de um tecido fino, que se entrelaçavam entre os dedos, deixando-os livres. Assim como as outras peças de roupa, suas botas também eram brancas, embora um pouco escurecidas pelo uso.

Liere se aproximou de uma exótica Sinaleira, árvore baixa de caule grosso e folhas sulcadas, colhendo dela seus pequenos frutos esverdeados, os sinales, cujo formato permitia a moça pegar dois por vez com uma mão e jogá-los rapidamente num saco de pano preso à cintura. Um coelho alvo surgiu de súbito das relvas baixas, o que fez Liere retesar por um instante. Ao perceber do que se tratava, ela colocou o capuz para trás para que parecesse menos ofensiva, revelando seus belos traços leves, olhos verdes que transmitiam autoconfiança e seus cabelos muito pretos, parcialmente presos numa única e grossa trança que se escondia sob a túnica. Ela se aproximou do animal, agachando-se e estendendo os braços para trazê-lo ao seu colo, mas antes que o pudesse, o coelho eriçou-se, esquivando-se dela e correndo para dentro das moitas. Sumiu de vista. Liere se levantou e ficou estática por alguns segundos. Ao voltar a si, a mulher pulou de volta sobre seu cavalo e voltou em direção à trilha de pedra. Retomando-a, seguiu para Leste numa velocidade maior.

Liere precisava estar na sede antes que o Sol bloqueasse a segunda estrela-do-dia. Ao se aproximar de uma estonteante Sempra-Maior, árvore de caule ainda mais grosso que as usuais encontradas em Lessália, Liere desceu de Sillas e o amarrou com uma corda no caule espesso. Retirou a espada embainhada da sela e a o prendeu firme ao cinturão. Pegou também seu cajado, o qual foi preso as suas costas. A espada tinha uma empunhadura dourada, detalhada com argolas prateadas, contrapondo à bainha preta. O cajado era branco e enlaçado por vinhas verdes, com pontas gêmeas que terminavam numa réplica alva do Sol. Caminhou por oitenta pés seguindo o resto da trilha, até encontrar o que seria o fim da floresta e a entrada de uma majestosa construção.

Uma bela escadaria de granito preto ascendia até as portas duplas de madeira, cuidadosamente desenhada num vão dos muros azul-turquesa daquela estonteante obra. Seu contorno fora arquitetado para dar a impressão de um aglomerado de torres que se unisse de forma natural e disfarçasse a forma cúbica sólida da qual internamente era formada.

Esta era a décima primeira reunião do Conselho dos Magos sediada na Cabana Wincher. Pertencia originalmente ao reino de Sumarsa, que a usava em tempos remotos como um covil secreto. A finalidade pareceu continuar a mesma após a Cabana Wincher ser cedida ao Conselho, já que sua localização afastada das grandes civilizações impedia que qualquer um a encontrasse por acaso. E também não era por sorte que os Altos Magos teriam escolhido aquele lugar para as últimas reuniões. Estas se tratavam de coisas que Liere desejava nunca terem acontecido. Como uma Alta Maga, ela tinha vez nas decisões que o Conselho dos Magos tomava – decisões estas que sempre influenciavam no cenário mundial, devido ao apoio imenso que conseguiam e também pelas intrigas de oposição dos seguidores da outra organização, a Ordem dos Cavaleiros. Liere nunca gostava de considerar a Ordem como uma instância adversária, mas sabia que grande parte de seus integrantes e seguidores tinham uma discriminação repulsiva sobre sua raça.

Liere empurrou a porta da Cabana Wincher e esta se abriu num rangido. Avistou o corredor escuro, iluminado por fracas tochas nas paredes, distanciadas demais entre si para que fornecessem uma quantidade de luz suficiente. Adentrou o local e recostou a porta. Seus passos ecoavam fortemente pelo corredor, onde não tomou nenhuma das entradas adjacentes, que eram portas de madeiras fechadas ou escadas para as torres laterais. Porém, uma porta de barras de aço fez Liere hesitar em seu caminho. Olhou para trás; havia receado por um instante que alguém a observava pelas sombras. Alcançou uma tocha à parede a empunhou contra o corredor para ver melhor, mas somente o silêncio veio como resposta. Virou-se para a porta de aço e puxou a tranca para o lado. Empurrou-a e se deparou com uma escada de pedra. Desceu rapidamente por ela, demonstrando conhecer bem aquela passagem subterrânea, pela velocidade que se locomovia por aquele quase breu. Quando estava a aproximadamente vinte pés abaixo da terra, alcançou um longo corredor mal acabado, que dava entrada para algumas espécies de celas nas adjacências. Liere se aproximou das barras enferrujadas de uma delas e tentou iluminar o interior. A tocha não incidia luz na cela inteira e aonde alcançava não existia nada além do concreto do chão. Mas era possível ouvir uma respiração pesada, vinda da parte mais funda da cela. Com a mão livre, a maga alcançou o saco de pano com Sinales ao cinto e o posicionou no chão pelas barras. Virou-se, se preparando para subir as escadas de pedra por onde tinha vindo, quando foi interrompida por uma voz rouca e assustadoramente grave que ecoou da cela:

— Pouco.

Liere fechou os olhos. Silenciosa e lentamente inspirou fundo. A voz continuou:

— Nem mesmo Lessália a considera mais digna de confiança. Tenho pena de sua mágoa. Mesmo preso nesse confim escurecido, sei que lá fora a brisa das folhas não se permite para ti, os animais a repudiam e poucos frutos são lhe doados pelas Sinaleiras.

Liere, sem se virar respondeu em seu tom normal, com sua voz doce, porém, cheia de determinação:

— São consequências que pouco me afetam.

A voz rouca produziu um sonido irônico e logo acrescentou:

— Não vai conseguir me comprar com sua hipocrisia.

— Você entendeu errado. – Ela argumentou de imediato – Só estou fazendo o que me fora incumbido.

Liere não esperou por resposta e subiu as escadas de volta ao térreo. Fechou a porta de barras de aço quando passou por ela e olhou ao redor, encontrando o familiar vazio. Certamente, todos os outros Altos Magos agora a esperavam no Grande Salão da Cabana Wincher, acessado pela porta dupla em arco no final daquele corredor.

***

O Grande Salão era sustentado por pilares de mármore que seguravam as tochas responsáveis pela iluminação do mesmo. De lá era possível ter acesso ao corredor para a saída principal, bem como a uma escada de madeira em espiral que levava à torre maior. A tapeçaria rebuscada cobria de azul o chão de concreto. Havia também três entradas falsas, onde se posicionava em cada qual uma estátua. Uma delas representava um Mago completamente encapuzado, segurando um bastão numa mão e uma espada na outra, numa base corporal de certa forma imprópria para combate. Outra representava uma mulher jovem com vestes escassas, libertando uma pomba ao vôo de suas palmas erguidas. A última estátua era um meio busto indecifrável, que poderia tanto ter sido quebrada como nunca terminada. Talvez houvesse algo mais naquela estátua, que merecia ser reparado. Mas os frequentadores da Cabana não haviam tomado conhecimento de tal até então.

Porém, a maior arte daquele salão em tamanho era a grande mesa esculpida ao centro. Vista de cima, formava o símbolo do Reino de Sumarsa: uma estrela de seis pontas, tendo nos vãos formados pelos ângulos uma poltrona aveludada para cada integrante do Alto Conselho. Estes já estavam posicionados em seus lugares, aguardando o início da décima primeira reunião que teria aquele local como sede.

Seirundir Faris, o mais alto, batia suas unhas pontudas sobre a mesa, demonstrando inquietação. Estas tinham um diâmetro fora do comum, chegando ao tamanho de um palmo, além de sustentarem uma aparência de muito desgosto. Assim como todos os outros ali, Seirundir trajava uma túnica longa que o cobria quase totalmente o corpo, deixando de fora as mãos e do pescoço para cima apenas. O Alto Mago possuía expressões faciais amargas cobertas por um descuidado cabelo cinzento. Seus olhos verde-claro eram praticamente bloqueados pelas pálpebras pesadas. Ao seu lado o mais jovem Alto Mago posicionava obedientemente seus braços sobre a mesa. Yagoo tinha um aspecto muito mais juvenil do que o último, que era bem representado nos seus cabelos espetados, muito negros. Sua túnica era a mais enfeitada dos presentes, repleto de estampas que decoravam como ondas azul-elétricas a cor cinza predominante da roupa.

A única mulher ali presente estava de pé olhando para o centro da mesa, as mãos apoiadas sobre o encosto da poltrona. Seus cabelos loiros esbranquiçados lhe davam um ar de rebeldia e camuflavam suas marcas de idade, embora não fosse tão mais velha que Yagoo. Sua túnica era vulgarmente apertada ao corpo. Havia alguns detalhes em amarelo vivo que se destacavam no traje, embora não o concedesse nenhuma extravagância. Dinokke Allois, chamada de Dinky pelos parceiros, assim como Seirundir, parecia extremamente impaciente – ao contrário, por outro lado, de Giovanni Adrammazid, que repousava sobre seu assento como se tivesse sido esculpido ali. Era um Alto Mago robusto, com cabelos e olhos castanhos. Sua face serena o concedia um charme misterioso. Sua túnica unicolor cor-de-vinho fazia jus à sua extenuante vitalidade.

Magara Todurne destacava-se ali por ser o único com vestes claras. Sua túnica era branca, com detalhes aleatórios dourados. Seus longos cabelos lisos e negros caíam sobre seus olhos e dependuravam-se a poucos palmos do chão. Sua barba era tão longa quanto, talvez ainda mais lisa. Ao seu lado, sentava-se majestoso o líder do Conselho dos Magos, Deamer Valfenrir. O Alto Mago possuía também longos cabelos negros, mas sua face não continha sinal de pelo algum. Seus olhos muito azuis brilhavam naquele Salão mal iluminado. Sua aparência possuía algo de hipnotizante, que poderia ser causado pela elegância das vestes negras ou pela bela pele pálida. Por ser o líder, Deamer era o único que tinha consigo um cajado e uma espada. As armas e acessórios do restante haviam sido colocados num cômodo especial situado próximo à entrada do Grande Salão – o que, por certas vezes, abalava a confiança que tinham entre si, causando o efeito justamente contrário do esperado. A espada do líder estava embainhada e presa ao seu cinto, enquanto o cajado repousava em seu colo.

As portas duplas do Grande Salão se abriram então, revelando a Alta Maga de vestes brancas. Todas as cabeças se voltaram para ela, algumas emitindo suspiros irônicos. Liere se aproximou da poltrona vazia à mesa e, sem olhar para os olhos de ninguém ali, disse:

— Perdoem-me o atraso.

— Nós não nos importamos. – Comentou Dinky, que agora se sentara. – Adoramos este clima de apreensão.

Dinky refutava Liere sempre que a oportunidade aparecia. Suas opiniões jamais convergiam e nenhuma das duas Altas Magas se esforçava para chegarem a um entendimento. Durante a sétima reunião, a intensidade do combate entre ambas se demonstrara vulcânica:

— É evidente que mantê-la conosco ou aonde for, tornaria o lugar um foco de guerras, onde todo embate se convergirá e todo homem se prenderá. – Liere dizia.

— O que serão estes meros conflitos quando tivermos poder para abafar todos eles? – Dinky argumentava.

— Nosso real objetivo parece ter sido esquecido. – Liere comentara, nunca olhando para a adversária. – Assim como a Ordem dos Cavaleiros, o Conselho dos Magos foi criado para auxiliar os grandes reinos de modo a encaminhá-los para um era de paz. Submissão não é paz.

Seirundir na maioria das vezes que se pronunciava, o fazia em favor de Dinky. Jamais demonstrara diretamente qualquer antipatia por Liere, contudo, nos debates que elas se envolviam ele nunca a apoiava.

— Suas teorias não vão além do próprio significado da palavra. – A voz rouca de Seirundir empunha. Suas palavras saíam sempre com intervalos, o que lhe dava um ar mais sábio. – Não pode dizer que o mundo se tornará um lugar pior se antes não transformá-lo.

— Aqueles que viveram entre as sombras estão aqui para lhe provar. – A Alta Maga o confrontara.

— São circunstâncias diferentes...

Liere não recebera apoio algum, se não raros sinais de concordância vindos de Giovanni ou de Deamer, desde que as reuniões sobre a Lágrima da Morte começaram.

Quando Lamond Tartras saíra impune da Tumba dos Zawird, no Sexto Dia da Vigésima Quinta Esquadra, no pouco tempo que respirara novamente o ar exterior que lhe fora privado ao longo do dia, fora surpreendido e despossuído de seu grande achado. No momento em que seus olhos se acostumaram com a luz do Sol, o explorador reconheceu a silhueta de três homens sobre seus cavalos. O primeiro vestia-se como o terceiro, trajando pesadas armaduras negras cobertas parcialmente com tecidos enfaixados de mesma cor. O elmo lhes cobria todo o rosto, assim como fazia o capuz do segundo, embora deste último deixasse à vista dos zigomas para baixo, além dos cabelos negros que escorriam de dentro da túnica tão negra quanto.

O lugar, que uma vez fora um grande reino, agora estava desértico. As colunas do Templo das Sombras, juntamente com outras de edificações milenares, se erguiam sobre dunas de areia, que, por sua vez, se estendia ininterruptamente e formava ondas dançantes no horizonte. Somente as quatro figuras naquele momento existiam vivas num raio de quinze milhas.

Tempo não poderia ser dado a Lamond, que segurava consigo o poder dos Cem Magos Ancestrais. Antes que o explorador tivesse a chance de pensar o porquê de aquele cajado estar apontado em sua direção, seu corpo já não respondia às suas ordens. A Lágrima da Morte foi tomada de seus dedos e levada para uma sede Conselho dos Magos. E durante dez reuniões os Altos Magos discutiram o destino final do artefato. A maioria desejava portá-lo para que fosse utilizado em eventuais combates. Mas nem a todos agradavam a premissa de guerras. Estes, por sua vez, foram pressionados com argumentos sobre a guerra de concentração de artilharias, que levavam silenciosamente a Ordem dos Cavaleiros contra o Conselho dos Magos. Acuados, retesaram no que diz respeito à esperança de uma paz eterna. Liere, no entanto, defendia que a Lágrima da Morte devia ser destruída, ou ao menos lacrada, de modo a evitar que a ganância e a destruição assolassem a Terra uma vez mais, como fizeram nas eras sombrias. Mas a partir da oitava reunião, Liere deu-se por vencida. Sempre era confrontada por todos quando expunha suas teorias e era questionada constantemente sobre sua confiança para com o Conselho. Seu prestígio decaía gradativamente a cada reunião e eminentemente já não era considerada uma pessoa leal às “Altas Decisões”. Tendo ciência disto, Liere guardou seus argumentos para si durante as oitava, nona e décima reuniões, que se desenrolaram muito mais pacíficas e ligeiras. Foi combinado, por fim, que a votação definitiva aconteceria na décima primeira reunião, a qual aconteceria unicamente para a votação. Por esse motivo, Liere teve que ser aguardada e durante o tempo que levara, se preparava pra enfrentar a decisão que mudaria o curso da história.

Uma vez que estavam todos os sete representantes do Conselho dos Magros ali, a votação teve início. Os integrantes dariam sua opinião final quanto a destruir a Lágrima da Morte, escondê-la para nunca mais ser encontrada ou portá-la para si, como uma arma à disposição do Conselho.

Infelizmente, Liere sabia que o resultado era óbvio. A cada reunião que passava, o interesse pela Lágrima da Morte crescia e nas proporções atuais era muito tarde para se livrarem dela facilmente. Nos pedaços de pergaminho entregues a Deamer não só constavam a decisão de cada um, mas também a justificativa para tal. Dentre elas, coisas como “Não poderia haver modo melhor de alcançar nosso objetivo” ou “Se não confiarmos em nós mesmos, qual o sentido dessa organização?”. Eram ambos argumentos que Liere replicara em reuniões passadas, mas ela sabia que, uma vez instaurada naquelas mentes, a sede de poder não se esvairia com as palavras de uma Maga sozinha.

Não era exatamente o que ela desejava, mas o resultado final surpreendera Liere. Alguém ali estava com ela – dois votos marcavam a favor da destruição do artefato, contra cinco a favor de guardá-la. Ela olhou ao redor para os outros Altos Magos, procurando saber quem a apoiara. Uma vez que o voto não era revelado, a Alta Maga não conseguiria descobrir quem dali estava secretamente ao seu lado, ficando apenas com meras suposições. Por mais que tivessem ficado satisfeitos como resultado final, todos os demais Magos demonstravam apenas a surpresa pelo voto contra extra.

— Está decidido. – Deamer, de pé, esclarecera. – A Lágrima da Morte se reservará ao uso exclusivo do Conselho dos Magos e estará sujeita ao uso quando a maioria do Conselho estiver de acordo.

— Antes do término, - Seirundir acrescentara: – Quero convocar uma reunião extra desta Esquadra, onde falaremos de desocupação continental.

— Você não pode estar falando sério! – Liere deixou escapar. Ela própria mal percebera que havia se levantado da poltrona. – Existem assuntos e preocupações mais importantes no momento.

— Alta Maga Vallet, acalme-se. – Deamer a aconselhou. Liere ofegava de ódio.

— Por que os protege tanto, Liere? – Dinky se intrometia. – Eles estão contra nós e no nosso lugar não hesitariam sequer um instante em nos atacar.

— Seirundir, também penso que estamos indo rápido demais. – Giovanni disse, sem sair de sua pose estática.

— Não vamos esperar que eles nos perpassem outra vez! – Seirundir berrou contra Giovanni, batendo violentamente o punho sobre a mesa. Houve um momento de silêncio.

Dinky voltara a se sentar. Porém, Liere continuara como estava, esforçando-se ao máximo para se controlar.

— Liere tem razão. – Deamer falou tranquilamente. Por um instante, Liere pensou haver uma esperança naquilo tudo. – Há ainda assuntos pendentes para serem debatidos. Como por exemplo, Lamond Tartras.

Obviamente, Dinky fez questão de se impor:

— Mate-o logo. Veja o estado que ele está. Vai ser melhor pra ele.

— Devíamos matar você que está muito pior, ignóbil asquerosa. – Liere irrompeu. Dinky já estava de pé novamente. Seirundir estava prestes a levantar também. Deamer interviu, enquanto os outros Altos Magos olhavam chocados para Liere e Dinky:

— Por hoje vamos encerrar. Não estamos com espírito para resolver nada. São assuntos que exigem máxima concentração e reclusão de adversidades ou qualquer conflito que faça bloquear o bom senso.

Liere sabia que se continuasse ali seria pior, pois poderia se descontrolar como acabara de fazer. Deu as costas para o grupo e deixou o Grande Salão, a tempo de ouvir Dinky sussurrar algum apelido de mau gosto. Fechou a porta dupla e repousou as costas sobre ela, em seguida a cabeça, deixando um suspiro escapar. Tentava empurrar em sua mente que sabia desde o início que as coisas iam terminar daquele jeito e perder o controle só a prejudicaria. Mas com toda aquela ignorância de seus “parceiros”, arrogância de mais alguns e hipocrisia, principalmente do líder, a faziam querer explodir.

A Alta Maga buscou sua espada e cajado no cômodo, segurando-se para não destruir as demais armas. Quando seguia seu caminho de volta para a floresta, Liere parou ao se aproximar da porta com barras de aço. Lembrou-se do que dissera o prisioneiro... “Hipocrisia”... A palavra ecoava em sua mente. Liere agora decidira o caminho que queria trilhar. Ela somente esperava que não fosse tarde demais. Deixou a porta de aço para trás e caminhou com pressa para a floresta. Reencontrou Sillas amarrado à Sempra-Maior e o montou, seguindo mata adentro.

Os outros membros do Conselho dos Magos ainda não haviam deixado o Grande Salão. De fato, ainda estavam em seus respectivos lugares, desenvolvendo um debate à ausência de Liere. O assunto era justamente ela.

— Liere vai nos trair. – Dinky dizia enérgica, tentando fazer seus olhos encontrar os do reflexivo Dreamer. – Vai correr para os braços dos associados da Ordem e vai nos revelar.

O silêncio prevaleceu por alguns segundos. Cada mente ali procurava uma conclusão para o debate.

Magara, então, perguntou, embora seu tom não fosse interrogativo:

— Do que exatamente estamos fugindo?

Os Altos Magos o encararam. Deamer se levantou, um sorriso havia se formado em seu rosto.

— Magara tem razão. – Começou. – Talvez nossos inimigos, desta vez, sejam nossos maiores aliados.

As peculiares estátuas do local testemunhavam a conversa. O Mago que segurava suas armas numa posição nada ameaçadora. A moça que libertava um pássaro que jamais a deixaria. Um meio busto, que estranhamente, como era possível notar, detinha algo mais que a obra original...

***

As nuvens não fizeram grande presença naquele dia e o Sol brilhou intensamente pelo resto da tarde. A brisa natural de Lessália não tocou a pálida face de Liere durante o crepúsculo. Com uma promessa de retorno, a Maga partira para Azbahr, um pequeno vilarejo ao sul da Floresta dos Lamentos, pertencente ao grande reino de Sumarsa. Havia seguido a trilha sudoeste logo que deixara a Cabana Wincher e por nenhum momento interrompera sua viagem. Sillas permitiu-se se recobrar e matar sua sede no Rio Hasmirdan, que corria sob a ponte de madeira ao norte do vilarejo, como uma tortuosa linha de fronteiras. A Alta Maga sempre era bem recebida por aquele povo, em suma de Humanos, com raros Magos que despontavam ali uma vez por tempo. Liere respondia bem à hospitalidade. Assistia o povo com o que podia, desde suprimentos tragos de vilas maiores ao auxílio de alguma criança que tombasse enquanto brincava. Quando Liere visitava Azbahr, costumava passar os dias ali, sendo bem recebida na casa dos Torwell, um casal de anciões de bom coração, que faziam questão de ceder o quarto do filho falecido. Assim como a maioria das cabanas da vila, o lar era formado simplesmente de madeira, colhida e arquitetada pelos próprios moradores. Mas desta vez, quase tão rápido quanto tinha chegado, Liere deixou o local, retomando o mesmo caminho que tinha feito antes do anoitecer. Desta vez, estava mais revigorada e embora mais calma, seu semblante demonstrava um misto de anseio com uma sólida determinação. Ela levava um pacote a mais que se dependurava à sela de Sillas, que, por sua vez, compartilhava dos sentimentos da mestra, galopando ferozmente em direção à Cabana Wincher.

A viagem se estendera por mais um sexto do dia.

Liere desmontou de Sillas e o amarrou na familiar Sempra-Maior. Passou a mão sobre a crina do cavalo e abriu um leve sorriso - talvez o único que tivesse se permitido àquele dia.

— Obrigado por estar comigo. – Liere disse ao animal, carinhosamente. Cobriu seu rosto com o capuz aderente à túnica e equipou-se com sua e espada e cajado. Apressou-se em direção à Cabana Wincher e subiu seus degraus de granito preto. Porém, vacilou diante à porta de entrada, ao notar que esta estava entreaberta. Várias hipóteses a ocorreram, deixando-a reflexiva, mas principalmente alarmada. Liere desembainhou sua espada e a posicionou a sua frente. Entrou pelo corredor que outrora estava mal iluminado. Desta vez, todas as tochas estavam apagadas. Com os dedos nas paredes, seguiu pelo assombroso breu sem hesitações até que seu tato atingiu as barras da porta de aço. Outra vez teve um mau pressentimento. A tranca que abria em horizontal estava totalmente puxada, de modo que a porta se movia livremente para abrir passagem.

Com a espada sempre em riste, desceu os degraus para o porão das celas. Com a lâmina, bateu nas barras produzindo um som alto de ferro com ferro. Esperou por alguma resposta do prisioneiro o qual visitara mais cedo, mas não veio alguma. Seu coração disparara. Procurou desesperadamente pela trava da cela, resvalando os dedos sobre as barras e paralisou-se ao encontrá-la – também estava destrancada, tendo sido deixada apenas recostada.

— Fugiu?! – Liere se perguntou. Já se preparava para voltar pela escada, quando escutou uma familiar respiração pesada ecoar ao fundo. Tateou pela escuridão para dentro da cela, até que sua bota bateu contra um corpo ao chão. Ela se agachou e, devido ao brilho intenso, conseguiu visualizar na escuridão os olhos de pupilas vermelhas de Lamond Tartras se abrindo.

— O que houve? – Liere perguntou assustada.

— Vieram me visitar. – A voz rouca de Lamond ecoou. Liere sentiu seus pelos da nuca arrepiarem por um momento, devido ao assombro que o timbre do outro transmitia.

— Tentaram te matar? – Perguntou Liere apreensiva.

— O Mago me atacou, mas não parecia saber o que estava fazendo.

Liere embainhou a espada e ajudou Lamond a se levantar.

— Não temos muito tempo. – Ela disse, - Consegue andar?

O explorador grunhiu algo que Liere entendeu como um sim, mas ao dar um passo, Lamond vacilou contra ela. A Alta Maga passou o braço do prisioneiro sobre os ombros e retirou a espada da bainha, usando-a para tatear no escuro. Saíram da cela e com um pouco de dificuldade subiram a escadaria de pedra para o térreo.

— Por aqui...

Lamond desvencilhou o braço dos ombros de Liere.

— Deixe-me ao menos guiá-lo pela mão. - Liere sibilou para o outro no corredor escuro, alcançando a mão dele antes que respondesse. Liere sentiu a mão áspera e calejada de Lamond contra seus dedos delicados; as unhas esbarravam em sua luva de leve, mas mesmo pelo fraco atrito, já haviam feito cortes no tecido. A Alta Maga o guiou até as portas de entrada, onde a luz refletida pela Lua os cegou por um instante. Liere obtivera a visão de Lamond nítida pela primeira vez. Ele era, de fato, um Sombrio: sua pele estava inteiramente escamosa e enegrecida, seus cabelos cheios haviam se acinzentado; seus dentes incisivos brotavam para fora da boca sem lábios. Uma fenda demarcava a face de Lamond do cenho à mandíbula, atravessando seu olho. Ele se espantou quando Liere recuara, embora soubesse que ela o fizera instintivamente, afinal, ela já estava ciente da aparência que Lamond possuiria. Para piorar, o explorador estava trajando as mesmas vestes que usara quando fora preso, há mais de quarenta dias. Estas estavam rasgadas nos braços e deixavam a maior parte da barriga à mostra. As calças não chegavam aos joelhos e seus pés animalescos estavam descalços. O corpo demonstrava tantas cicatrizes que Liere não conseguira dizer qual ferimento havia sido causado recentemente.

Lamond apenas encarou a Maga enquanto esta hesitava. Subitamente, Liere alcançou o braço do explorador e o posicionou sobre seus ombros, segurando-o pelos quadris e o ajudou a descer as escadas de granito. Avançaram num passo rápido para a floresta, em direção ao local onde Liere deixara Sillas. Mas ao depararem com a Sempra-Maior, Liere entrou em estado de choque. Havia dois cavalos no local, mas nenhum deles era o seu. Sobre os mesmos, homens trajados com pesadas armaduras negras faziam guarda de frente a árvore espessa.

— Aí está. – Um deles comentou sob o elmo, manuseando a rédea para aquecer sua montaria. Liere se desvencilhou de Lamond e aproximou alguns passos. Por um momento, achou que aquilo não estava acontecendo e seus olhos a estavam enganando.

O cavaleiro negro da direita sacou sua espada.

— Onde está Sillas? - Liere gritou. Contudo, sua voz falhara e a pergunta não soara com a força que ela desejara.

O outro cavaleiro sacou sua espada também e segurou firme a rédea de seu cavalo. Intimidante, exclamou:

— Logo vai juntar-se a ele.

Antes que percebesse, Lamond foi puxado por entre as árvores próximas, por rotas que levavam para as profundezas da floresta. Liere o guiava pela mão, enquanto rapidamente abria caminhos com a espada. O som dos galopes crescia, apontando que os cavaleiros estavam se aproximando. Liere e Lamond corriam ofegantes. A Alta Maga seguia sempre alguns passos numa direção e de súbito, dobrava por entre caminhos que Lamond sabia que passariam despercebidos por qualquer viajante comum. Saltavam raízes altas e moitas emaranhadas, mas os galopes não pareciam se distanciar. Em certo momento, Liere parou de correr, respirando com dificuldade. Lamond aproveitou para se recobrar enquanto a Maga olhava ao redor. Ele percebeu que a mão de Liere sangrava...

— Por aqui! – Ela disse de súbito, agarrando, sem pestanejar, a mão de Lamond e adentrando em meio às Sempras. Os dois corriam sob aquele assombroso luar, perdendo velocidade enquanto o som dos cavalos aumentava. Liere começou a lacrimejar. Eles não conseguiriam naquela velocidade...

As esperanças se esvaíam...

Um relinche. A Alta Maga se virou, tendo tempo somente para ver o cavalo no ar, que saltara triunfante de dentre as árvores.

***

Natureza-mãe, levanta teu berço de raízes

Acomoda teu filho neste ninho amadeirado

Na noite uivante sangue fora derramado

E nesta noite os lobos uivam...”

***


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Notas finais do capítulo

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