Pássaros Incapazes De Voar escrita por Sâmara Carvalho


Capítulo 1
Singular




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/249713/chapter/1

     - Isso não te parece estranho? Quero dizer, enxergar que nós sejamos mesmo como os pelicanos, depois de todos esses anos? – Finalmente Isabel chegara a uma conclusão de seu raciocínio. Não tenho certeza, mas devíamos estar ali há umas duas horas, jogando conversa fora, enquanto ela tagarelava sobre os pássaros que cruzavam o horizonte, que avistávamos do dique onde estávamos sentados. - É, acho que é isso, nós somos mesmo pelicanos.

      Isabel era obcecada por aves. Lembro-me bem do primeiro presente que a dera – nosso primeiro aniversário de namoro, comprei-lhe um pingente no qual havia pendurado uma miniatura de uma águia, sua ave preferida. Não era de se espantar que essa fosse sua favorita, afinal, há duas horas estou sentado ouvindo-lhe falar de toda a beleza extraordinária existente por trás dessas águias - com a qual Isabel, certamente, se identificara. “São uma raridade”, disse-me ao lhe dar o pingente, “aves desse tipo merecem um olhar diferente, um contemplar especial”. A descrição que me dera há, deixe-me lembrar... duas horas, certo?, era bem mais esclarecedora. Fazia sentido que ela chegasse a esta conclusão. Não só sobre as águias, mas também sobre os pelicanos. Ficamos em silêncio um tempo. Isabel sabia que eu estava absorvendo seus pensamentos. Melhor dizendo, entendendo-os e transformando-os em meus.

     Isabel não entendia as águias – como alguém poderia entender, afinal? Mas sabia como elas se sentiam. “Se sabe como elas se sentem é porque as entende, ora”, disse-lhe eu, certa vez. “Não, não as entendo. Da mesma forma que não entendo a mim mesma, vez ou outra”, respondeu-me. Agora isso fazia sentido. Mas só agora, que eu mesmo não pude entender a mim.

      Lembro-me a primeira vez que me falou sobre águias. Posso lembrar com clareza do brilho que havia em seus olhos naquele momento, encarando-as e descrevendo-as, da forma mais sutil possível – grande ave, longas asas, beleza indescritível e com seu árduo gosto por viver sozinha. Era essa última a maior semelhança entre elas. Isabel nunca se apegara a ninguém, nunca fora de sonhar com um felizes-para-sempre ou um até-que-a-morte-nos-separe. Ela gostava de viver. Viver cada segundo como se fosse eterno. E depois, buscava formas diferentes de viver essas pequenas eternidades, longe de tudo e todos que lhe lembrassem o passado. Mas comigo era diferente. Nossa eternidade parecia mesmo ser eterna. E talvez fosse.

    Mas voltando as aves, pois era sobre elas que eu ouvira minha velha amiga tagarelar durante as últimas duas – talvez agora três – horas. Eu não conseguia entender o que Isabel dizia comparando-nos aos pelicanos. São aves eficazes, vivem livres e soltas rodeando os mares, porém sempre juntas. Talvez precisassem umas das outras. Talvez apenas gostassem de uma companhia. Mas nós dois sabíamos que era a primeira opção.

      - Algumas aves voam em “V” para que não sofram tanto desgaste durante as viagens. –disse-me. - As de trás gastam menos energia, pois as da frente quebram a corrente de ar para que elas possam passar mais tranqüilas. Quando as da frente estão cansadas, elas trocam de posição. Diferente das águias que, talvez por se julgarem auto-suficientes, voam sozinhas.

- Então você é uma águia. – Conclui.

- Foi o que eu sempre achei. Sempre me senti uma águia porque nunca precisei de ninguém para que pudesse voar e me manter no vôo. Sempre deixei minhas próprias asas me guiarem. Achei que nunca precisaria de ninguém. Até eu conhecer você.

- E você acha mesmo que precisa de mim? – Perguntei.

- E você não? – suspirou, - Sei que preciso. Tanto quanto os pelicanos precisam dos outros pra que possam chegar mais fortes à seus destinos. E durante este tempo sem você, não tenho ido a lugar nenhum. Não tenho forças para voar contra o vento sozinha.

     Pigarreei para disfarçar o desconforto causado pelas suas palavras. Suspiro.

- Nós poderíamos ter nos casado. – Disse-lhe. Um sorriso brincou em seu rosto.

- Talvez. Mas acho que eu ainda pensava ser uma águia na época em que namorávamos. Mas não importa. Agora, tantos anos depois, nosso tempo já se foi. Tudo que nos resta é essa boa e sincera amizade. Afinal, nós somos pelicanos, não somos? Vamos ter sempre um ao outro, porque nenhum de nós chegaria bem a lugar nenhum sozinho. Isso não te parece estranho? Quero dizer, enxergar que nós sejamos mesmo como os pelicanos, depois de todos esses anos?  É, acho que é isso, nós somos mesmo pelicanos.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Pássaros Incapazes De Voar" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.