As Sete Cores Do Arco-íris escrita por Mayumi Sato


Capítulo 3
Anil: Flores para um aristocrata[C] - P.03


Notas iniciais do capítulo

YAY! Senhoras e senhores, eis a última parte dessa one-shot colossal! É quase inacreditável que eu finalmente tenha a concluído! Eu me sinto como se tivesse terminado uma long! Eu agradeço a todos os leitores que acompanharam essa estória e por todos os incentivos que recebi - através de reviews e da lisonjeira recomendação da senhorita Alface- para continuá-la! Eu espero que essa conclusão seja satisfatória para todos vocês!^_^
Como sempre, as notas finais são extremamente importantes, então não deixem de lê-las!



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Nós levamos poucos minutos para chegar ao café. Ele não era muito distante da praça. Havia uma modesta distância de dois quarteirões entre esses espaços. Todavia, apesar dessa favorável condição, devo dizer que ao entrarmos naquele estabelecimento, sentimo-nos como heróis que haviam acabado de encerrar uma epopéia.

Aqueles que presumem que compartilhar um guarda-chuva é algo romântico, claramente não passaram por isso e estão pensando apenas em determinados contextos.

Quando há um tênue chuvisco e os envolvidos não se importam em se molhar, pois estão passeando casualmente e não sentiriam a diferença se fossem atingidos por tinta ou por pólvora, uma experiência como essa pode ser agradável. Diferente da situação daqueles que, em meio a uma tempestade, são forçados a compartilhar um guarda-chuva para se protegerem da água torrencial. Por maior que seja um guarda-chuva, um desses indivíduos sempre pensará que está se molhando e que o outro está mais acomodado, o que culminará em trocas de acusações e empurrões entre ombros. Além disso, haverá uma falta de sincronia em seu caminhar, pois ambos estarão apressados para chegarem ao seu destino, mas a pressa terá significados diferentes para os dois. O mais lento acusará o mais rápido de deixá-lo para trás. O mais rápido criticará a lentidão do outro. Essas diferenças de velocidade tornarão o trajeto mais demorado, conflituoso e desordenado. Havendo objetos em suas mãos, a preocupação em protegê-los, em oposição ao desespero exacerbado em chegar-se a um abrigo, também dificultará o trajeto.

Faço essas afirmações baseadas nos breves, mas exaustivos minutos em que precisei dividir um guarda-chuva com aquele que pretendia levar-me a um café. Quando passamos pela porta, fui invadido por uma onda de alívio e êxtase e pela decisão de nunca, nunca mais submeter a tais condições novamente.

O meu acompanhante, por sua vez, não pareceu compartilhar de minha recente serenidade e manteve sua impaciente agitação, mesmo dentro do confortável ambiente no qual estávamos acolhidos.

Antes que eu pudesse indagar por que ele estava assim, Gilbert apressadamente identificou uma mesa desocupada, ao lado da enorme vitrine de vidro do café, guiou-me até ela e ofereceu-me uma cadeira para que eu me sentasse. Em seguida, depositou seus pertences sobre uma das poltronas vazias a minha frente e guardou o desenho que estava dentro de seu casaco, em uma pasta que lhe pertencia. Por presumir que, concluídas essas ações, ele se sentaria à minha frente e, por fim, relaxaria, espantei-me ao ver o quão ativo e inquieto ainda era o seu semblante, quando ele levantou-se da mesa.

– Peça o que quiser, Rod.- ele declarou de repente - Eu voltarei em breve.

O que estava acontecendo, afinal?!

– Eu...!

– Não se preocupe! – Gilbert interpelou-me prontamente e começou a afastar-se de mim, caminhando de costas para a saída em um ritmo ridiculamente acelerado para a situação, e ele já estava encostado na porta de vidro, quando exclamou em um volume alto o suficiente para que eu o ouvisse, a despeito do elevado volume da chuva e dos sons provenientes do café - Eu voltarei logo! Contenha a sua dor e não derrame lágrimas pela minha ausência! Peça uma sachetorte para mim!

– O que você está...?!

Não pude concluir minha reclamação. Gilbert havia desaparecido por trás da porta.

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O café ao qual Gilbert levara-me era um recinto bastante confortável, com uma sobriedade que me agradava imensamente. Em cada mesa de madeira, havia duas largas poltronas de um tom verde-musgo que contrastava muito bem com o forte marrom dessas e com o brilho dourado das luminárias. A minha poltrona, especificamente, tinha uma excelente localização. Ela encontrava-se ao lado de uma ampla vitrine que me permitia ver a queda de infindáveis gotas frias do lado de fora. A chuva era feroz e, eu presumia, seria longa. O sonoro chiado provocado pelas múltiplas colisões entre a água e o solo ressoava grandiosamente, quase apagando o som da Take Five que tocava no café. O aroma de café sobrepunha-se aos outros, mais adocicados, e tomava todo o ambiente.

Aquele era um ótimo local para um passeio e, naquele instante, eu deveria estar apreciando minha visita a ele. Deveria estar feliz por estar ali, um espaço tão aprazível, e não no exterior do café, onde caía uma chuva impiedosa. Os meus sentimentos, contudo, eram muito diferentes daqueles que seriam esperados por mim.

“Onde ele está?”

Eu estava ansioso, impaciente e vagamente insatisfeito. Precisei unir forças e ponderações racionais, para impedir-me de sair naquela tempestade para encontrar Gilbert. Ele havia saído há apenas alguns minutos, mas eu já tinha a necessidade de vê-lo. Uma frustrante, incômoda e urgente necessidade de vê-lo.

Antes de sermos atingidos pela chuva, a minha conversa com Gilbert havia alcançado um ponto extremamente importante, no qual a resposta dele poderia influenciar consideravelmente nossos futuros. Evidentemente, eu gostaria que ela viesse logo!

A réplica dele poderia ser positiva ou negativa para os meus anseios, e eu tinha confiança de que poderia lidar com qualquer uma delas. Havia aquela que, sendo sua escolha, possivelmente provocaria em mim um grande desapontamento, mas eu estava acostumado com decepções e poderia perfeitamente suportar mais uma. O que eu não mais podia suportar era aquele terrível suspense que me dominara, desde o momento em que fomos interrompidos pela chuva.

Como Gilbert podia ser tão insensível ao quanto suas ações deixaram-me inquieto? Saindo abruptamente do café, sem explicar-se ou comentar nada sobre o progresso de nosso diálogo... Ele poderia ser mais impiedoso ou estúpido?

“Onde você está, seu tolo?”

A verdade é que, acima da minha ansiedade, eu sentia medo.

E se Gilbert realmente houvesse se ofendido com a minha acidental provocação? Ele havia saído para refletir sozinho? Para evitar dar uma resposta ao retornar? Ele pensava que eu simplesmente esqueceria aquele tópico se ficasse momentaneamente sozinho? Considerando-se a pressa com a qual ele deixara o café, essas possibilidades eram bastante tangíveis. Eu poderia jurar que ele não retornaria, caso seus materiais de pintura não estivessem comigo.

...Eu não queria que agisse assim. Não queria que ele se decidisse a ignorar o nosso diálogo, por pensar que eu havia o rejeitado, antes que ele tivesse uma oportunidade de externar suas perspectivas ao meu respeito. Não queria que ele mudasse seus planos e, por conta própria, optasse por afastar-se de mim e tratasse-me meramente como a pessoa retratada em sua pintura. A minha provocação foi puramente instintiva! Não cogitei que ela pudesse ofendê-lo. Eu não queria isso!

– Você pode parar de chorar, jovem mestre! – uma voz familiar e arrogante ressoou, de repente, interrompendo meus devaneios e fazendo-me subir meu olhar para deparar-me com uma figura que, apesar de completamente encharcada, parecia queimar em entusiasmo - O incrível eu retornou para agraciá-lo com a minha magnânima presença!

Sou incapaz de descrever o alívio que o amplo sorriso de Gilbert e aquelas sentenças tão simples trouxeram-me.

– Eu não estava chorando.

– Você pediu a minha sachetorte? – ele perguntou, retirando seu casaco, sentando-se em sua poltrona e ignorando minha aparente indiferença à sua chegada - E o qual foi o seu pedido?

– Um expresso.

– E o que mais?

– Como eu poderia fazer outros pedidos em um estabelecimento com preços tão abusivos? – indaguei, cruzando os braços sobre o peito, com uma expressão vagamente reprovativa e insatisfeita.

– Ah, quão mesquinho, jovem mestre! – ele exclamou, sorrindo jocosamente, com divertida surpresa. Após esse primeiro instante de desagradável deboche, ele amenizou seu sorriso, fechou seus olhos, sacudiu o rosto para os lados e garantiu-me em um tom tranquilo e pretensiosamente complacente - Não havia necessidade de tamanha economia. Eu o convidei, então irei pagar o que você quiser. Em troca, admire-me e dedique sua gratidão eterna ao incrível eu!

– Nesse caso, eu desejo um bordeaux e uma mozarttorte. - declarei imediatamente, despido de qualquer hesitação, enquanto passava os olhos rapidamente pelo cardápio. Minha generosidade e minha moderação foram trancadas em mim, pelo meu desejo de aproveitar-me muito bem daquela tentadora oferta e pelo meu suave e acumulado ímpeto de vingança contra meu acompanhante.

– Você é bastante contraditório, jovem mestre. – Gilbert constatou, franzindo as sobrancelhas, devido à mudança abrupta dos gastos totais de nossa mesa, com uma gravidade excessiva que poderia ser considerada cômica.

– Acredito que essa seja uma das minhas qualidades. - eu comentei espirituosamente, com um sorriso discreto e satisfeito.

– Eu também penso assim. – ele disse, e pude ver que aquela resposta fora tão espontânea quanto sincera. Diferente do meu caso, ele não estava brincando... o que era bastante embaraçoso para as duas partes desse diálogo.

Houve um rápido momento de silêncio e constrangimento entre nós. Instantaneamente, nós abaixamos nosso olhar e tentamos nos ocupar para ignorar o quanto aquela cena havia sido desconfortável para ambos. Eu comecei a folhear aleatoriamente o cardápio. Gilbert tossiu secamente e apanhou o seu casaco para remexer em seus bolsos, inquieto.

Nessa distração forçada, ele acabou por apanhar seu celular em um desses bolsos e, tendo sua atenção despertada por algo na tela, ele deu um suspiro aborrecido e cansado.

Argh. Eu preciso mandar algumas mensagens, Rod, antes de terminar o rascunho do seu retrato. – ele comunicou, evidentemente não muito animado com a tarefa - Os meus subordinados estão completamente aflitos com a minha ausência de réplicas aos e-mails deles. Acho que eles pensam que eu me cansei deles e fugi para a Itália.

– Por que eles pensariam algo assim?

– Porque eu já fiz isso.

Nós trocamos sorrisos, em um instante de divertimento momentâneo, contudo, o meu desapareceu com a mesma pressa, com a qual surgiu, quando realizei que Gilbert mentira para mim, no início de nossa conversa.

– Espere um pouco. Você disse que o seu celular estava descarregado!

Dessa vez, foi o sorriso dele que falhou de repente. Os traços perderam sua harmonia e começaram a se desorganizar em seu rosto, gerando uma expressão bastante peculiar que ainda lembrava muito um sorriso, ainda que estivesse distorcida pelo que me parecia uma mistura de nervosismo e terror. Aquele rosto, demasiadamente similar ao de um patético marido adúltero sendo flagrado com sua amante por sua esposa autoritária, foi o que me convenceu inteiramente da culpa de Gilbert, impossibilitando que eu cogitasse na possibilidade de que ele houvesse cometido um engano ou que algum mal-entendido tivesse ocorrido.

Era bastante óbvio que aquele tolo tentara me enganar deliberadamente.

– Eu disse isso? – ele desviou seu olhar para os lados, com um riso ansioso - Não. Eu não me imagino dizendo isso. Você deve estar enganado, Rod! O incrível eu não...!

– Eu sequer me darei ao trabalho de questionar porque você mentiu. – eu respondi asperamente em um tom grave e acusatório, contendo meu fôlego e minha irritação – Apenas entregue-me o seu telefone. Eu irei ligar para o Ludwig, imediatamente, e pedir que ele me busque... Céus, o Ludwig! Que horas são?

– Rod, não se preocupe. – Gilbert falou, muito rapidamente, evitando com muita discrição a resposta que eu realmente queria ouvir - Se ele não veio durante toda à tarde, por que ele apareceria, agora? Algum imprevisto deve ter acontecido. Não deve ter sido nada demais, visto que você não foi avisado, mas o suficiente para que ele demore. Se você estava tão apressado, por que não pegou um táxi para ir ao endereço dele?

– Eu não percebi que tanto tempo havia se passado... – eu admiti espontaneamente, antes de me deter por noticiar o que exatamente eu estava dizendo e, com uma compostura que somente não era completa por conta de alguns vestígios de rubor que restavam em meu rosto, mudar o desenvolvimento das minhas justificativas para evitar o constrangimento que eu sofreria, caso Gilbert também percebesse o que eu estava dizendo. - Além disso, eu não tenho senso de direção, então sou facilmente enganado por motoristas de táxi e pago muito mais do que devo, quando os utilizo.

Com esse comentário meu, ele ergueu seu rosto em minha direção, arregalou seu olhar imensamente e sua boca formou uma linha muito retilínea que desceu em seu rosto, como se caísse por ele.

Ah. Eu gostaria que o espanto dele me mortificasse, mas eu estava deveras acostumado àquela reação. Mais do que gostaria, para ser franco. Era aborrecedor perceber o quanto as pessoas se impressionavam com a minha falta de orientação e com a minha completa resignação a ela.

– Jovem mestre, você tem qualquer ideia de quão meigas foram as afirmações que você acabou de fazer? – ele indagou, com as sobrancelhas intensamente franzidas, e pude ver que ele estava honestamente surpreso, embora não pelas razões que eu supusera. Certo. Eu não estava esperando aquilo. - As suas frases foram mais doces do que a minha sachetorte será! – ele exclamou. Em seguida, novamente recomposto, ele abaixou o volume de sua voz, retornou seu olhar para a tela de seu telefone e propôs muito solicitamente, com uma voz que sugeria um sorriso oculto - Eu devo acompanhar-lhe até a sua casa, Rod, para que os lobos não o apanhem?

– Não. Eu tenho medo do que poderia ocorrer, caso eu prossiga a acumular débitos com você.

Ele apenas riu brevemente, não me dando uma resposta completa, por ter retornado a se ocupar com o envio de suas mensagens. Com o desvio da atenção dele para outro foco, tornei a sentir-me ansioso. Todavia, dessa vez, o sentimento mais latente, dentro de minha ansiedade, não era meu medo, mas minha impaciência.

Os flertes de Gilbert haviam prosseguido. Ele parecia muito bem-humorado e nada ressentido com o constrangimento que eu impusera sobre ele, há minutos atrás. A sacola plástica, ao seu lado, comprovava que ele tivera um motivo – ainda secreto, para mim – para sair e não havia o feito simplesmente para me evitar. As minhas perspectivas, por consequência, eram melhores do que eu inicialmente presumira.

O que, então, deixava-me tão irascível e frustrado?

Apesar de supor que a resposta de Gilbert seria positiva, ela ainda não chegara. Desde nossa fuga da tempestade, que se iniciara em um dos piores momentos possíveis para a queda de uma chuva, nem mesmo uma menção implícita foi feita quanto à resposta que eu tanto ansiava.

Ele estava me tratando exatamente do mesmo modo como estava antes de minhas palavras acidentais. Supostamente, eu deveria me sentir otimista com isso, mas estava apenas aborrecido em vê-lo manter-me em um desnecessário suspense, quando era, a meu ver, tão evidente que eu estava ansioso em retornar ao tópico que discutíamos, antes daquela chuva completamente inconveniente. Eu mordia meu lábio inferior fortemente e não pude evitar o franzir de meu rosto. Embora houvesse em mim algum desejo de encarar Gilbert intensamente, comunicando-lhe com meus olhos, a minha impaciência e insatisfação com o seu silêncio, senti-los cair pesadamente sobre a madeira de nossa mesa. Ela estava tão polida que permitia-me ver o vulto de meu reflexo infeliz.

– Erga seu rosto e olhe para mim, Rod.

– Hã?

– Eu preciso terminar o meu rascunho. – ele disse. Como os meus olhos subiram, pude ver que Gilbert havia se ocupado novamente com o meu retrato e estava muito compenetrado nessa atividade.

– Você não molhou a folha?

– As bordas. – ele corrigiu brevemente, não querendo dispersar um fragmento de sua concentração ou de seu tempo – Você poderia manter seu semblante estoico, aristocrata? Eu estou concluindo o seu rosto.

– Por que você me desenhou com um semblante estoico? – eu reclamei justificadamente - Você não poderia ter feito um pequeno sorriso ou algo similar?

– Os seus sorrisos duram pouco mais do que cinco segundos, enquanto a sua expressão severa é quase permanente em seu rosto. – ele explicou, com uma expressão que continha uma diversão quase secreta, por trás daquele semblante tão sério - Por uma questão prática, eu tive que escolhê-la.

Limitei-me a respondê-lo com uma expressão vagamente contrariada e um discreto som mal-humorado. Os meus pedidos chegaram à mesa e comecei a degustar o meu vinho e minha mozarttorte, esforçando-me para ignorar os pequenos olhares que Gilbert me lançava, e o meu profundo descontentamento em perceber que provavelmente ele realmente tencionava ignorar o que havia ocorrido conosco, um pouco antes de deixarmos a praça. Aquela era uma conclusão pessimista, porém, inevitável.

Apesar de estarmos a tanto tempo naquele café, ele não havia sequer mencionado aquele assunto e não se comportava como se estivesse se preparando para eventualmente retornar a ele. Gilbert estava agindo como se nada houvesse acontecido e, percebi com uma decepção latente, talvez fosse essa a sua resposta. Talvez a casualidade e descontração que ele atualmente conferia ao nosso diálogo fossem o resultado de uma decisão de deixar que nosso relacionamento permanecesse em seu estado inicial. Nós conversaríamos, brigaríamos, ele me lançaria flertes ambíguos, para entreter-se com as minhas reações e, em algumas horas ou minutos, quando Ludwig chegasse, nós nos despediríamos e conservaríamos aquela tarde meramente como uma nostálgica lembrança.

Essa aparentava ser a decisão dele e eu não deveria sentir-me magoado, decepcionado ou irritado com ela, contudo, lamentavelmente, todos esses sentimentos agitavam-se velozmente dentro de mim. Essas emoções eram especialmente perturbadoras, pois eu não poderia culpar Gilbert por possuí-las, quando todos os erros que culminaram no meu desapontamento eram unicamente meus.

Eu não deveria ter criado expectativas, mas confesso que as tive. Em grande número, na verdade. E um tanto idealizadas, sendo mais franco ainda. Fora uma estupidez da minha parte, pensar assim. Fora uma estupidez da minha parte, ter aquela reação grosseira e impulsiva, quando ele estava apenas tentando ser gentil comigo. No fim, muitas das minhas ações pareceram-me uma grande estupidez e eu não conseguia parar de revê-las em minha mente e de censurar-me por cada uma delas, repetidamente.

– Ei, Rod.

– Sim? – eu pisquei rapidamente, surpreso com aquela intervenção repentina ao meu mergulho introspectivo.

– Por que você considera tão difícil ter um relacionamento discreto com alguém? – ele perguntou, com um tom extremamente sério e ligeiramente inconformado, e não pude evitar um salto repentino do meu coração. Eu fui tomado por incredulidade instantaneamente porque me parecia tão inacreditável que ele estivesse retornando a esse assunto, quando eu havia acabado de concluir que ele havia sido definitivamente encerrado. Além disso, havia algo no semblante e na voz de Gilbert, naquele momento, que delatavam que o seu retorno àquele tópico não era inteiramente casual. Tendo em conta todo o desfecho anterior de nosso diálogo e de meus pensamentos pessimistas, eu mal podia acreditar que aquela situação estava ocorrendo. - Isso é mais recorrente do que você pensa. – ele continuou, desconhecendo o caos que instalara-se dentro de mim - É claro que é incômodo ter que mentir e esconder sobre um namoro que não possui nenhum motivo para ser ocultado, além do preconceito de alguns bastardos, mas, apesar das dificuldades, se um casal quiser viver desse modo e puderem estar juntos, acho que eles podem superar tais adversidades.

– Quem teria paciência para...? – eu tornei a perguntar, exatamente como havia feito em nossa discussão na praça, todavia, por ainda estar arrependido por ter me exaltado na ocasião, com um pouco mais de tranquilidade e cautela, dessa vez.

– Alguém que também estivesse inseguro. – ele me interrompeu - Acredite. Você não é o primeiro a temer as consequências de assumir a sua orientação sexual, jovem mestre.

– Você teve algum temor?

– De modo algum. – ele quase sorriu com a ideia - Os meus pais nunca se importariam se eu namorasse um homem, uma mulher ou um barril de cerveja. Eles sempre me apoiaram. Os meus amigos também. Na verdade, alguns deles acabaram descobrindo que também eram bissexuais. Eu não tive receios sobre a minha orientação sexual. Para mim, para os meus pais e para os meus conhecidos, a descoberta que eu gostava de pessoas dos dois gêneros não foi nada demais. “Certo, Gilbert, você gosta de rapazes e isso é ótimo, mas o que diabos você fez com a nossa garagem?! Por que os bombeiros estão aqui?!”.

– O que você havia feito com a garagem? – perguntei curiosamente, sorrindo.

– Oh, eu apenas quis testar o que ocorreria com a combinação de alguns produtos de limpeza que haviam em minha casa. Eu era um bom aluno de química, você sabe, e queria fazer parte daqueles gênios que fazem brilhantes descobertas, acidentalmente. Eu fiz uma descoberta, de fato. – ele disse, com sua voz caindo várias notas - Acabei por descobrir que você não deve misturar produtos de limpeza aleatoriamente.

– E como esse fato estaria relacionado à sua orientação sexual?

– Eu estava com o Matthew, um colega por quem eu tinha uma ligeira queda, quando fiz essa experiência. – ele sorriu extensamente, parecendo inexplicavelmente satisfeito com a minha pergunta - Ele ficou realmente assustado com a fumaça que começou a sair e agarrou-se em mim, quando nós estávamos escapando da garagem. Eu sou um homem e era um adolescente. Como eu poderia ter feito outra coisa? Quando nós conseguimos sair, eu derrubei o Matthew no chão e...

– Por favor, não prossiga.

Kesesese! Não se preocupe, aristocrata! Nós apenas nos beijamos! Ele não teve acesso aos meus cinco metros!

– “Cinco metros”?

– O meu...

– Não prossiga!

– Continuando, quando eu beijei o Matthew, cheguei a duas realizações imediatas. A primeira seria a de que eu realmente tinha um interesse romântico e sexual por outros homens, sendo o Matthew, o meu alvo atual. A segunda foi a de que nós deveríamos interromper o nosso pequeno momento romântico, pois a garagem parecia prestes a explodir com o acúmulo de vapor. Quando os meus pais chegaram, um pouco após a chegada dos bombeiros, eu decidi revelar a eles que, conforme minhas suspeitas prévias, eu gostava de outros rapazes e estava cogitando em namorar como Matthew. A reação deles foi aquela que eu descrevi. Eu não mencionei muito os meus pais, Rod, mas eles são ótimas pessoas. – ele me assegurou, com um sorriso morno e gentil, preenchido por afeto e orgulho - Eu aposto que você adoraria conhecê-los.

– Sim, eles parecem ser excelentes pais. – eu constatei, sorrindo tenuamente, com uma ponta de melancolia que não pude evitar ao perceber quão diferentes eram os nossos pais e o quanto essas diferenças me afetavam - Eu gostaria que a revelação da minha orientação sexual pudesse ocorrer de um modo tão divertido quanto a sua... – admiti em um suspiro fraco.

– Você possui suas próprias histórias divertidas, jovem mestre. – ele me confortou, inclinando-se ligeiramente para frente para dar tapinhas gentis no topo da minha cabeça - A sua experiência como barreira humana entre dois casais seria uma delas! - ele exclamou, com um sorriso farto de um indisfarçável teor implicante que tremia nas bordas de sua boca.

– Eu não a considerei divertida!

– Ela não foi somente divertida, Rod! – ele riu - Ela foi hilária! Voltando ao nosso tema original, há algumas pessoas inseguras, como você, que também anseiam ter um relacionamento um tanto escondido, mas não são somente elas que poderiam tornar-se seu par romântico, jovem mestre. Há uma segunda possibilidade.

Eu engoli em seco.

– E qual seria?

– Encontrar alguém que gostasse verdadeiramente de você.

–...

– Assim, mesmo que essa pessoa se impacientasse com todos os segredos e disfarces envolvidos entre vocês, ela teria paciência e compreensão para seguir o seu ritmo por valorizá-lo o suficiente para engolir esses problemas. Como eu disse, é extremamente chato que um casal se veja forçado a ocultar a relação que possuem por temerem a reação da sociedade, mas as desvantagens não são tão absurdas quanto lhe parecem, Rod. Se as desvantagens em possuir um relacionamento secreto fossem tão grandes, não haveria tantos casos de adultério, pelo mundo! – ele brincou, penso que para aliviar parte da grande tensão que havia surgido entre nós. Havia sido uma tentativa válida e sensível, todavia, a despeito do meu reconhecimento de que aquela havia sido uma brincadeira, eu não conseguia rir e não conseguia me acalmar. Eu simplesmente não conseguia. Percebendo o quanto permaneci quieto e sério, Gilbert não entendeu muito bem a minha reação e decidiu acrescentar para tentar melhorar o que dissera - Sendo que o seu relacionamento ainda teria uma vantagem em relação aos adultérios. A sua ausência de peso na consciência por estar bastante ciente de que não está fazendo nada de errado.

– Hum... – com algum esforço, eu produzi esse som de entendimento e esperei com todo meu coração que, por enquanto, ele não pedisse mais do que aquilo.

– Pense nisso, Rod. Você sequer saiu com algum homem e não teve quaisquer experiências físicas com pessoas do mesmo sexo. É natural que a principio você comece a sair com alguém, de uma forma um tanto reclusa. Com o tempo, você poderá adquirir confiança e começar a tornar-se mais resoluto a assumir sua orientação sexual por perceber que vale a pena correr determinados riscos para poder estabelecer-se com aquele que você ama. E se isso não ocorrer, não haverá problemas também. Eu tenho certeza que vocês arranjarão outros métodos para construírem sua felicidade juntos. No pior dos casos, se a sua insegurança não for inteiramente dissipada, tenho certeza que você ao menos permitirá gradativamente que o seu relacionamento não seja secreto, mas discreto. Isso ocorrerá sem que você sequer realize, jovem mestre. Você irá adquirir amigos que saberão do seu namoro e se sentirá a vontade para revelá-lo a conhecidos confiáveis. Você será apresentado aos pais do seu namorado, assumirá seu namoro para o vendedor, quando for comprar um apartamento para morarem juntos, e se sentirá mais a vontade para ir a encontros em lugares públicos com ele. Em resumo, não há nada de errado em tentar ser feliz apenas com o seu piano, Rod, mas eu sugiro que você tente dar uma oportunidade a um nobre cavalheiro que venha a conquistá-lo.

Diante desse forte discurso, que parecia ter um intento que ia muito além de um encorajamento a uma mudança de postura minha, ainda que Gilbert o tivesse proferido com uma serenidade que beirava ao descompromisso, eu me apanhei em um instante de intensa confusão e agitação interior.

Gilbert definitivamente estava sendo bastante insistente em seu ponto de que não seria tão terrível que eu tentasse me permitir entrar em um relacionamento com outro homem. E eu definitivamente não imaginava que curso de ações ele esperava de mim ao fazer esse pronunciamento.

Eu não sabia exatamente o que extrair daquilo que ele me dissera. Eu deveria retirar uma sugestão daquilo? Ou ele apenas estava querendo expressar o óbvio, sem ter nenhum outro propósito em mente?

Eu não conseguia entendê-lo. Não conseguia de modo algum entendê-lo. O meu coração estava em choque. Eu achava que havia uma segunda mensagem muito clara naquelas declarações, mas eu obviamente não era o juiz mais imparcial naquele contexto. Se Gilbert não tivesse nenhuma intenção – e a minha racionalidade insistia que ele provavelmente não tinha - além de me transmitir uma lição de vida ou algo assim, eu seria um completo estúpido por chegar à outra conclusão.

Sendo assim, eu precisava me acalmar e adotar uma postura defensiva para me proteger dos efeitos de minha própria agitação.

– Você não está sendo demasiadamente persistente em convencer-me a sair com alguém? - eu finalmente apontei, enquanto um sorriso amargo e suavemente cruel começava a surgir em meu rosto, e fiz um enorme esforço para não transparecer nenhum nervosismo ou antecipação em meu semblante.

Para a minha surpresa, ele não riu do meu comentário. Ele não riu nem fez uma piada como “O que há com essa suposição, jovem mestre? Eu sei que você não pode conter os seus sentimentos pelo incrível eu, mas tente disfarçá-los, pelo menos!”. Ele não descartou meu comentário com um dar de ombros ou um olhar de estranhamento. Gilbert simplesmente permaneceu parado e, com um olhar arregalado e com um semblante que não emitia qualquer outra emoção além de choque, ele se manteve em um silêncio indissolúvel e atônito, como se não estivesse preparado para uma fala como a minha. O nervosismo dele rapidamente foi transmitido para mim e, automaticamente, o meu rosto copiou a expressão dele e o meu espírito incorporou seu desconforto sufocante. Visualmente, nós nos tornamos duas estátuas em uma mesa.

Houve uma pausa entre a minha pergunta e a reação de Gilbert. Provavelmente, a pausa mais importante e estática daquele diálogo. Por um instante, o mundo pareceu ter sido congelado, como se houvesse se tornado uma fotografia.

Gilbert foi o primeiro a se mover.

Ele abaixou seus olhos, contraiu seu rosto no que me parecia uma expressão extremamente pensativa, umedeceu seu lábio inferior e respirou tão profundamente que pude ver seus ombros acompanharem o movimento de sua inspiração e expiração. Após essa sequência demasiadamente lenta de movimentos, ele ergueu seu olhar novamente e o lançou sobre mim, com uma indissolúvel decisão.

– Sim, eu estou. – ele disse, resoluto, encarando-me incisivamente.

Ele fez essa afirmação com tamanha convicção e força que perdi completamente minha capacidade de encará-lo diretamente e senti meu olhar cair de imediato, em uma evidente tentativa de evitar um encontro com o dele. Eu, que não estava preparado para uma reação tão franca e direta, fiquei tão desconcertado quanto ruborizado ao recebê-la.

Eu tentei sorrir, eu acho. Ou melhor, tentei produzir um sorriso sutil, sardônico e ligeiramente provocativo que me permitisse voltar a minha compostura e disfarçasse minha real reação interior ao comentário de Gilbert. No entanto, eu simplesmente não consegui. O meu coração batia disparadamente, roubando-me o fôlego necessário para esse procedimento. Os meus lábios apenas conseguiram produzir suspiros.

Por evitar tão avidamente, devolver o olhar que perceptivelmente ele mantinha fixo sobre mim, não noticiei os seus movimentos e tive um pequeno sobressalto ao perceber que uma folha era colocada diante de meu rosto.

– O que você está fazendo? – perguntei, irascível, afastando-a de meu rosto.

– Esse é o rascunho de “Roderich Eldestein, um aristocrata com sérios problemas de interação com a natureza, segura um guarda-chuva, sob uma macieira”. – Gilbert respondeu muito tranquilamente - Você não deseja vê-lo?

– É óbvio que espero vê-lo, seu tolo. Eu ainda tenho minhas apreensões quanto ao seu trabalho. O nome dele em si me incomoda.

– Confira-o, por conta própria, jovem mestre. – ele deu um curto sorriso, oferecendo-me a folha novamente.

Com alguma hesitação e com uma expressão que sugeria maior polidez do que entusiasmo, calmamente, apanhei a folha que ele me oferecia, segurando-a pelas bordas e deixando-a um pouco distante de meu rosto, para verificar o rascunho de meu retrato.

Devo admitir que, a princípio, eu tinha mais pressa do que interesse em vê-lo. Por maiores que fossem a minha admiração pelas artes e a minha curiosidade em saber como estava o meu retrato, eu estava impaciente com aquela nova curva em nosso diálogo, quando ele estava finalmente deixando de delongas, e esperava encerrá-la rapidamente. Essa pressa, no entanto, foi esquecida quando meus olhos pousaram sobre a imagem, assim como quaisquer outros pensamentos e emoções presentes em mim até então.

–...

Eu estava estupefato com a harmonia entre as linhas prateadas que se misturavam, formando imagens sobre a folha. Aquele rascunho não era uma fotografia minha e o traço de Gilbert tinha um estilo característico demais para se igualar à realidade. Ele a reinterpretava.

A macieira, por trás da minha figura, parecia mais envelhecida e retorcida do que a original e passara a parecer parte de um cenário de contos de fadas. Suas folhas e flores haviam sido preservadas e, sem que eu entendesse como, elas ainda pareciam prestes a mover-se, ainda que estivessem paralisadas no papel. Abaixo delas, havia o que eu poderia considerar como uma versão minha que, embora tivesse uma expressão severa, era muito mais amável do que eu verdadeiramente era, devido a um quê de encantador no exagero com o qual Gilbert salientou os meus olhos e reduziu drasticamente minhas pernas, fazendo-me parecido com um personagem de livros infantis. Essa figura, como eu, segurava um guarda-chuva - propositalmente reduzido a algo que possivelmente mal conseguiria proteger um girassol, devido a sua mínima extensão - em sua mão direita e, percebi um tanto surpreso, mantinha um imenso buquê de rosas em seu colo.

– O que acha, Rod?

–... Eu estou impressionado. – admiti, boquiaberto, deixando que o ar que havia se acumulado em meus pulmões escapasse por meus lábios entreabertos em uma expiração funda - Não imaginava que você pudesse desenhar assim. Você fez um curso de pintura?

– Sim, quando eu estava na faculdade e o sexo aleatório começou a tornar-se monótono, achei que seria uma boa ideia encontrar outro passatempo. Eu não poderia tocar a guitarra sem lembrar-me da minha gloriosa banda e do seu terrível fim, então achei que seria bom desfrutar do meu tempo livre por conta própria, sem precisar sentir remorsos.

– Você fez uma ótima escolha. – eu falei com uma sinceridade que resultou em um pequeno sorriso meu, contemplando a folha em minhas mãos com um misto de afeição e apreço - Esse é um lindo desenho.

– Fico feliz que você reconheça meus admiráveis talentos, jovem mestre. – ele sorriu genuinamente.

– Sim, eu os reconheço, mas sinto-me obrigado a fazer-lhe algumas perguntas sobre esse desenho. Senhor Gilbert, o que é isso?- eu questionei, com uma expressão de surpresa e vago divertimento, reparando em um detalhe singular daquela figura que não deveria estar ali - Você desenhou um buquê em meu colo? Essas são rosas? Por que vocês, pintores, insistem em adicionar elementos inexistentes em retratos que deveriam ser cópias quase fieis da realidade?

Bah. Se nós quiséssemos um retrato completamente fiel à realidade, nós compraríamos uma câmera fotográfica. – ele deu de ombros - Ademais, Rod, eu não adicionei um elemento inexistente.

– Não? – eu ergui uma sobrancelha, desafiadoramente - E como o senhor justifica a presença desse inexistente buquê de rosas?

Eu não estava irritado, transtornado ou espantado com o fato de ele ter adicionado um buquê de rosas em meu colo. Em fatos, eu não tinha nenhum sentimento ou interesse em particular por aquela que me parecia ser uma escolha unicamente artística. E eu gostava de rosas. Se fiz aquela questão, foi tão somente por não compreender a relutância de Gilbert em admitir que havia inserido elementos irreais em sua tela. Ele realmente esperava convencer-me que aquelas flores eram idênticas às folhas da macieira? Era ingênuo de sua parte cogitar que alguém poderia acreditar em uma mentira tão óbvia.

Aguardei uma réplica de Gilbert, mesmo acreditando que ela seria absurda ou irônica demais para que persistíssemos naquele tema. Em resposta, não o vi abrir a boca para responder-me, e sim, apanhar a sacola de plástico que estava ao seu lado e, para o meu profundo, intenso e quase indescritível assombro, retirar dela um imenso buquê de rosas vermelhas, prontamente disposto em minha direção.

– Como você vê, eu estava me adiantando, Rod.

Oh, céus.

– Ah.

– Sabe, Rod, apesar de o meu rascunho estar concluído, eu não terminei meu quadro. – ele disse e, por motivos completamente novos, a voz dele caiu várias notas novamente - Eu preciso continuar a vê-lo, aristocrata.

....

....

...

– Eu terei de continuar a frequentar aquela praça? – eu perguntei em uma voz muito baixa, quase engolida pela minha garganta.

– Não. – ele riu, percebendo que havia certo lamento na hesitação da minha pergunta e onde exatamente se encontrava aquele lamento - Nós iremos ao cinema, a cafés, restaurantes e concertos. Eu não disse que precisava vê-lo somente para terminar o quadro, jovem mestre.

Uma série de pensamentos poderia ter surgido em minha mente, quando ele fez essa declaração. Expectativas, dúvidas, medos, possibilidades de resposta, devaneios incoerentes e lotados de emoções importunas... O aparecimento de todos esses, principalmente, em simultâneo, seria plenamente justificável, em condições como aquela. Todavia, estranhamente, ao ouvir aquilo, apenas uma palavra ecoou em minha mente completamente em branco: finalmente.

Após uma série de interrupções, de códigos em nossas ações e palavras, de voltas e voltas desnecessárias, de suspensões, tensões e dúvidas, eu, finalmente, obtivera uma declaração clara das intenções de Gilbert. Ela ainda estava sob uma tênue camada de sutileza, contudo, era suficientemente direta, em minha perspectiva. Para o meu próprio conforto, era preferível que ele não fosse mais direto do que isso, por enquanto. Eu sabia o que ele queria dizer e obtivera, após uma espera longa e exaustiva, uma oportunidade de respondê-lo. Aquilo era mais do que suficiente para mim e eu, que já estava começando a desorientar-me quanto ao ritmo de minha respiração, ficaria bastante atordoado, caso ele houvesse se expressado de outro modo.

E qual seria a minha resposta?

Ela deveria ser um “não”, evidentemente. Um “não” firme e definitivo que encerrasse seus planos absurdos ao meu respeito. A personalidade de Gilbert era demasiadamente antagônica a minha. Ele tinha modos terríveis, um temperamento incorrigível e um ânimo que eu nunca poderia acompanhar. Ele era terrivelmente implicante, impulsivo, imaturo, petulante e possuía uma confiança excessiva em relação a si mesmo, que muito proporcionava a perpetuação desses defeitos seus.

Entrar em um relacionamento com Gilbert seria insensato, arriscado e exaustivo. Logicamente, não me era possível aceitar de bom grado circunstâncias inconvenientes como essas. Se eu quisesse agir racionalmente, a minha resposta, definitivamente, seria um “não” educado, simples e direto.

Sim, esse seria o desfecho mais previsível, porém, com um buquê imenso de rosas vermelhas em minhas mãos, um adorável rascunho sobre a mesa, acompanhado por vinho e uma mozarttorte, em um ambiente intimista como aquele, com a Gone With the Wind tocando suavemente, enquanto Gilbert lançava-me um sorriso que tinha um efeito destrutivo sobre a minha razão, não era fácil manter minha calma e racionalidade para refletir sobre os motivos que eu possuía para rejeitá-lo. Seria difícil que eu mantivesse minha calma e racionalidade para fazer qualquer gênero de reflexão.

Realizei que havia me deparado com o que não poderia deixar de ser uma armadilha severamente calculada e, para o meu aborrecimento com a maleabilidade de minhas determinações, extremamente eficiente.

Eu pude conter meus instintos, a princípio, pois tudo que ocorria parecia-me tão absurdo e surreal que precisei de certo tempo para aceitar a realidade dos fatos que haviam ocorrido comigo, desde o princípio da tarde. A minha resposta, no entanto, parecia inevitável.

Se supostamente rejeitar Gilbert deveria ser a mais óbvia escolha possível, no presente, ela me parecia a mais absurda hipótese cogitada por mim. Ela me parecia tão absurda que eu não conseguia me imaginar dizendo isso. Eu mal podia imaginar uma cena tão contraditória com o que o que queria e esperava, sendo iniciada por mim.

Seria tão horrível aceitar o que Gilbert me propunha? Ele inegavelmente possuía muitos defeitos, entretanto, concomitantemente, possuía qualidades que me pareciam bastante aprazíveis e uma notória capacidade de apreciar as minhas e suportar os meus. A nossa convivência, como aquela tarde, seria repleta de conflitos, divergências de opiniões, provocações e trocas de insultos e, eu esperava, assim como aquela tarde, seria fascinante, surpreendente e divertida.

Precisei dar um demorado suspiro de resignação, antes de abrir a boca para replicá-lo. A minha resposta seria inevitavelmente embaraçosa, mesmo que eu estivesse decidido a manter uma expressão absolutamente indiferente ao dizê-la.

– Senhor Gilbert, eu...

E foi nesse instante que uma interrupção completamente inesperada aconteceu, quando uma voz indignada e grave explodiu dentro do recinto, provocando um sobressalto assustado em nossa mesa.

– IRMÃO!

– Lud?!

– Senhor Ludwig!

A minha boca desceu por meu rosto, como se houvesse se tornado um líquido. Eu tive três espantos no breve espaço de alguns segundos. O espanto por ouvir alguém gritar, o espanto por identificar que essa pessoa era Ludwig e o meu espanto final, que provinha de um acontecimento tão incogitável que demorou um momento para surgir, de perceber que meu antigo colega de faculdade havia se referido a Gilbert como seu irmão.

Irmão.

Ludwig Beilschmidt, meu antigo colega de faculdade, meu melhor amigo e uma importante parte de meu passado amoroso. Gilbert, meu acompanhante que conheci por acaso em uma praça e o indivíduo com quem eu estava prestes a...

Irmãos.

O sentido do mundo parecia estar se desintegrando a minha frente.

– Irmão, o que você está fazendo, nesse café?! - Ludwig exclamou colericamente, avançando em nossa direção, como se estivesse prestes a revirar a nossa mesa. Ele estava ignorando por completo o estado catatônico no qual eu me encontrava e centrando toda a sua atenção no alvo de sua fúria, o que absolutamente não me incomodou porque eu precisava de um instante para me recuperar de minha mortificação. - Por que você não atendeu as minhas ligações?! Passaram-se quatro horas, desde que você saiu de casa! Eu estava prestes a ligar para a polícia! O Feliciano está chorando! Faça imediatamente um relatório conciso e claro declarando suas razões para encontrar-se nesse estabelecimento, em companhia ao Roderich, quando você deveria estar em casa há horas!

– Espere um pouco. Vocês são irmãos? – eu indaguei, por sentir-me totalmente incapaz de acreditar nisso, sem alguma relutância.

Ludwig, pela primeira vez, desde sua entrada no café, dirigiu-se a mim, fitando-me com tanta culpa e pena quanto um dono que é forçado a deixar seu cachorro em um abrigo para animais.

– Roderich, por favor, perdoe o meu irmão estúpido por importuná-lo por tanto tempo. – ele disse, com uma expressão contraída em pesar e profundo lamento, fazendo uma pequena reverência em minha direção - Eu peço minhas sinceras desculpas por todas as ações irritantes que ele tenha feito. Quaisquer que tenham sidos os transtornos que ele provocou para trazê-lo até aqui, saiba que não permitirei que ele persista em incomodá-lo.

Após ter confirmado que aquelas circunstâncias absurdas eram reais e que meu acompanhante era o culpado, eu finalmente encontrei fôlego e motivos para interrogá-lo.

– Você conhece o Ludwig? – eu me voltei para Gilbert, dessa vez, mais indignado do que propriamente pasmo - Você é o irmão do Ludwig?!

Eu estava enfurecido e determinado a arrancar explicações e pedidos de desculpa dele, mas Gilbert estranhamente ignorou por completo as minhas questões e voltou-se para o Ludwig com um ar tão acusatório quanto aquele que pairava sobre ele.

– O que você está fazendo, Lud?! - ele reclamou notoriamente chateado, agitando os braços como se tentasse desajeitadamente expressar o seu desgosto através deles - O que há com o seu timing?! O que há com o seu bom senso?! Você está me atrapalhando!

–Hã? – entreabri minha boca, não entendendo o que ele quis dizer com aquilo. “Atrapalhando”?

– Atrapalhando?! – Ludwig exclamou em voz alta, pelo visto, tão confuso e irritado quanto eu - O que, exatamente, eu estou atrapalhando?! Eu somente pedi que você buscasse o Roderich, na praça, pois eu estava ocupado, cuidando do Feliciano, que está com febre! O que vocês estão fazendo, afinal?!

– Eu também gostaria de saber isso. Senhor Gilbert, você mentiu para mim? Qual era o seu propósito ao enganar-me dessa forma? Eu exijo uma explicação.

– Apresente uma justificativa formal, agora! Você possui três minutos para falar!

Eu e Ludwig estávamos ávidos por explicações e mesmo meu relaxado e confiante acompanhante não pôde suportar por muito tempo nossa série impaciente e inflamada de questões. Se a culpa não o acometeu em nenhum instante, seu transtorno veio logo.

Argh! Lud, você pode parar de agir como um general?! – Gilbert resmungou impacientemente, bagunçando seu cabelo com suas mãos - Eu sei o que você me pediu e eu iria obedecê-lo! – ele respondeu, batendo os punhos na mesa com irritação e inclinando-se para o seu lado esquerdo para confrontar Ludwig mais diretamente - Você é insuportavelmente chato, quando faz exigências! Nos meus planos originais, eu iria para praça, deixaria a minha tela e a minha palheta com a Mona, traria o aristocrata para o portão do prédio e voltaria para terminar a minha incrível “Velhos entediados jogam xadrez, no alvorecer”! Se não fiz isso, a culpa foi sua!

– Como a culpa poderia ter sido minha?!

– Você não me avisou sobre quão adorável era esse aristocrata! – Gilbert exclamou enfurecidamente, apontando enfaticamente em minha direção.

– O Roderich... Adorável? – Ludwig repetiu, piscando os olhos, inteiramente perplexo.

– Eu não estava preparado para isso! Como você deixou de comentar algo tão relevante?! No momento em que o vi, o choque me deixou um tanto desnorteado. Eu simplesmente quis conhecê-lo melhor e apaguei de minha mente todas as suas instruções. Como você vê, meu caro rei Leônidas, a culpa foi inteiramente sua. Além disso, por que eu o contataria? Seria estupidez atender ao telefone ou levar o Rod para o apartamento! Por que eu deveria deixar que você o roubasse de mim, quando eu havia acabado de encontrá-lo?!

– Adorável? – Ludwig perguntou de novo, ainda muito desnorteado com essa informação para conseguir absorver as outras - O Roderich?

Certamente eu poderia ter me entristecido com o estarrecimento de Ludwig quanto a esse elogio direcionado a mim, considerando-se que eu havia tido sentimentos românticos por ele, durante um certo período de nossa convivência. Entretanto, eu estava ocupado com sentimentos muito diferentes.

Diferentes e contraditórios. Uma parte minha queria rir, uma parte minha queria berrar ofensas contra aquele estúpido e manipulador chamado Gilbert Beilschmidt e uma parte minha não estava exatamente certa do que ela gostaria, além de me importunar terrivelmente. Como o habitual, essa confusão nas minhas emoções teve o único efeito de me deixar em silêncio.

– Desculpe-me por ter mentido, aristocrata. – Gilbert, enfim, voltou-se para mim, com um pequeno sorriso infeliz e um olhar opaco e distante - Eu apenas... Se você soubesse que eu era o irmão do Lud e que meu propósito, ao vir àquela praça, seria para levá-lo ao apartamento dele, você ao menos permitiria que nós conversássemos?

“...”

Não. Eu não permitiria. Eu exigiria que ele me levasse imediatamente ao apartamento de Ludwig e me encarregaria de evitar qualquer relação com ele.

– Não. – eu respondi e os meus olhos se arregalaram ligeiramente com a minha realização de algo.

– Como pensei. – ele deu de ombros, com um meio-sorriso dotado de amargor.

– Permita-me averiguar se estou compreendendo essa atual situação. – pediu Ludwig, estendendo sua mão, em um gesto que pedia por tempo, e inspirando com calma e lentidão, como se o oxigênio pudesse organizar os dados recém-adquiridos por sua mente. - Você desenvolveu um interesse completamente abrupto pelo Roderich e o enganou, para trazê-lo a esse café, desprezando inteiramente a preocupação que suas decisões causariam em nós?

– Exatamente!

Ludwig apanhou meu pulso e puxou-me com firme delicadeza.

– Roderich, vamos para casa. Eu não almejo ser forçado a bater em meu irmão, em um lugar público.

– Ei, Lud! O que você está fazendo?! – Gilbert levantou-se imediatamente - Não roube o meu aristocrata! É injusto que você aja assim, quando fui eu que comprei todas aquelas dezenas de manuais estranhos para que você começasse a namorar com o Feli, somente porque você teve vergonha de voltar à livraria, após comprar o primeiro...!

– Manuais?

– D-Despreze o que ele está dizendo! Vamos! Agora!

E com essa declaração, ele forçou-me a sair do café, velozmente.

_____________________________________________________

A chuva ainda era forte, mas havia sido reduzida. Estar novamente exposto a ela, fez-me perceber essa mudança. Ela havia sido uma tormenta com ventos que tentavam carregar o nosso guarda-chuva e com gotas incessantes e quase pesadas de água fria. Agora, ela era uma chuva. As gotas caiam em um ritmo moderado, provocando pequenos estalos ao colidirem com nossos guarda-chuvas. As calçadas aos poucos retornavam a um tom mais claro de cinza. O cheiro da umidade tornou-se mais sutil e a atmosfera menos sufocante.

– Eu peço desculpas, muitas desculpas, minhas mais sinceras desculpas pelo comportamento do meu irmão, Roderich. – falou Ludwig, enquanto caminhávamos para o seu apartamento, protegidos pelos dois guarda-chuvas que ele trouxera. - Eu não imaginei que ele desenvolveria algum interesse por você. Não é recorrente que ele sinta-se atraído por alguém tão subitamente. Ele é muito dedicado em seus próprios entretenimentos para ansiar entrar em um relacionamento. Eu imagino que deva ter sido desconfortável para você. Afinal, você é hétero e, sobretudo, estamos falando do meu irmão, que possui uma capacidade natural para deixar quaisquer pessoas desconfortáveis, mas eu não achei que ele iria...

– Não se preocupe. Eu estou bem.

– Mesmo?

Acenei positivamente com a cabeça.

– Esse é um alívio. – ele suspirou - Eu estava preocupado que você estivesse irritado por ter sido colocado em uma situação tão incômoda...

– Por que você nunca mencionou que tinha um irmão mais velho?

– Hum? Eu o mencionei. Você não se lembra?

– Não tenho nenhuma recordação disso.

– Quando estávamos na faculdade, eu disse a você que o meu irmão havia viajado para a Itália, para fugir dos seus subordinados, que queriam que ele tomasse uma decisão sobre o corte de despesas na empresa dele... Você replicou algo como “A rotina de um empresário egoísta não poderia me parecer mais desinteressante. Por favor, mude de tópico e retorne a tocar o violoncelo.”.

– Essa resposta parece ser minha. – eu reconheci.

– Pensando nisso, o meu irmão também não teve simpatia pela descrição que fiz de você. Quando comentei sobre você, em uma carta que mandei, quando ainda estávamos na faculdade, o único comentário dele ao seu respeito foi “Parece ter uma vida bem monótona, esse aristocrata! Não seja influenciado por ele, quando você tem o meu admirável exemplo a seguir, Lud!”. Eu tenho vergonha de me lembrar disso... Sendo franco, eu tenho vergonha de me lembrar da maioria das coisas que ele fala...

– Ele é realmente um tolo.

– Sim, ele é. No entanto, ele possui algumas qualidades. O meu irmão fez muito por mim, quando eu era uma criança... Os meus pais estavam sempre ocupados, quando éramos mais novos, e eu sempre dependi muito dele. Foi ele, inclusive, a pessoa que mais me apoiou, quando decidi dedicar-me profissionalmente ao violoncelo. Mesmo que todos estivessem comentando sobre a falta de dinheiro e de estabilidade da minha profissão, ele somente riu e perguntou-me se eu finalmente havia chegado a minha fase rebelde, decidindo tornar-me um músico contra a vontade dos meus pais. Posteriormente, ele me deu vários conselhos, apoiou-me bastante e, por alguma razão, disse que eu não deveria desistir do violoncelo, mesmo quando os meus amigos começassem a ignorar a arte para fazer... H-Hum... Ele me fez prometer que eu não desistiria por causa disso. Até hoje, pergunto-me o que ele queria dizer com... Você está rindo?

– Não. – eu cobri minha boca com a minha mão direita - Essa é somente uma impressão sua.

– H-Hum. Enfim, o que eu queria dizer é que, embora não aparente, o meu irmão mais velho possui muitas qualidades. Eu o respeito e o admiro muito, apesar de discordar muitas vezes de sua conduta. Ele pode ter uma postura bastante responsável, quando necessário. Eu espero que você não guarde rancor dele. Não sei por que ele se sentiu tão atraído por você. Não posso imaginar um casal mais incompatível...

– Você acha? – indaguei, casualmente.

– Você não acha? – ele lançou-me um olhar de forte estranhamento.

– Bem, eu...

Antes que pudesse responder, o telefone de Ludwig tocou e detive-me para que ele pudesse atendê-lo. Se questionado, eu negaria ardentemente esta hipótese, mas a verdade é que eu esperava que fosse Gilbert ao telefone e eu esperava adivinhar qual seria o assunto daquela ligação.

– Era o Feliciano. – Ludwig respondeu, frustrando as minhas expectativas, com os traços de seu rosto formando uma expressão sombria e preocupada – A febre dele está aumentando. Além disso, ele me pediu que eu comprasse mais sorvete, pois os nossos potes acabaram... Você se incomodaria de vir comigo, Roderich? Eu aproveitarei minha ida ao mercado, para comprar outros itens necessários e você poderia ajudar-me a carregá-los... Não. Esqueça o que pedi. Vejo, agora, que você está com as mãos ocupadas.

– Ah.

– O que é isso, afinal? Eu pensei que você já havia enviado todos os seus pertences ao nosso apartamento.

Nesse momento, eu realizei que necessitava tomar uma decisão.

_____________________________________________________

Quando entrei naquele café novamente, a As time goes by espalhava-se suavemente naquele ambiente. Era quase irônico que justamente aquela música estivesse tocando, dentro do cenário que vi. Gilbert, com um bico de desgosto e olhos que mesclavam frustração e mágoa, como uma criança que percebe ter sido enganada por adultos, tinha seu rosto encostado na gigantesca vidraça ao seu lado, enquanto bebia o vinho que pedimos e esmagava sua sachetorte com uma prateada colher de sobremesa. Aquele era um perfeito retrato da melancolia e não pude deixar de achar alguma graça ao vê-lo.

Os sentimentos dele eram tão óbvios que não pude evitar meu divertimento ao percebê-los.

– Não estrague a sua sobremesa assim, seu tolo. – eu o repreendi, contendo um sorriso.

– Rod?! – ele teve um sobressalto ao ver-me e quase esbarrou suas costas contra sua cadeira - O que você...?! Desde quando você...?! Por que você...?!

– O seu irmão precisou passar em um mercado para comprar algumas coisas para o Feliciano e pedi que ele me trouxesse até aqui, para que eu pudesse lhe devolver isto. – respondi, entregando-lhe o retrato que ele me dera e que ainda estava em minha posse, devido às muitas circunstâncias complicadas que surgiram após a entrega dele.

– Certo... – ele murmurou lamuriosamente, apanhando o papel em minhas mãos e o observando com um semblante abatido e envolto em névoa que quase me deixou arrependido pela forma como eu estava me entretendo com ele.

Quase.

– Você... – respirei fundo - Você precisa do rascunho, não é? Para completar o meu retrato.

– Você ainda quer que eu o conclua? – ele perguntou, verdadeiramente atônito, arqueando intensamente as sobrancelhas.

– Peça desculpas novamente. – eu exigi secamente - Eu ainda não perdoei inteiramente o seu descaramento em omitir tantas informações ao seu bel prazer...

– Não seja mimado, aristocrata! O incrível eu não se curvará, diante de...!

Gilbert.

– Desculpa. Não guarde rancor, jovem mestre. Esse sentimento não é nada incrível.

– Desculpas aceitas. Como eu dizia, senhor Gilbert, você não terminou o meu retrato, portanto, naturalmente, eu preciso vê-lo.

– Eu pensei que você não gostasse de ir àquela praça, jovem mestre... – ele falou pausadamente e o seu olhar comprovava que ele testando cuidadosamente o significado das minhas palavras.

– Eu não mencionei que teríamos que nos encontrar em uma praça. – respondi com algum divertimento.

E ele finalmente sorriu.

Kesesese! Oh, jovem mestre! Eu estou detectando um plágio nas suas sentenças?

– C-Cale-se, seu estúpido!

Ele continuou a sorrir implicantemente em minha direção e parecia que ele não conseguia parar, apesar do meu forjado aborrecimento com o seu comportamento. Depois de sua estranha diversão silenciosa em observar as minhas tentativas de parecer mais ofendido do que eu realmente estava, ele amenizou o deboche de seu sorriso para indagar com uma dose indisfarçável de satisfação:

– Diga, Rod, quando eu poderei ver o meu aristocrata com sérios problemas de interação com a natureza?

– Hoje à noite, às nove horas, eu provavelmente terei terminado de arrumar o meu quarto...

– Você já está me convidando para ir a ele? Quão direto da sua parte, jovem mestre!

– Se você continuar com esses comentários sarcásticos, nunca entrará nele.

– Eu não permitiria tal restrição. O que acha de mudarmos nossos planos para uma pizzaria italiana às nove horas?

– Embora eu pense que não havia planos iniciais para que eles pudessem sofrer alguma mudança, devo dizer que essa é uma proposta atrativa.

– Às nove, então?

– Às nove. Além disso, você precisa acompanhar-me até minha nova residência, para que eu não acabe me perdendo.

Ele se levantou, trajou seu casaco e deu o sorriso mais amplo e relaxado que vi em seu rosto, desde o início de nosso diálogo.

– Conforme queira, aristocrata.

Eu havia prometido a mim mesmo que não tornaria a compartilhar um guarda-chuva com alguém. Entretanto, vi-me novamente forçado a passar por essa situação e descobri que ela não era tão ruim quanto parecera inicialmente. Em considerável parte, porque a chuva havia sido reduzida. Em outra parte, porque Gilbert não tinha mais nenhuma pressa em alcançar o nosso destino. E nós pudemos caminhar calmamente, lado a lado, com nossos ombros encostando ligeiramente, sem se empurrarem.

– Ei, onde estão as flores que dei a você, aristocrata?

– Em alguma das poças de água, desses quarteirões, creio eu. – eu repliquei, dando de ombros, e ele me lançou um olhar tão horrorizado que não pude continuar a enganá-lo - Eu estou apenas brincando. – ri suavemente, mantendo meus olhos na calçada para evitar possíveis poças d’água- Elas estão em um jarro com água, na sala do apartamento do seu irmão. Não seria agradável deixar que elas morressem. As rosas são muito bonitas, embora eu pense que não tenha sido muito prático que você tenha as desenhado.

– Rod, francamente, você acha que é mais difícil desenhar rosas do que o seu rosto? – ele me replicou com alguma indignação - A sua quantidade absurda de modéstia é um tanto irritante, jovem mestre!

– N-Não é isso! Eu apenas estava referindo-me ao fato que elas morrerão, antes que você possa continuar o meu retrato...!

– Hum? Sim, é óbvio que elas morrerão. – ele estranhou a minha constatação - Eu sou incrível, Rod, mas ainda não adquiri a capacidade de conferir imortalidade às rosas.

– E você poderá pintá-las sem um modelo?

– Provavelmente. – ele sorriu – No entanto, caso seja a sua vontade, jovem mestre, eu sempre posso fingir que não e continuar a comprar rosas “para o seu retrato”. – ele pronunciou as últimas palavras de um modo que era simultaneamente provocatório e provocativo, revirando os olhos - O que você acha dessa proposta?

– Assustadora. – eu respondi sinceramente - Como você pode tramar a esse ponto em tão pouco tempo?!

– Resposta errada, Rod. Nesse momento, você deveria dizer algo como “Oh, Gilbert! Você é um mestre da sensualidade! Meus sentimentos arrebatados de adoração por você fazem todo o meu corpo tremer!”.

– Quem diria linhas tão estúpidas?!

Apesar de estar brigando com ele, naquele instante, eu sorria por dentro.

Sim, talvez aquela escolha trouxesse consequências negativas e fizesse-me repensá-la muitas vezes, mas, como Gilbert dissera, por mais problemática que ela se tornasse, eu sabia que ao contemplá-la no futuro, eu estaria convicto que não poderia ter deixado de tomá-la.

Eu nunca poderia deixar de tomá-la.

_____________________________________________________

[Fim de "Anil: Flores para um aristocrata"]


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Notas finais do capítulo

Olá, queridos leitores! Muito obrigada por lerem essa fanfiction! A primeira one-shot de uma longa coletânea! Eu espero que vocês continuem a acompanhá-la!:3
Como nós alcançamos a terceira parte, eu finalmente poderei explicar como eu relacionei a cor anil ao desafio proposto pela senhorita Naoko. Essas explicações provavelmente farão vocês entenderem melhor o espírito da coletânea e a razão pela qual essa fanfiction é a "Anil" em vez de ser "Vermelho" - como muitos supuseram na primeira parte - ou qualquer outra cor. Essas explicações também deverão convencer vocês de que eu me esforcei ao máximo, escrevendo essa one-shot, e que tive muitos motivos para demorar a concluí-la.
Muito bem! Vamos começar!
Anil: Eu vejo o anil como uma cor fechada, pesada e escura. Como a escuridão, na dimensão das cores, normalmente representa uma mistura de várias cores - o preto seria o exemplo supremo disso - eu decidi associar o "acúmulo" que eu associava anil ao acúmulo de sentimentos e expectativas dos personagens na fic. Esse fator, unido aos outros adjetivos que associo ao anil, explicam o aspecto EXTREMAMENTE introspectivo que, desde o início, pretendi dar a essa one-shot. Além disso, meus queridos leitores, esse acúmulo também se reflete no próprio cenário da fic, uma vez que a fic se inicia em um tempo nublado, com uma quantidade enorme de umidade no ar, até a queda de uma forte chuva que encerra essa primeira tensão. Sim, sim. O tempo nublado também é bastante equivalente com o anil por conta da escuridão que ambos possuem.
Em resumo, a minha percepção do anil me fez optar por uma fic MUITO intimista e introspectiva em que houvesse um aumento gradual da tensão entre os personagens e acúmulo torturante de sentimentos e expectativas entre eles. O acúmulo é tão grande nessa one-shot que termina por influenciar a maneira como o Roderich se comunica em sua narração. Ele se torna contido em relação ao próprio leitor! Vocês podem perceber que, apesar de compreender a situação e seus próprios sentimentos, ele está sendo particularmente indireto e sutil na maneira como expressa suas expectativas e ele não as admite diretamente até o final da fic - eu até possuo minhas dúvidas se podemos dizer que ele realmente as admitiu diretamente no final. Assim como os sentimentos dele evoluem, nós podemos perceber que o fato de que ele está se contendo até os seus limites, acabam por levá-lo a se tornar um pouco mais franco, embora ainda não completamente. Ele passa de "Que indivíduo interessante, esse Gilbert Beilschmidt" para "Tome uma iniciativa, seu cretino!", o que foi inegavelmente divertido ao meu ver.XDD
O aumento da tensão foi algo que eu também busquei expressar no texto, através da variação no comprimento dos parágrafos. Eles acompanham a chuva e o acúmulo de sentimentos dos personagens, aumentando excessivamente em alguns momentos e sendo extremamente reduzidos ao final da estória. Na segunda parte da fic, eu os deixei propositalmente enormes e até um pouco confusos e peço desculpas aos leitores que se perderam por conta disso(-_-) porque eu queria que a própria forma do texto expressasse o conteúdo da one-shot e as emoções dos personagens. O que posso dizer? Eu tive que escolher entre organização e minhas intenções criativas e preferi a segunda. Como os meus parágrafos são naturalmente longos influência da senhorita Jane Austen e eu queria deixá-los ainda mais longos talvez tenha ocorrido certo exagero em alguns momentos. Eu peço desculpas por isso, mas as minhas intenções eram as melhores possíveis e eu estou, de modo geral, bastante satisfeita com o resultado final dessa fic. Eu estou particularmente satisfeita porque eu sempre quis fazer uma estória em que o título somente se tornasse compreensível no final e, por conta das inesperadas divisões dessa one-shot, eu acidentalmente criei uma!/o/
Eu agradeço imensamente à senhorita Naoko pelo desafio e espero que a fic tenha ido de encontro às suas expectativas! As músicas de jazz que eu utilizei são muito boas! Vocês deveriam escutá-las, meus caros leitores!
A próxima fic dessa coletânea será a Mar Verde Esmeralda baseada no desafio Amarelo da senhorita Bell. Não, eu não estou trocando as cores. Ela está bem avançada e espero postá-la em breve!
Novamente, muito obrigada pelos seus comentários e por todo o apoio que vocês sempre me dão! Eu sou muito, muito grata a todos vocês! Como sempre, eu espero que vocês continuem acompanhando, apreciando e comentando os meus trabalhos!
Bai, bai!:3
PS: Oh, sim! Eu estava quase me esquecendo! A lição principal dessa fanfiction, meninos e meninas, não é "Se a sua orientação sexual não agrada a sociedade, tente escondê-la!". Eu acho que pessoas que possuem coragem para assumi-la e para lutar ativamente por uma sociedade igualitária estão completamente dotadas de razão e merecem nossa admiração. A verdadeira lição dessa one-shot seria esta: respeite o ritmo das pessoas. Aquilo que pode parecer fácil para você, talvez seja muito difícil para outra pessoa e ela não pode ser cobrada a agir como você e não pode ter seus temores e escolhas menosprezadas. Tente compreender que as pessoas são diferentes quando for aconselhar alguém e sempre tente perceber as razões e os pontos de vista dela, quando achar necessário dar uma sugestão a alguém ou você pode acabar o machucando acidentalmente! Tente alcançar um consenso ao invés de impor seus conselhos! Os resultados provavelmente serão bem melhores!:)