As Sete Cores Do Arco-íris escrita por Mayumi Sato


Capítulo 2
Anil: Flores para um aristocrata - P.02


Notas iniciais do capítulo

Olá! Perdoem-me pelo meu atraso, mas esse ainda não é o fim dessa one-shot! Eu espero terminar a terceira - e última - parte, muito em breve, mas como não poderia deixar de postar algo, antes do ano-novo, eis a segunda parte dela! Embora ela tenha um grau mínimo de ação, há uma elevada importância dela para a conclusão dessa estória e espero que vocês possam se divertir com a sua leitura! Como sempre, não deixem de ler as notas finais!:3



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– C-Como?!

– Você se sente desconfortável com o que eu disse?

– N-Não! – ele exclamou, de imediato, com os olhos arregalados de assombro e urgência - Absolutamente não, jovem mestre! – ele reforçou, agitando seus braços e seu rosto como se todo o seu corpo acompanhasse sua negação - Eu sou bi, então...! – agitado demais para arranjar o que dizer, ele se calou e abaixou seu rosto rapidamente, como se procurasse pelas palavras certas no chão. Após essa breve pausa carregada de atordoamento, ele expirou como se extraísse um peso de seus pulmões e tornou a encarar-me, mais lívido e recomposto - Eu apenas não esperava que você fizesse uma revelação assim, com essa casualidade, jovem mestre! Eu levei um susto, Rod! Se o incrível eu tivesse uma parada cardíaca, por sua culpa, a humanidade não o perdoaria!

– Eu estava meramente respondendo à sua interrogação. – respondi, desafetado pela agitação atual de Gilbert.

– E-Então, você também...? – ele engoliu em seco, em uma voz marcada por hesitação e expectativa, franzindo as sobrancelhas, interrogativamente.

– Se eu gosto de membros do gênero masculino? – ergui uma sobrancelha - Logicamente. Eu não faria uma afirmação como essa, apenas para divertir-me com o susto das pessoas.

– E-E você já tem alguma experiência com...?

– Não. – neguei instantaneamente a pergunta que já antecipava, inspirando profundamente e umedecendo meus lábios, em meus ansiosos preparativos para o complemento de minha resposta. Por fim, declarei muito honestamente e composto – Eu ainda não assumi minha sexualidade e não sei como comportar-me quanto a ela. Minha ex-esposa, Elisaveta, é a única que sabe de minhas preferências e apenas revelei a ela, pois achei que seria injusto deixar que ela se desgastasse tentando obter a felicidade matrimonial em um relacionamento como o nosso.

Minha revelação, apesar de extremamente pessoal, não me trouxe nenhum nervosismo ou timidez, ao ser dita por mim e, para ser franco, ela se articulou com mais fluidez do que eu poderia prever. Ao concluí-la, senti-me profundamente satisfeito e aliviado por ter conseguido extraí-la tão facilmente de mim, e dei um curto suspiro, com meus olhos fechados em uma expressão serena.

– Em resumo, com exceção a ela, você é o único que conhece a minha orientação sexual. – afirmei mais concisamente.

Nos primeiros segundos após minha declaração, Gilbert, com a testa franzida e a boca entreaberta, manteve-se em um vigilante e pasmo silêncio, observando-me com a desconfiança e cautela de um bisão que avista um predador próximo ao local no qual costuma beber água. Nesse ínterim, as palavras “Será que ele está falando sério?” eram tão visíveis em seu rosto quanto se tivessem sido escritas com tinta.

Por fim, ele tossiu secamente e falou, colocando a sua mão sobre sua testa, como se sua cabeça tivesse se tornado muito pesada para ser suportada sem um apoio adicional:

–... Deixe-me ver se entendi. – ele perguntou, pausadamente, fechando os olhos e dando um suspiro um tanto cansado - Você apenas percebeu que prefere homens há pouco tempo e está confuso com isso, jovem mestre?

– Não. A minha orientação sexual me parecia evidente, desde o meu ensino médio. – respondi, corrigindo-o.

Estranhamente, após essa simples correção, a impaciência dele chegou aos seus limites por razões que não posso adivinhar e, com seu punho fechado batendo fortemente contra um de seus joelhos, ele indagou em uma voz ardente e exaltada:

– Nesse caso, por que você se casou com...?!

– Eu estava com medo.

O ímpeto agressivo de Gilbert foi congelado instantaneamente.

Essa simples sentença gerou um imediato entendimento mútuo entre nós.

Nós nos calamos novamente, encobertos por um silêncio denso e nebuloso e que meu novo conhecido não ousou violar. Por desconforto ou por receio de dizer algo estúpido, ele manteve-se quieto e sério e sequer pôde erguer seus olhos para encontrarem-se aos meus.

Percebendo que meus sentimentos haviam sido assimilados e respeitados por ele, eu prossegui:

– Eu não sei como a sua família lidou com a sua opção sexual, senhor Gilbert, mas estou certo de que a minha não suportaria conhecê-la. Os meus pais são extremamente conservadores. Ambos sempre tiveram uma aversão à homossexualidade, apesar de tentarem disfarçá-la com discursos como “Desde que eles não se aproximem de nós, não teremos nada contra eles”.

– Esse é um clássico. – Gilbert riu de forma seca e breve, contemplando-me com uma melancólica empatia – Assim como “Não há nada de errado com os homossexuais, mas eu nunca permitiria que meu filho se tornasse um”.

– Exato. – eu correspondi tenuamente seu sorriso com o mesmo sentimento – Eu sabia que a minha família e meus conhecidos ficariam mortificados com a minha orientação sexual e passei toda a minha adolescência, aflito com a possibilidade de que eles a descobrissem e com o que eles pensariam de mim, caso soubessem. Foram anos muito difíceis, penso eu, mas acredito que minha situação apenas tenha se tornado intolerável, quando entrei na faculdade...

– Hã?

– Quando entrei nela, eu fiz amizade com Ludwig Beilschmidt, um dos membros da melhor orquestra de nosso curso, que tocava o tímpano. – continuei, ignorando a curiosa expressão de estranhamento que surgiu no rosto à minha frente à minha menção da faculdade e que se agravou, quando mencionei Ludwig - Ele possuía diversas qualidades, dentre as quais, um senso de responsabilidade que eu não poderia deixar de admirar, e, antes que realizasse o que ocorria, eu já havia me apaixonado por ele.

Gilbert engasgou-se novamente.

– O que há com você?

– N-Não, eu apenas...! – ele tentou responder, batendo em seu peito, com a voz interrompida por tosses violentas e seus olhos muito arregalados pelo que mais me parecia ser choque do que uma falta de ar- E-Eu não engoli bem a água...! C-Continue...!

O que havia com ele? Não era essa a reação que eu tinha em mente ao revelar minha história a Gilbert e eu estava sinceramente confuso com o que poderia tê-lo perturbado tanto em minha fala. Apenas uma resposta me ocorreu e embora eu não estivesse certo de que se tratava disso – pois essa resposta era demasiadamente conveniente e lisonjeira para o meu ego – eu decidi tentar apaziguá-lo, baseando-me nela.

– Eu não estou indo morar no apartamento dele, como uma tentativa de seduzi-lo, se é isso o que lhe ocorreu. – retruquei com uma expressão vagamente ofendida - Os meus sentimentos românticos por Ludwig foram dissipados há muito. No presente, apenas o considero como um importante amigo.

– Eu não estava pensando nisso. – ele disse, no entanto, seu engasgo cessou-se e ele parecia inundado por alívio. Eu tive disfarçar o quanto me deleitou perceber isso.

– Bem, como eu dizia, eu fiquei apavorado ao descobrir que estava amando o senhor Ludwig. Parecia que cada frase, gesto ou expressão minha, acidentalmente, revelaria que eu estava amando uma pessoa do mesmo gênero que o meu. Eu passei a viver constantemente acometido por um sentimento de angústia que pesava severamente em meu peito. Estava assustado e infeliz. Por isso, quando a senhorita Elisaveta, a minha querida amiga de infância, declarou-se para mim, eu vi uma oportunidade única de fuga. – fechei meus olhos e dei um suspiro fundo. Anos haviam se passado, mas aquelas recordações ainda eram tão ásperas e cinzentas, como as experiências que as formaram haviam sido, e mantinham-se difíceis de serem lembradas e, especialmente, de serem comentadas por mim. Elas revelavam aspectos inseguros, ingênuos e egoístas meus que eu não gostava de reconhecer, embora fosse forçado a mencioná-los indiretamente. - Se estivesse com ela, ninguém questionaria a minha sexualidade, apesar dos indícios que eu deixasse escapar. Eu gostava da senhorita Elisaveta e não tinha dúvidas de que poderíamos ser felizes, independentemente de minha orientação sexual. Na época, essas razões pareceram-me suficientes para justificar um casamento precipitado como o nosso.

– Com quantos anos vocês se casaram?

– Aos vinte anos. Como disse, eu tinha meus motivos para casar-me com urgência e a senhorita Elisaveta foi movida pelos arrebatamentos da juventude e das paixões. Os nossos pais não aprovaram a pressa da nossa decisão, no entanto, nós concluímos que poderíamos nos arranjar de algum modo.

– E acabaram com um divórcio aos vinte e três anos! – ele abriu um sorriso ligeiramente perverso - Kesesese! É divertido ver como as histórias de amor proibido possuem finais tão apáticos, na vida real!

– Atualmente, eu reconheço que foi um erro termos nos casado tão cedo. – admiti, agitando meu rosto para os lados em um gesto de recriminação interior às minhas próprias ações - Em fatos, o nosso próprio casamento foi um erro. No fim, tivemos apenas aborrecimentos. Nós estávamos sempre ocupados, por termos que estudar e trabalhar para pagarmos nossas despesas. Como você pode presumir, os nossos pais não contribuíam com elas, pois queriam ensinar-nos uma lição sobre as responsabilidades envolvidas em um casamento, e tampouco desejávamos a ajuda deles. Havia muitas dificuldades envolvidas e nós não encontramos muitos motivos para sermos felizes juntos, com exceção a amizade que tínhamos, desde o princípio. Afinal, nós não tínhamos... – eu senti o meu rosto esquentar e a minha voz tornar-se trêmula, pois, apesar de ter iniciado aquele tópico, eu não imaginava como poderia terminar minha frase, sem permitir que ela soasse inadequada. Oh, céus. Como eu diria aquilo? - bem...

– Compatibilidade sexual. – Gilbert complementou, de repente, com uma franqueza que me deixou absolutamente desconcertado.

– N-Não faça comentários vulgares! – eu exclamei, muito enrubescido e um pouco enfurecido com a naturalidade com a qual ele disse algo que tinha tanta dificuldade em comentar.

– Por que essa reação ofendida, jovem mestre? – ele estranhou, inclinando seu rosto para o lado - Foi você que abordou o assunto, incoerente aristocrata! Além disso, essa é a verdade, não é? Você, provavelmente, sequer conseguia ter uma ere...!

– O-O que você está dizendo, seu tolo?! - eu o interrompi, urgentemente, mortificado com a completa falta de recato de Gilbert, além de alarmado e tomado por embaraço com a possibilidade de que estivessem nos ouvindo - C-Cale-se! C-Cale-se, imediatamente!

Kesesese! Eu não ouvi uma negativa até agora, jovem mestre, então devo inferir que meu palpite estava correto?

– O seu descaramento e vulgaridade são absolutamente ignóbeis... – eu murmurei, desgostosamente, com o meu rosto abaixado.

Percebendo o significado camuflado em minha resposta, Gilbert sorriu ostensivamente.

– Eu estava certo. – ele disse, com seus olhos reluzindo um brilho sutilmente maligno.

–...

Infelizmente, eu não podia corrigi-lo.

– Não fique irritado, jovem mestre. – ele sorriu mais amplamente, tendo uma diversão muito óbvia com o meu desconforto - A sua irritação apenas me deleita!

– Eu devo prosseguir minha narrativa ou você pretende interrompê-la com suas interpelações impertinentes? – perguntei, aborrecidamente.

– Por que não os dois?

Gilbert. – eu proferi o nome dele com um tom mais frio do que o gelo, deixando uma ameaça implícita naquele vocativo. Creio que ele a percebeu perfeitamente, visto que as suas brincadeiras pararam e ele fez a expressão contrariada e obediente de um garoto um pouco travesso escutando atentamente as razões de seu castigo.

– Humpf! – ele revirou os olhos, com os cantos de sua boca retraídos em azedume e resignação - Conforme queira, amargo aristocrata!

– C-Como você afirmou, nós não tínhamos uma... – eu tentei recomeçar, mas o meu gaguejar e minha vergonha retornavam progressivamente à medida que eu tentava falar e, em pouco tempo, minha raiva começou a crescer junto a essas sensações. – H-Hum... – eu tentei continuar. Eu realmente tentei. Porém, eu não sabia quão angustiante e perturbadora aquela simples sentença podia ser... Eu tentei por diversas vezes articulá-la, contudo, sempre que meu olhar recaía sobre o repentinamente tão atento Gilbert, um enorme pudor me acometia, deixando que eu sentisse desconfortável e exposto, e provocando uma inflamada vergonha em meu interior que parecia prestes a entrar em combustão a qualquer momento. Nessas condições, seria impossível que eu dissesse algo coerente. E eu culpava Gilbert por aquela situação humilhante! - F-Fique quieto!

– Eu não estou dizendo nada! – ele exclamou, atônito com meu ataque repentino.

– Você pretendia dizer!

– Como você poderia saber disso?! – protestou Gilbert, com alguma indignação - A sua raiva confere-lhe habilidades telepáticas, Rod?!

– E-Em resumo, nós não éramos felizes! – bufei, muito vermelho, desejando encerrar logo aquele assunto e relutando em admitir que Gilbert estava certo - Consequentemente, no ano passado, quando eu descobri que meu amigo, Ludwig, por quem meus sentimentos já haviam resfriado, arranjara um namorado, decidi que deveria refletir se o meu casamento realmente deveria ser mantido. Eu não era mais um adolescente e a ideia de escapar daquele ambiente repleto de pressões sociais e encontrar-me com alguém que eu realmente amasse parecia-me muito atrativa. Essas reflexões culminaram em um divórcio. O divórcio culminou na minha presença nessa praça. E minha presença nessa praça culminou nesse diálogo longo e embaraçante.

E assim foi encerrada, a mais difícil narrativa que já fiz. Gilbert pareceu ter dificuldades em descobrir que ela havia sido concluída, pois ele continuou a me fitar expectativamente por um longo tempo, antes de concluir que essa era a sua deixa para dar uma resposta.

– Que final abrupto, jovem mestre! – Gilbert exclamou, finalmente - Eu esperava algo mais profundo e dramático!

– A minha biografia não foi moldada com a finalidade de promover o seu entretenimento.

– Bem, a minha incrível presença torna essas cenas finais mais interessantes do que todo o resto, portanto, perdoarei a insipidez da sua conclusão. – ele assegurou, com um sorriso caloroso - Por que você disse que não sabia como comportar-se em relação à sua preferência sexual? Você me pareceu muito resoluto em suas decisões, aristocrata.

– Resoluto?

– Sim. Você se mudou da Hungria para a Alemanha para fugir dos seus pais e da sua ex-mulher e tentar conhecer alguém que o interesse, não é isso?

Não, não era isso. Todavia, corrigi-lo exigia explicações minhas mais significativas e intimas do que minhas outras revelações. Meus relatos sobre minha orientação sexual, sobre meus gostos e minha história não eram nada, se comparados à admissão que eu teria que fazer. Ela seria mais difícil e teria mais consequências. No entanto, eu não mais poderia evitá-la. A minha resposta não teve forças para tornar-se mais do que um murmúrio soturno e hesitante.

– Supostamente, seria assim.

Céus. Esse era o momento. O meu coração acelerou repentinamente, quando eu disse isso. Não por conta de minha fala em si ou mesmo por conta de algum receio meu quanto à reação de Gilbert, e sim por meu receio quanto ao que eu estava prestes a declarar. A parte mais importante e decisiva de nosso diálogo havia, por fim, chegado. E eu não me sentia preparado para iniciá-la ou para ver como Gilbert reagiria a ela, ainda que todas as minhas declarações, desde que admiti minha orientação sexual, houvessem nos encaminhado para aquela situação, por minha própria vontade.

Sim, eu precisava dizer aquilo e uma parte minha queria tanto dizer aquilo, contudo, era tão difícil e assustador pensar que Gilbert poderia dar uma resposta que...!

– “Supostamente”? – ele estranhou.

Eu precisava falar.

– Eu... Quando me preparava para a minha mudança, acabei percebendo que não teria coragem de relacionar-me desse modo com outros homens. – revelei, nervosamente, abaixando meu olhar e não conseguindo encarar meu ouvinte, por não estar fazendo essa revelação tão casualmente quanto gostaria. Existiam mais expectativas do que eu possivelmente poderia ou gostaria de admitir a Gilbert em minha fala, e embora eu não pudesse pronunciá-las diretamente, elas pareciam subir por minha garganta e se deterem nela no último instante, dificultando minha respiração. - Há um abismo entre teoria e prática. A-Apesar de sentir-me atraído por algumas pessoas, do mesmo gênero, e de ter alguns sonhos que...

– Sonhos eróticos?

– N-Não! Eu me referia a fantasias...! – o rosto que Gilbert fez, quando eu disse isso, evidenciou que eu necessitava corrigir a direção deturpada dos seus pensamentos imediatamente - N-Não! Não, nesse sentido! Eu me refiro a desejos! Desejos inocentes! Você nunca se imaginou em situações que lhe pareceriam deleitáveis?

– Bem... – os cantos de sua boca curvaram-se em um sorriso sórdido.

– Fique quieto. Tenho a impressão de que apenas me arrependerei, caso permita que você conte os seus desejos. – eu o interpelei duramente, antes de acrescentar, com um corar suave - O-Os meus são inocentes! Eu apenas queria algo como ir a uma ópera, com a pessoa que amo ou receber flores dela!

– Flores, huh? - ele sorriu discretamente, dando um rápido olhar distante para o céu, antes de voltar-se novamente para mim e acrescentar uma expressão repleta de deboche - Quão romântico e tradicional, jovem mestre!

– Estou certo de que adjetivos mais pejorativos seriam utilizados para qualificar os seus sonhos. - repliquei, com muita frieza.

– Possivelmente. – ele admitiu, movendo suas sobrancelhas sugestivamente - Se você possui todos esses planos, por que não concretizá-los, aristocrata? Ainda não veio o distinto cavalheiro que lhe fará a corte?

– Não o procuro ou o espero, portanto, considero normal e conveniente que ele não tenha aparecido. Eu estive me perguntando, ultimamente, se realmente teria coragem ou disposição para entrar em um relacionamento romântico com outro membro do gênero masculino e estou convencendo-me, gradativamente, de que não me sinto apto para agir desse modo. Não por uma mudança quanto a minha sexualidade. Eu ainda tenho meus devaneios românticos. Entretanto... – eu respirei fundo, sentindo-me exatamente como um acrobata antes de um movimento novo e arriscado. - A minha adolescência e o meu casamento com a senhorita Elisaveta foram tão exaustivos... Essa é, para mim, uma rara oportunidade de adquirir uma rotina leve e tranquila. O meu casamento foi desmanchado, os meus pais estão a uma considerável distância e, como passarei a morar com um amigo, as minhas despesas serão reduzidas. Essa é uma chance única para que eu possa ter uma vida desprovida de pressões ou angústias e não sinto que deva desperdiçá-la. Há algo de lamentável no fato de que não encontrarei um par romântico, claro. Ainda assim, não me parece que eu possa ser tão impetuoso a ponto de alterar minha vida, irreversivelmente, quando ela aparenta ter adquirido certa estabilidade. Eu deveria fazer o esforço de enfrentar as convenções sociais, submeter-me às críticas e repúdio alheio, quando poderia simplesmente centrar-me na melhoria do meu piano e encontrar minha felicidade em meu individualismo? Mesmo que eu esteja ciente do quão reprovativo é o meu comportamento passivo e de que existe a possibilidade de que eu nunca seja plenamente feliz, caso não enfrente meus receios e seja sincero quanto aos meus desejos, eu não acredito que possa agir de outra forma. Eu tenho medo das consequências que viriam, caso eu conseguisse um namorado. Não desejo enfrentar novas adversidades, quando consigo conviver bem com a minha solidão. Eu não considero tão simples reunir coragem para tomar uma decisão que apresentaria tantas dimensões, ainda que esse seja o conselho mais frequente. Não é como se eu não desejasse ter um namorado, um relacionamento feliz com alguém que eu amasse verdadeiramente. Eu quero isso. Entretanto, eu não posso...

Aquele era o meu limite. Eu não consegui mais falar. Concluí, entretanto, que não havia nada que ainda precisasse ser dito por mim. Gilbert provavelmente compreendera o meu receio e o qual era o meu intento ao dizer-lhe aquilo. Eu esperava que ele houvesse compreendido. O peso de minhas palavras, o acúmulo de meu nervosismo e, sobretudo, a intensidade do olhar que Gilbert mantinha fixamente sobre mim, daquele olhar que, mesmo sem ser visto por mim, eu podia sentir como um contato físico, tornavam impossível que eu continuasse a falar.

Eu não queria acrescentar nada ao que havia dito. Eu precisava imediatamente ouvir a resposta de Gilbert, então quietei-me e esperei com ansiedade que ele a dissesse.

Eu esperei, esperei e esperei.

Infelizmente, ela não veio com a velocidade ou com a urgência que presumi. Em vez de perceber que era a sua vez de falar e tomar uma ação impetuosa e decidida como a de um protagonista de filmes de ação, Gilbert continuou a me observar, imóvel e em silêncio, com uma vaga névoa de atordoamento pairando sobre o seu rosto.

Eu poderia ter ficado muito desapontado com aquela reação, caso ela não me parecesse tão reconfortante e amável. Gilbert era uma daquelas pessoas cujas expressões delatam abertamente seus sentimentos, ainda que elas não estejam conscientes disso, e essa característica sua me permitia ver em seu rosto o que se passava em seus pensamentos e seu coração. E o que eu via não denotava nenhum traço do desânimo, impaciência, decepção ou reprovação, esperados anteriormente por mim.

Havia a ínfima possibilidade de que eu estivesse enganado, mas o que encontrei no rosto de Gilbert, quando terminei de falar, foram sentimentos de indecisão e relutância provocados pela sua preocupação com a resposta que ele me daria. Uma indecisão e relutância que apenas estavam presentes porque ele se importava comigo e não queria me dar uma resposta que me machucasse ou me ofendesse. Uma indecisão e relutância que indicavam que Gilbert preocupava-se tanto com as minhas reações quanto eu me preocupava com as dele. Ele claramente estava tão nervoso quanto eu, e a ideia de que ele tivesse todas essas considerações pelos meus sentimentos, relaxaram-me e aqueceram docemente meu peito.

Aquela era uma reação reconfortante, como eu disse, e por alguns segundos, eu me contentei com ela. Entretanto, ela logo tornou-se insuficiente, pois eu não queria fazer parte de um diálogo que envolvesse somente monólogos e inferências a partir do silêncio da outra parte. Essa conversa deveria ser uma troca entre nós, uma interação mútua. Não haveria sentido se ela ocorresse de outro modo. Assim, em uma curiosa inversão dos fatos, eu, o taciturno e inseguro Roderich Eldestein – antes tão nervoso com o que falar e com o que Gilbert diria - precisei tranquilizar o geralmente confiante Gilbert e incitá-lo a falar.

– Estou um tanto confuso, eu acho. – eu concluí, dando de ombros, com um pequeno sorriso - O que você pensa sobre esse tópico?

Antes que ele me respondesse, houve mais uma pausa entre nossas falas, sendo esta diferente das anteriores. Não havia inquietação ou tensão naquele silêncio e pude verificar que, dessa vez, o semblante de Gilbert encontrava-se bem mais relaxado. Foi um alívio perceber que pude tornar recíproco o reconforto que ele me trouxe. Eu não mais via as nuvens escuras da indecisão e do receio o cercarem e estava seguro de que ele já sabia o que me diria e que era somente por estar preparando a sua resposta, com cuidado e compenetração, que ele se mantinha calado. Eu me limitei a esperá-lo, igualmente quieto.

Alguns segundos se passaram.

– Eu deveria dizer-lhe, jovem mestre, que você não será feliz, caso continue mentindo para si mesmo, que você deveria enfrentar o mundo, pois a vida é breve e devemos aproveitá-la, dentre várias outras linhas terrivelmente clichês, que são utilizadas nesse tipo de situação. - ele finalmente disse, com um tom professoral e um meio-sorriso, estendendo a sua mão, em uma pose decididamente arrogante. Acredito que em outro contexto, eu poderia ter me aborrecido e desaprovado sua atitude orgulhosa, porém, naquele instante, eu estava demasiadamente surpreso com o encaminhamento dos argumentos de Gilbert, para concentrar-me em quaisquer outros detalhes. Aqueles conselhos que ele mencionara tão debochadamente... Eu estava esperando que ele me dissesse exatamente essas linhas! Se não era aquilo o que ele pretendia me dizer, o que eu deveria esperar?! Ignorando o meu alarme ou encarando-o como o que deveria se esperar àquele desfecho, Gilbert continuou a expor animadamente seu inesperado ponto de vista - Entretanto, essas seriam as falas de um personagem secundário em uma novela com um forçado apelo dramático, e não alcançam a glória das minhas palavras triunfais! – ele ergueu os punhos, com um sorriso confiante e radiante que certamente era similar ao de um general que observa as tropas inimigas se aproximando e conclui instantaneamente que será o vitorioso - Prepare-se para a minha incrível resposta!

– Oh, céus... – eu gemi, sofregamente.

– Diferente do que os discursos comuns defendem, eu acredito que talvez você possa ser feliz, por conta própria, Rod. Por que não?

– Hã?

A minha simples e espontânea interrogação foi tão magoada quanto confusa porque, dentre todas as respostas que eu poderia esperar de Gilbert, nenhuma seria tão frustrante quanto aquela. Mesmo uma fuga de assunto – “Ei, Rod! Você acha que essa chuva será muito forte?” - ou uma posição de neutralidade – “Sabe, jovem mestre, esses assuntos amorosos são muito confusos, mesmo para o incrível eu. Eu não posso ajudá-lo, mas boa sorte com eles!” – seria preferível a receber uma resposta como aquela. Eu não podia acreditar que ele estava me dizendo aquilo, após toda a construção de uma atmosfera de expectativas contidas entre nós. A decepção e o espanto me encobriram como uma sombra.

Não era aquilo que eu estava ansiando. Como posso dizer? Eu tinha um intento ao falar sobre minhas inseguranças com Gilbert. Havia uma resposta definida que eu esperava dele. Por mais vergonhosas que me parecessem minhas intenções no presente, eu estava plenamente ciente de que eu não estava somente esperando uma resposta de meu ouvinte. Eu estava esperando um encorajamento.

A minha confusão e a minha indecisão sobre meus receios eram verdadeiras, no entanto, eu sabia exatamente o que gostaria de ouvir de Gilbert. Eu gostaria que ele dissesse que eu não deveria ficar tão assustado e que não deveria desistir de entrar em um relacionamento com alguém de minha preferência. Eu gostaria que ele me confortasse e me incentivasse a enfrentar os meus temores, pois eu estava certo de que, provindo dele, esse encorajamento teria certo efeito sobre mim e, mesmo que não tivesse, escutá-lo seria positivo por outras razões. Enfim, eu estive esperando, desde o princípio, que Gilbert ajudasse-me a acalmar meus temores, pois o nosso encontro estava sendo um momento extremamente oportuno para que eu me desvencilhasse deles e eu tentaria me agarrar a qualquer estímulo seu para passar a desprezá-los, todavia, a resposta dele acabou por ser muito diferente do que eu esperara e muito me abateu. Em vez de conferir-me o impulso que eu precisava para agir conforme minhas expectativas, para o meu assombro e desânimo, ele concordou com minha resignação, o que eu, definitivamente, não cogitara que ele pudesse fazer.

Será que eu havia interpretado erroneamente algo? Seria tão humilhante, se esse fosse o caso! Eu apenas achei... E-Eu deduzi... Hm. Eu estava sendo apenas arrogante, quando concluí quais seriam as intenções de Gilbert ao meu respeito? Eu poderia ter me confundido. Naquelas condições, essa era uma hipótese muito concreta.

Lamentavelmente concreta.

– Digo, existem algumas pessoas que conseguem alcançar a sua satisfação pessoal plena de outros modos. – ele acrescentou ao seu raciocínio, ignorando o amargor em meu silêncio - Se o piano o deixa feliz, dedique-se a ele! Você, definitivamente, não seria o primeiro aristocrata solitário, jovem mestre.

– Esse deveria ser um conforto? – eu perguntei, com uma expressão fechada, esforçando-me ao máximo para não exprimir meu desapontamento.

– Não. Eu deveria confortá-lo? - ele perguntou, sorrindo - Bem, se esse é o seu desejo, o incrível eu não pode permitir que você continue a sentir-se tão patético, Rod! Venha para os meus braços e...!

– Eu me recuso.

Kesesese!

– Então, essa é a sua resposta? – eu perguntei, sentindo os traços de meu rosto formarem involuntariamente uma expressão hostil, e, dessa vez, não estou certo se conseguir evitar um calor agravado em minha réplica - “Seja feliz, sozinho, se é isso o que você quer”?

– É uma sombra de desapontamento que vejo em seu rosto, Rod? – Gilbert indagou cretinamente, apontando para o meu rosto com o lápis, com um sorriso sugestivo e implicante que em muito inflamou meu acumulado rancor - Essa não havia sido a sua escolha? Que tipo de resposta você estava aguardando?

– Eu...

Eu sabia precisamente que tipo de resposta eu estava aguardando, mas não sabia que resposta eu poderia simular estar aguardando. Era incogitável que eu revelasse a verdade a Gilbert. Seria humilhante e deprimente revelar meus pensamentos a ele. Felizmente, eu fui poupado do esforço de pensar em uma desculpa, pois ele, rapidamente, adiantou-se a minha resposta e continuou a falar. Aparentemente, sua questão, além de retórica, era mais um comentário implicante do que propriamente uma pergunta.

– E você interpretou erroneamente o significado de minhas palavras, jovem mestre. Eu sequer terminei o meu brilhante discurso! – ele me surpreendeu - Como eu dizia, seria uma mentira, caso eu dissesse a você que a sua escolha nunca o permitiria ser feliz, enquanto assumir a sua homossexualidade traria apenas uma dor momentânea e, depois, permitiria a sua felicidade eterna. Não é tão simples e nós sabemos disso. Além disso, eu desconheço o quanto você está assustado ou o quanto esteve cansado com o seu casamento cheio de frustrações sexuais, aristocrata...

– F-Fique quieto! – eu exigi exaltadamente, sentindo-me muito, muito desconfortável com as menções de Gilbert à minha vida sexual.

Ele casualmente ignorou meu rubor e minha agravação, e prosseguiu muito tranquilamente, retornando a ocupar-se com seu rascunho:

– Eu não sei como você se sente, logo, não me sinto no direito de dizer que você estará errado em agir de uma maneira ou de outra ou de afirmar que a sua alegria depende de determinadas condições. – foi o que ele disse, no que presumi que fosse sua conclusão.

–... Você está tentando convencer-me de que eu serei feliz, de qualquer modo? – perguntei em voz baixa, confuso e ainda inconformado, com um olhar baixo e intenso. Aquela preposição era igualmente desagradável, dentro do que eu gostaria.

– Pelo contrário, jovem mestre! – ele sorriu - Você será infeliz, de qualquer modo!

Por um momento, desejei que as nuvens cinzas, acima de nós, enviassem um raio diretamente a localização de Gilbert.

– Que gentil da sua parte, informar-me disso.

– Não seja dramático, Rod. Essa é apenas a verdade. Além disso, se você começasse a ser dramático, nesse cenário chuvoso, eu começaria a rir e a profundidade desse diálogo seria inteiramente dissipada! – ele riu brevemente. Quando terminou seu rápido gargalhar, ele preservou um sorriso e disse, em um tom mais suave e sério - Infelizmente, enquanto vivemos somos sempre forçados a tomar escolhas como “Verde ou azul?” e a razão pela qual é tão difícil fazê-las seria porque nunca há uma resposta completamente correta. Considerando-se o conselho que você me deu a pouco, quando falávamos sobre o meu emprego, creio que você entenda as aplicações do que digo. Nós sempre teremos arrependimentos quanto às nossas decisões, jovem mestre. Há consequências positivas e negativas em cada ação. E você deverá ser aquele a avaliar qual será aquela que, mesmo que o afete de algum modo, não poderia deixar de ser a sua escolha. Existem decisões que afetam muitas pessoas e não podem ser tomadas, embasadas apenas em preferências individuais. No entanto, a sua sexualidade é uma questão inteiramente sua, jovem mestre. E não deixe ninguém convencê-lo do contrário. As pessoas podem aconselhá-lo, mas elas não podem exigir que você comporte-se de uma determinada forma ou julgá-lo pelo que você decidiu. Em resumo, se você quiser abandonar a homens e mulheres, casar-se com o seu piano e construir uma vida com ele, tendo, como filhos, cinco lindas e saudáveis composições, ninguém possui o direito de criticá-lo por isso. Por outro lado, se você quiser casar-se com outro homem e passar a vestir-se com roupas de empregada para a realização de uma fantasia sexual dos dois, ninguém poderá criticá-lo também. Evidentemente, eles irão criticá-lo, pois as pessoas são terríveis assim e não se pode exigir que toda a humanidade seja incrível como eu, mas não pense que você está errado, apenas por que dizem que você está errado. Veja o meu caso, Rod! Eu nunca me importo com as críticas que me dirigem, pois estou ciente de que nem todos podem compreender a grandiosidade do incrível eu!

– Eu penso que você, provavelmente, deveria escutá-las.

Gilbert recebeu meu conselho, com um arregalar de olhos de cínico assombro, como se espantado com a minha rispidez, que precedeu uma explosão de risos de sua parte. Eu recebi aqueles risos com uma sensação de aperto em meu peito que, em grande parte, devia-se à minha frustração. Era muito incômodo perceber que mesmo que estivéssemos tendo um diálogo agradável e que Gilbert estivesse me aconselhando com seriedade, aquela conversa estava afastando-se cada vez mais da direção de minhas expectativas e constatar que possivelmente ela nunca se encaminharia da forma como eu estipulava.

O sorriso de Gilbert, embora natural e pouco implicante, tornou-se particularmente incômodo para mim.

– O propósito do seu discurso, enfim, era “Tome a decisão que quiser e não arrependa-se dela. Quer você assuma a sua homossexualidade, quer não, você encontrará modos de ser feliz”. – eu concluí, amuado, expirando profundamente, com conformismo e menor desprazer. Aquela não era exatamente a resposta que eu queria, mas era muito melhor do que as anteriores e eu poderia aceitá-la.

– Talvez. – ele replicou, dando de ombros- Era algo próximo disso. No entanto, eu ainda não acabei. Você é muito impaciente, aristocrata. Essa devia ser uma das razões pela qual você era frustrado sexua...

– Por favor, conclua sua linha de raciocínio.

Kesesese! Como eu dizia, nós estamos acostumados a ver nossas decisões como “Verde ou azul?” e nos sentimos encurralados com essas escolhas, mas, na prática, elas não são as únicas opções possíveis. Você sabe, jovem mestre, existem muitos tons entre o verde e o azul. Muitos, muitos tons. Devido à existência deles, é praticamente impossível determinar onde termina uma cor e começa a outra. E há variações dentro do próprio verde e do próprio azul! O verde de uma relva primaveril extremamente antagônico ao verde das folhas de uma árvore antiga, no verão.

–... Isso é surpreendentemente poético da sua parte. – eu admiti, ligeiramente boquiaberto, com alguma admiração e atordoamento - Todavia, eu não entendo como essas variações cromáticas relacionam-se ao meu dilema.

– Céus, Rod! – ele impacientou-se, de repente, batendo a palma de sua mão em sua testa franzida e arregalando seus olhos, como se estivesse se defrontando com a mais estúpida pergunta que um ser humano poderia possivelmente fazer - Como você utiliza o seu romantismo em tantos contextos estranhos e não consegue utilizá-lo para compreender as comoventes metáforas do incrível eu?! Que se dane. Eu serei mais direto. Assim como existem variações entre o verde e o azul, aristocrata, também existem outras possibilidades dentre aquelas que parecem ser nossas únicas escolhas. Normalmente, nós vemos apenas as opções mais radicais, sem percebermos que, na prática, podemos tomar outras ações mais moderadas, singulares ou sutis.

– O que você quer dizer?

Essa questão minha, supostamente simples e esperada, produziu um efeito muito diferente da anterior em meu ouvinte.

Gilbert não me respondeu de imediato. Os seus modos tornaram-se misteriosos e enigmáticos. Ele começou a desviar seu olhar para cantos aleatórios, brincar com seus materiais de desenho em suas mãos, pigarrear e a fazer uma expressão estranha e um tanto assustada cujo significado eu mal podia compreender.

De repente, como se acometido por um lampejo repentino de decisão, ele deteve o mover de suas mãos e de seus olhares, e encarou-me abertamente, com um brilho incomum que reluzia em seus olhos, sugerindo uma expectativa maior do que os seus modos transpareciam, para me sugerir, de súbito:

– Se você ainda não se sente a vontade para assumir sua sexualidade, mas anseia encontrar um par romântico, por que não tenta, temporariamente, ter um relacionamento discreto com alguém? – ele questionou, bastante sério, com o rosto abaixado e olhos que subiam por cima da tela em direção ao meu rosto.

Eu fiquei perplexo. Atônito, de fato. A minha boca rapidamente ficou entreaberta e seca e as minhas sobrancelhas foram franzidas em atordoamento.

Essa sugestão súbita e completamente inesperada de Gilbert deixou-me muito chocado e eu não tinha qualquer ideia de como respondê-lo. Eu não poderia ignorar a sugestão presente na sugestão de Gilbert e, naquele ponto, o surgimento dela fora tão inesperado que fiquei muito desorientado quanto ao modo de reagir a ela, mesmo internamente. Eu não estava feliz nem desapontado. Não estava ansioso ou ofendido. Eu estava puramente confuso.

Havia muitos motivos para a minha confusão. O mais elementar deles claramente seria a vinda imprevisível da proposta contida naquele conselho, após tantos desencorajamentos da parte de Gilbert em suas colocações anteriores, contudo, não era apenas este fato - suficientemente espantoso, devo dizer - que me transtornava. A própria proposta de Gilbert me deixara pasmo, pois, dentre as opções que avaliei para o curso de meu destino, eu nunca havia cogitado naquela hipótese que ele tão despojadamente jogara sobre mim.

Como posso dizer? Aquilo modificava completamente a minha percepção! Eu sempre imaginei que deveria assumir minha orientação sexual e sofrer as consequências por isso ou escondê-la com empenho, para não ser incomodado por conta dela. Porque eu via apenas essas duas possibilidades extremas, foi um susto perceber uma rota alternativa entre elas e, por ter passado tantos anos sem percebê-la, eu reagi muito defensivamente ao noticiá-la. Por que Gilbert sugeria aquela possibilidade como se fosse algo tão simples, como se fosse tão fácil resolver os problemas que me atormentaram por anos e anos? Não era tão simples assim. Eu me recusava a acreditar que fosse tão simples. Era ofensivo que ele acreditasse que fosse tão simples! Ele estava menosprezando o problema!

–... Como? – eu perguntei em uma voz grave e baixa, afetada pela raiva- Como eu faria isso? O que você sugere não é muito tangível.

– Eu discordo, Rod. – ele retrucou - É perfeitamente aplicável. Você apenas está aborrecido por não ter chegado sozinho à minha brilhante conclusão.

Perfeitamente aplicável”!

– Como eu poderia simplesmente sair com alguém, discretamente?- eu indaguei em um fôlego ardente e um fluxo incessante de palavras e sentimentos. Eu estava confuso e inseguro e esses sentimentos eram rapidamente transformados em fúria e descontentamento por mim, antes que eu pudesse racionalizá-los. A minha fagulha de esperança de que tudo fosse tão simples como Gilbert fazia parecer machucava-me tanto quanto a minha sólida certeza de que era impossível que fosse tão simples; a colisão entre a minha vontade de acreditar nele e a minha vontade não acreditar nele estava me deixando tão perdido, cansado e magoado que precisei descontar essas emoções em alguém para evitar que elas me consumissem. Gilbert acabou sendo a vítima, ou melhor, o culpado em questão. Uma vez decidida a minha raiva e minha resistência era difícil detê-las. - Quem teria tanta paciência para lidar com as minhas inseguranças? – eu perguntei exasperado, confrontando-o com um olhar que tentava adentrá-lo. Eu estava esperando tanto de Gilbert. Eu queria desmenti-lo e queria ser desmentido. Eu queria confrontá-lo e enfrentar minhas próprias dúvidas. Ele, no entanto, não me respondeu e isso estimulou o aumento da minha incerteza e, consequentemente, da minha agressividade impulsiva e injustificada. Eu sabia que a sugestão de Gilbert nunca seria aplicável. Não haveria um homem adulto que estivesse disposto a viver escondendo seu relacionamento comigo, como se fôssemos dois adolescentes que estivessem cometendo um delito. Existindo tal indivíduo, as dificuldades envolvidas em um relacionamento assim não seriam reduzidas, pois sempre existiriam as preocupações do que poderia ocorrer, caso fôssemos descobertos. Sempre existiriam duras limitações que machucariam os dois envolvidos nesse tipo de relacionamento. Eu sabia disso e estava ciente de que a proposta de Gilbert estava muito distante de ser tão simples quanto ele afirmava, mas uma porção menos racional minha permitiu que uma centelha de ânimo se acendesse em mim por um instante e vê-la sendo lentamente apagada pela minha razão era tão doloroso e difícil que não consegui controlar os meus sentimentos ardentes de ira contra aquele que considerei o culpado por essas emoções árduas e incontroláveis . - E que desculpas eu usaria para, constantemente, sair a sós, com outro homem? - indaguei, por fim, com um dar de ombros e um sorriso cáustico e o que se seguiu a essa pergunta, posso assegurar, não foi calculado nem razoavelmente sensato. Eu estava tão perdido e aborrecido com a forma como Gilbert estava engolindo calmamente o que dizia que deixei de tentar contradizê-lo e quis atingi-lo de algum modo. Eu queria tanto provocá-lo que disse algo realmente estúpido. Espetacularmente estúpido. Eu não sei como algo tão estúpido foi proferido por mim, mas, quando me dei conta, a seguinte questão impaciente e irascível estava passando por meus lábios - Eu deveria dizer que ele está apenas pintando um retrato meu?!

Essas palavras escaparam-me involuntariamente e provocaram um efeito inesperado sobre Gilbert. Pela primeira vez, em um diálogo que durava mais de duas horas, eu o vi enrubescer. Um intenso tom escarlate subiu por seu pescoço, tingindo-lhe completamente a face. Ele abaixou seu rosto timidamente, fitando-me de modo ansioso e hesitante. Parecia incerto sobre a forma como deveria reagir. Eu não sabia que ele, um indivíduo notoriamente arrogante, confiante e mordaz, era capaz de fazer uma expressão como aquela e, sobretudo, nunca imaginei que eu pudesse ser apto para provocá-la. Havia tanta vulnerabilidade e expectativa naquela expressão que meu coração recuou uma batida, quando deparei-me com ela, e uma estranha sensação, também decorrente dela, provocou mudanças no ritmo de minha respiração. A única maneira que encontro de descrever essa estranha e imediata sensação que tive ao vê-lo assim seria defini-la como a sensação de que todo o ar de meus pulmões havia sido sugado por um redemoinho em meu interior, fazendo-os doer com a completa ausência de oxigênio. Tamanho foi o seu constrangimento quanto a uma frase que, originalmente, era mais uma ironia agressiva do que uma insinuação, que acabei sendo absorvido por esse desconfortável sentimento. O meu rosto ardia severamente.

Severamente.

O calor de meu rosto impossibilitou-me de ignorar o quanto a tarde havia se tornado úmida, sufocante e quente.

Gilbert entreabriu a boca e cuidei que ia dizer uma resposta, cuja natureza eu não podia prever, quando fomos interrompidos pelo súbito choque de infinitas gotas d’água sobre nós. A chuva, ao cair, veio de repente, com uma força incontida, como uma pancada. Eu tinha o meu guarda-chuva e estava bem acomodado sob a árvore, portanto, não sofri tanto o efeito daquela abrupta queda d’água, diferente do desprotegido e despreparado Gilbert que assustou-se com ela e tentava salvar seus materiais com pressa e urgência.

Ele entregava os itens para mim de uma forma rápida e desajeitada, acumulando-os em meu colo e sequer conferiu-me tempo para reclamar do fato que ele estava forçando-me a segurar diversos materiais molhados ou de fazer um comentário sarcástico sobre a falha de suas previsões meteorológicas. A folha que ele utilizara para fazer o meu rascunho foi o único item que ele não me entregou. Ele a arrancou da tela e a protegeu dentro de seu casaco, até terminar de deixar todos os seus materiais sob a segurança do meu guarda-chuva.

O casaco dele era grosso e parecia impermeável, então eu podia entender, em parte, porque ele o utilizara para proteger seu desenho. Em parte. Eu não podia estipular por qual razão ele preferiu arriscá-lo, protegendo-o apenas com as suas vestes, quando eu poderia guardá-lo com mais segurança. Ele estava sendo zeloso quanto ao seu trabalho? Poderia ser isso. Às vezes, sentimo-nos mais seguros quando cuidamos por conta própria de nossos pertences, mesmo que as condições de outros para guardá-los sejam superiores às nossas.

E era claro que Gilbert pretendia conservar o desenho sob a sua proteção, visto que, em vez de entregá-lo a mim, apenas por instantes, para que ele comprasse outro guarda-chuva, ele, assim que entregou-me seus demais objetos, correu para abrigar-se no meu, deixando nossos rostos a uma ínfima e desconfortável distância. Com essa aproximação repentina, adquiri, finalmente, determinação e oportunidade para reclamar dos seus movimentos.

– Seu tolo! O que você pensa que...?

– Levante-se e me entregue meus materiais, Rod. – ele disse, e, incomodamente, pude sentir sua respiração quente e acelerada bater em minha boca - Você segura o guarda-chuva. Nós vamos a um café.

– Por que eu concordaria com tal convite? – indaguei, com alguma resistência, incomodado com a autoridade da decisão de Gilbert.

Um trovão ressoou com tamanha violência que encolhi meus ombros involuntariamente. Flashs brancos cobriram toda a praça.

– Bem, você prefere continuar aqui? – ele questionou muito cético e incrédulo, franzindo as sobrancelhas - O que você pretende fazer, jovem mestre? Posar para uma daquelas telas românticas nas quais as forças dos isolados e emotivos aristocratas são comparadas a força da natureza? O café fica a apenas dois quarteirões daqui. Além disso, Rod, eu não gostaria que você se esquecesse de que o guarda-chuva em suas mãos é meu. Vamos.

– Eu não estou absolutamente convencido a acompanhá-lo. – teimei, com um bico contrariado, movido por um orgulho desnecessário do qual eu não conseguia abdicar, ainda que soubesse o quanto ele poderia se tornar inconveniente.

– Se você desejar carregar os meus objetos em suas mãos, enquanto caminha entre as imensas poças que se formaram na praça, até alcançar o homem que está vendendo guarda-chuvas e comprar um, por conta própria, eu não reclamarei, aristocrata.

Mais um trovão ressoou e esse pareceu tão, tão próximo que precisei conter um pequeno som assustado que tentara escapar por minha garganta.

Pela segunda vez, naquela data, Gilbert sorria para mim, ostensivamente. Ele sabia que havia vencido.

– Esqueça. – eu bufei aborrecidamente, levantando-me de meu banco e ajeitando minhas vestes - Eu estou com frio e não seria desagradável ir a um café. Apanhe suas coisas e pare de sorrir assim, seu tolo.



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Notas finais do capítulo

Queridos leitores, muito obrigada por lerem essa fanfiction! Como estamos no final de mais um ano, eu gostaria de agradecê-los sinceramente por todo o apoio e incentivo que estou recebendo e desejar um feliz natal atrasado e um feliz ano-novo adiantado para todos vocês!

Vocês realmente me estimularam muito, esse ano - dez comentários no que seria 1/3 de uma one-shot é algo certamente lisonjeiro para uma autora - e sou muito, muito grata pelo apoio de vocês, pois ele me motiva de uma forma que vocês mal podem imaginar!

A minha meta para esse novo ano é concluir as minhas presentes coletâneas de one-shots até julho e a partir de julho, continuar "Obaka-san!" - eu adoro escrever essa long, mas é mais complicado trabalhar com longs, quando estamos ocupados e esse segundo semestre está particularmente movimentado no meu curso.

Dito isso, eu devo acrescentar que estou bastante satisfeita com a quantidade que escrevi esse ano! Apenas os meus trabalhos publicados - existem muitos que eu escrevi parcialmente e ainda não estão concluídos - somam aproximadamente 285 páginas! É um mistério como a minha saúde ainda está intacta!/o/

Novamente, muito obrigada pelos reviews! Por favor, continuem a ler, apreciar e comentar os meus trabalhos!>.

PS: Não, a lição dessa estória não é "Apenas esconda a sua orientação sexual e ficará tudo bem!:D". Que tipo de lição seria essa?T.T Como o Roderich mencionou, a questão é mais complicada do que isso. No entanto, esse não é o momento para que eu discorra sobre o assunto, pois ainda há muito a ser visto e apenas posso fazê-lo, após a terceira parte.

PS2: O ritmo extremamente lento e o andamento introspectivo dessa estória é inteiramente proposital. Eu também explicarei o motivo na terceira parte.

PS3: Eu criei um blog chamado desafiosparaficsdehetalia no tumblr, onde você pode enviar desafios para fanfictions e receber desafios para criar novas fics. Se estiverem interessados pela proposta, procurem por ele.

PS4: O meu aniversário será no dia 26 de janeiro e eu adoraria receber comentários e parabéns na ocasião.:3

PS5: Como eu mencionei, pessoas que estão interessadas em fazer fanarts para as minhas fics, sintam-se à vontade para desenhá-las e saibam que eu ficaria muito feliz em vê-las.

PS6: A terceira parte dessa one-shot é tão divertida! Eu espero terminar logo de revisá-la para poder postá-la!^_^



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