_ Licença professor, podemos entrar?

O professor assentiu para o Aquiles e adentramos a sala. O professor Valdir, de história, era bem relaxado, creio que nem mesmo se incomodaria se pedíssemos para responder presença e cair fora...

A Bia acenou freneticamente para seu estimado amigo, indicando um lugar a sua frente, mas ele fez um gesto de volta, corrigindo a conta dela. Estávamos em dois, ela reservara apenas 1 lugar.

 

I couldn't tell you

Eu não saberia te dizer
Why she felt that way

Porque ela se sentia daquele jeito
She felt it everyday

Ela se sentia assim todos os dias
I couldn't help her

E eu não pude ajudá-la
I just watched her make the same mistakes again

Pois só a via cometer os mesmos erros novamente

Claro que eu não me incomodava nem um pouco com os lugares que a Bia arrumava ou deixava de me arrumar, mas o fato do Aquiles ter se incomodado com aquilo me deixou radiante. Não pude deixar de lançar um olhar maroto na direção dela quando caminhamos para o fundo da sala. Lá no fim das fileiras tinham duas carteiras vagas lado a lado.

Depois de me instalar é que percebi. Estava novamente atrás do quarteto que tinha um medo mortal de mim. Os quatro garotos silenciaram instantaneamente assim que passei.

_ E aí Guilherme? - cumprimentou o Aquiles.

_ Beleza? - o da frente respondeu sem se virar.

_ Vocês já conhecem a Mel, não é?

Ahh, por que ele tinha que mexer na ferida?

O Guilherme se virou e o encarou com curiosidade.

_ A Mel, ali. - apontou pra mim.

_ Ah, Amélia Cristina, não é? - perguntou tenso a mim.

_ Sim.

_ Mas pode chamá-la só de Cris mesmo. - Quem mais poderia ter dado essa intimidade?

O Guilherme concordou, mas não me dirigiu a palavra.

_ E não precisa ter medo dela não, ela é meio estressada, mas nunca partiu pra violência.

“Até agora!” Pois eu estava prestes a esmurrá-lo.

O garoto riu nervosamente, e então os outros três também se viraram para assistir ao freak show.

_ E por que você acha que eu tenho medo dela? - sorrindo, ainda tenso.

What's wrong, what's wrong now

O que está errado, o que está errado agora?
Too many, too many problems

Problemas demais, demais
Don't know where she belongs

Não se sabe onde é o lugar dela, onde é o lugar dela
Where she belongs

Onde é o lugar dela

 

_ Porque vocês ficaram rígidos quando passamos. Você ainda está rígido, e seu sorriso rígido está me assustando rigidamente.

Os outros três gargalharam da cara do Guilherme, que realmente estava engraçada, não posso negar.

_ Ah, vai ser palhaço assim lá na sua terra rapaz... - ele também não resistiu e acabou rindo.

Depois disso voltou a se virar e prestou atenção à aula, mas notei que a brincadeira os ajudou a descongelarem. O Guilherme já conseguia virar o pescoço para os lados.

Tá, tudo bem, eles não tinham mais medo de mim, mas isso dava margem às brincadeiras, que davam margem à ridicularização, que dava margem à humilhação...

 

She wants to go home, but nobody's home

Ela quer ir pra casa, mas ninguém está em casa
That's where she lies, broken inside

É onde ela fica, despedaçada por dentro
With no place to go, no place to go

Sem lugar pra onde ir, nenhum lugar para ir
To dry her eyes, broken inside

Para secar seus olhos, despedaçada por dentro

 

 

Dava pra vê-los balançar vigorosamente com as risadas contidas durante a aula de artes. Às vezes olhavam para mim e comentavam mais alguma coisa engraçada. Eu já nem ligava mais. Já fazia parte da minha rotina. Eu passava e ouvia alguma piadinha, e era obrigada a aturar as risadinhas por toda a aula. Mas já não era tão difícil.

_ Ei, Cristina, desculpa nossas risadas, mas você não vai acreditar no que vimos!

Eu não respondi nada, como sempre. Era mais fácil fazê-los pararem quando me fazia de indiferente. O Júlio continuou me encarando, buscando algum indício de curiosidade, e como eu não expressei nada, ele continuou:

_ Um lêmure! Acredita? Um lêmure aqui mesmo na ete! - e riu novamente. - Você sabe o que é um lêmure, não sabe?

Uma criatura infinitamente mais agradável que qualquer um deles.

_ Veja só o lêmure que encontramos! - ele estendeu a mão para o menino da frente que lhe passou um objeto.

Ele estendeu o objeto à minha frente. Era um espelho.

_ E aí, vamos descer?

É mesmo, a aula tinha acabado. Eu estava viajando em lembranças que não devia...

 

Open your eyes

Abra seus olhos
And look outside

E olhe lá fora
Find the reason why (why)

Descubra o motivo pelo qual,
You've been rejected (you've been rejected)

Você foi rejeitada
And now you can't find

E agora você não pode encontrar
What you left behind
O que deixou pra trás

 

E pra gente a aula realmente foi mais curta.

_ Sim.

Guardei meu material e coloquei a mochila sobre os ombros enquanto a Bia se aproximava e se encaixava no braço do Aquiles.

_ Por que não foram sentar lá? - perguntou inocentemente.

_ Só tinha um lugar Bia.

_ Tinha outro atrás da sua amiga Thaís.

_ Tá bom Bia, tá bom.

_ Aii, que estresse! Vamos ao shopping pessoal?

_ Eu não posso, tenho que estudar para a prova de inglês de amanhã. - Dessa vez era verdade.

Ambos me encararam com surpresa. Exagerados, não?

_ E aí, vamos Aquiles?

_ Hoje vou ajudar meu pai Bia. Na segunda-feira o negócio é nervoso!

_ Sabia que você é um sem graça?

_ Sabia que você é uma cabeça fresca? - ele rebateu.

“Sabia que você é uma insuportável?” Imaginei, mas depois me repreendi, ela estava sendo gentil, por que eu tinha que implicar com ela mesmo que fosse apenas com meus botões?

 

Be strong, be strong now

Seja forte, seja forte agora
Too many too many problems

Problemas demais, demais
Don't know where she belongs

Não se sabe onde é o lugar dela
Where she belongs

Onde é o lugar dela

 

Desci quieta apenas escutando a conversinha superficial da Bia com o Aquiles. Eu não me sentia bem. Eu ainda estava abalada com as atitudes intempestivas do Aquiles, meus pensamentos sem eiras ou beiras, a aproximação com outras pessoas que me faziam lembrar de como foi nas vezes anteriores...

Olhei para o Aquiles que conversava descontraidamente com a Bia. Ele não faria isso, faria? Tá certo que nunca conhecemos alguém completamente, mas era impossível acreditar que ele faria uma coisa daquelas. Mas, e se os outros fizessem? Será que ele me protegeria? Ficaria do meu lado?

 

She wants to go home, but nobody's home

Ela quer ir pra casa, mas não tem ninguém lá

That's where she lies, broken inside
É onde ela fica, despedaçada por dentro

With no place to go, no place to go

Sem lugar pra onde ir, nenhum lugar para ir

To dry her eyes broken inside

Para secar seus olhos, despedaçada por dentro

 

E por que eu estava pensando essas baboseiras? Talvez eu mesma tivesse feito minha sorte pensando as coisas que eu pensava...

Dessa vez a Bia se despediu de mim também com um beijo no rosto e ficou na portaria esperando pelo pai, enquanto eu e o Aquiles continuamos descendo para o ponto.

_ Que foi?

_ Nada.

_ Tá brava?

_ Deveria?

_ Tá brava por causa dos meninos?

_ Não, Aquiles. Não estou brava.

_ Tá parecendo.

_ Pois é, aparências.

Ele ficou quieto me estudando. Virei para o lado oposto com o pretexto de verificar se o trólebus não se aproximava.

_ Você não vai me contar o seu segredo?

_ O quê? - virei-me involuntariamente.

_ É. Por que você não gosta das pessoas? Você tá sempre se isolando...

_ Eu sou tímida Aquiles, só.

_ Tímida, ríspida e mal humorada.

_ Obrigada pelos adjetivos. - “Era tudo que eu precisava.”

_ Lá vem você com as suas interpretações distorcidas... Eu adoro você Mel! Mas eu te conheço! Sei que você é gente boa pra caramba, mas olha, o que eu tive que suar a camisa pra te conhecer não é brincadeira... E nem todo mundo é perseverante como eu. Então se você faz cara feia ou responde mal aos outros, eles vão fazer exatamente isso, te isolar.

_ Isso não me incomoda.

_ Deveria.

Fiz sinal para meu trólebus que se aproximava convenientemente.

_ Até amanhã. - disse sem encará-lo antes de embarcar.

 

Her feeling she hides

Seus sentimentos ela esconde
Her dream she can't find
Seus sonhos não consegue achar
She's losing her mind
Ela está perdendo a cabeça
She's falling behind
Ela está andando pra trás
She can't find her place

Ela não consegue achar seu lugar
She's losing her faith
Ela está perdendo a fé
She's falling from grace
Ela está caindo em desgraça
She's all over the place (yeah!)
Ela está completamente perdida (yeah!)

 

O dia não foi muito proveitoso. Me enterrei nos livros tentando não lembrar do que havia acontecido depois da aula de química, e menos ainda nas minhas projeções para o futuro.

_ Past perfect... Se eu consigo lidar com física quântica, não é um tempinho verbal medíocre que vai me preocupar. Certo Mariza? Certo Sarah?

Sim, eu estava falando com as autoras do meu livro.

Mas depois de meia hora de estudo fui obrigada a admitir que o Past Perfect não era tão medíocre assim...

Liguei o micro e procurei alguns exercícios que misturavam vários tempos verbais. Por fim decidi que já era o suficiente. Várias horas se passaram e o monitor já estava me dando dor de cabeça.

Depois que minha mãe chegou nós jantamos e acabei dormindo no colo dela durante a novela.

No dia seguinte cheguei um pouco mais cedo para refrescar a memória antes da aula de física. Bom, física não era difícil, então dava pra estudar mais um pouco durante a aula. Matemática também não era problema. História e geografia nem conta... Certo, daria pra estudar bastante.

Quando o Aquiles entrou eu já estava instalada na minha última bancada, e como ele estava acompanhado da Bia, foi praticamente obrigado a sentar com ela numa das primeiras bancadas. No fim da aula ele me cumprimentou e fomos para a aula de matemática. O professor Walter estava dando revisão para a prova que logo aplicaria também. Perfeito pra mim, que não precisava de revisão de matemática, e sim de inglês. Peguei os exercícios que imprimi no dia anterior e tentei resolvê-los.

_ Que isso Mel, eu passo cola pra você...

_ Prefiro não arriscar.

Tentei me concentrar novamente.

_ Mas não é difícil pegar cola na aula dela não, ela é toda brisa...

_ Hum-hum. - concordei, visivelmente ocupada com meus exercícios.

_ Aqui é simple past. - ele corrigiu apontando minha folha.

_ É que eu gosto de past perfect. - mas apaguei meu erro.

_ Percebe-se. Porque aqui também é simple.

Droga... Estava tão errado assim?

_ Obrigada Aquiles. - guardei a folha, irritada.

_ Disponha.

A Bia conseguiu sentar entre nós na aula de história, o que me rendeu uma revisão tranquila dos meus exercícios, e consegui enxergar mais claramente meus erros.

_ Mel?

_ Não.

_ Então até daqui e pouco.

Enquanto eles desciam para o intervalo, fui para a sala de geografia. Nada de interessante também. Senti que a aula passou mais depressa do que o normal, em se tratando do professor mestre em hipnose...

Parecia que só mesmo eu estava preocupada com a prova de inglês.

_ Deixa eu sentar aqui. - pediu o Aquiles colocando a mochila dele sobre a mesa que eu sempre sentava. - Senta aqui atrás de mim.

_ Hã? Mas... Eu prefiro...

_ Senta aí Mel... Assim dá pra você dar uma espiada básica.

_ Mas eu não quero espiar nada.

Ele sentou-se no meu costumeiro lugar e indagou brincalhão como sempre:

_ Vai me tirar na porrada?

Talvez não conseguisse tirá-lo, mas a idéia da porrada era tentadora...

Acabei sentando atrás dele, sem escolha. Logo a professora iniciou a distribuição dos testes e todos se calaram.

Não tinha muitas questões, mas eram todas dissertativas. Suspirei e comecei a resolver. Elas ficavam gradativamente mais complicadas. Percebi que o pessoal começou a deixar a sala. Cada vez mais gente saía. Eu estava mesmo ficando pra trás...

“Até a Bia!” Pensei com raiva quando ela se levantou, entregou a prova e saiu.

“Ah, não... O que ele pensa que está fazendo?!”

O Aquiles estava com a prova levantada, para que eu pudesse ler as respostas. Mas que droga, a professora estava logo atrás da gente vigiando do fundo...

_ Abaixa... - sussurrei em tom urgente.

Mas ele fingiu não me ouvir. Dei uma olhada para trás de canto de olho para localizar a professora, e não me surpreendi quando a vi caminhar em nossa direção.

“Ele vai fazer essa presepada de novo?”

Recostei-me na parede tentando esconder ao máximo aquela prova indiscreta do Aquiles. Enquanto fazia isso não pude deixar de bater o olho justamente nas respostas que eu queria. Foi mesmo por acaso...

_ Tudo bem?

Sorri debilmente para a professora pensando numa resposta plausível. Mas para meu alívio, a folha não estava mais lá.

_ Tudo, professora. Inclusive acho que terminei.

Estendi a prova para a professora e deixei a sala.

Desci a rampa vagarosamente, pois sabia que o Aquiles também já havia terminado a prova.

_ E aí, conseguiu?

_ Consegui chamar a atenção da professora!

_ Ah Mel, relaxa... Com essa professora não pega nada!

Era verdade. Eu não podia pelo menos agradecer?

_ Tá bom. Obrigada Aquiles. Mas não faça mais isso, nós já temos experiências bem ruins nesse seguimento.

Sorri vagamente para ele não achar que estava brava com o problema de química.

_ Tem razão. Melhor tomarmos mais cuidado.

Seguimos boa parte do caminho em silêncio. Quando chegamos ao ponto, percebi que ele só estava procurando o melhor momento para perguntar:

_ Por que você mudou de escola?

Por que ele era tão obcecado pelo meu passado?

_ Por que quer saber?

_ Curiosidade, só. Mas se você não me falar, só vai aumentar minha insistência em saber.

Olhei para o outro lado. Cadê o trólebus quando precisamos dele?

Não era uma história tão misteriosa assim... Mas como eu ia contar pra ele que eu era motivo de piadas, chacotas e etc? Ele ia perguntar porquê, e isso eu também não saberia responder...

_ Eu só não gostava de lá.

_ Tinha amigos lá?

_ Não.

 

She wants to go home, but nobody's home

Ela quer ir pra casa, mas ninguém está em casa
That's where she lies, broken inside

É onde ela fica, despedaçada por dentro
With no place to go, no place to go

Sem lugar pra onde ir, sem lugar pra ir
To dry her eyes broken inside

Para secar seus olhos, despedaçada por dentro

 

_ Você estudou dois anos lá e não fez amigos?

_ Foi só um ano.

_ Você estudou apenas um ano na Jorge Street? Onde estudou no ano anterior?

Que beleza... Como resumir minha história em dois minutos?

_ Não. Na verdade estudei o primeiro ano na Jorge, e o segundo na Júlio. Tive problemas nas duas, por isso mudei.

_ Que problemas?

_ Ai Aquiles, nada importante! Problemas de adaptação. Acontece. Principalmente quando você é uma pessoa tímida, ríspida e mal humorada.

Forcei um sorriso pra parecer despreocupada.

_ Vai dizer que ainda tá brava com o que eu disse ontem de você?

_ Você anda muito sensível ultimamente. Presta atenção: eu não estou brava! E para de me perguntar isso antes que eu fique de verdade!

_ Tá bom, parei... Mas... Vai me contar como foi?

_ Como foi o quê?

Felizmente um trólebus se aproximava. Se não fosse o meu, só poderia ser o dele.

_ Nas outras escolas.

_ É o seu. - apontei.

_ Não tô com muita pressa...

_ Ah, então você vai ter que matar seu tempo sozinho, o meu está vindo atrás. Até amanhã Aquiles.

_ Beleza, acrescente “esquiva” na sua lista de adjetivos! - ouvi-o gritar quando corri até o trólebus de trás.

Sentei e coloquei o MP3 player. Uma hora eu ia acabar contando que me chamavam de lêmure e coisas piores... Ou que passavam trotes para minha casa... Ou até que fizeram eu me apaixonar para fazer disso uma piada também. Hora ou outra isso ia escapar.

Mas quanto mais eu pudesse adiar, mais eu faria.

She's lost inside, lost inside (oh, oh)

Ela está perdida por dentro, perdida por dentro
She's lost inside, lost inside (oh, oh, yeah)
Ela está perdida por dentro, perdida por dentro

 

Continua