O Espelho escrita por CK Bellini


Capítulo 6
Ruptura


Notas iniciais do capítulo

Depois de séculos (mesmo) atualizei. Aêeeee o/
Acabou o bloqueio e o próximo capítulo será a conclusão. Obrigado pela paciência e me perdoem pela demora de meses.



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Duas semanas depois.


—Eu não devo dizer mentiras... — Murmurou o pequeno Harry.




O menino estava coberto de sangue e fuligem. Uma marca de dedos brilhava roxa sob a luz bruxuleante das velas sobre a mesa do delegado.




— Eu já entendi, Harry. — Disse o delegado, observando as crescentes lágrimas nos olhos aguados do garoto. — Agora, preste atenção: Eu vou repetir a pergunta e você me dirá a verdade.


O menino acentiu com um aceno de cabeça.

— O que aconteceu com a sua família? — Perguntou ele, pacientemente.

Estavam no escritório da guarda da cidade. Um ambiente escuro e sem janelas, com estantes de livros em um lado, a mesa com duas cadeiras, de frente para a outra, no centro. O candelabro pendia logo acima da escrivaninha com duas velas derretidas acesas, lançando luz tremeluzente sobre os presentes. Em pé, ao lado da porta, um guarda de armadura completa, com a espada desembainhada, segurando com a folha em direção ao chão.

— E-eles sumiram, senhor. — Soluçou o menino, escondendo o rosto nas mãos.

O delegado esbofeteara o rosto do jovenzinho para acalmar-lhe, mas a força aplicada fora muita. Sentia-se levemente arrependido, mas ainda não encontrara o que estava procurando.

— Eu sei que eles sumiram, Harry. — Suspirou ele, pacientemente. — Mas você foi encontrado coberto de sangue. Vamos mudar a pergunta, então. De quem é todo esse sangue?

O menino parou de se mexer com as mãos enterradas no rosto. O ar assustado e infeliz desaparecera. Em seu lugar, uma imobilidade fria e apática se seguiu.

— Meu. — Respondeu.

— Não, Harry. Esse sangue não é seu. A enfermeira Laura te examinou e você não tem nenhum ferimento.

O menino continuou imóvel, com as mãos sobre o rosto.

— Diga-me, agora. De quem é esse sangue?

O menino não respondeu.

O delegado suspirou, passando a mão no rosto em um gesto impaciente.

— Harry, de quem é esse sangue? Pode me dizer, nada vai acontecer com...

— NÃO! — Gritou o menino, pondo-se de pé em um pulo. Olhava aterrorizado para o homem em sua frente e para os lados. — Ele saberia, se eu te contasse. Ela disse que viria me pegar!

— Ela quem, Harry? — Indagou oficial ao lado da porta.

— Ela levou minha mamãe e meu papai. Ela levou até a Beth, minha cachorrinha. Ela disse que não ia me levar se eu brincasse com ela e não contasse para ninguém! Por favor, não posso falar!

Harry Genover fora encontrado dentro do celeiro de sua propriedade. Apático, observando a carcaça dilacerada de uma vaca, estava coberto em sangue seco. Seus pais não foram encontrados em lugar algum, e a situação na casa do menino sugeria que algo muito ruim acontecera. O menino, porém, não disse uma palavra sobre o ocorrido até essa conversa na sala do novo Delegado, porque o antigo desaparecera três dias antes.

— Mas... Harry, há quanto tempo você não brinca com ela? — Perguntou o delegado.

— Desde que eu cheguei aqui e...

Harry arregalou os olhos, absolutamente aterrorizado.

— Ela vai me pegar... Eu não fui brincar com ela.

E sentou e soluçou, inconsolável, murmurando um “eu vou morrer” engasgado. O delegado levantou de sua cadeira e foi até o menino, sentando ao seu lado e confortando-o.

— Não vai, Harry. Não se eu a pegar antes.

Desde que O Espelho chegara às mãos da Rainha, quarenta e cinco pessoas desapareceram sob circunstâncias absolutamente suspeitas e misteriosas. Alguns, sem traço nenhum, apenas uma porta aberta, ou um chapéu no chão.

Famílias estavam assustadas, trancavam-se à noite em suas casas, e muitas diziam ouvir batidas em suas portas.

Em um desses relatos, a grande e cinzenta nuvem que paira sobre a cidade estava particularmente tempestuosa. Era pouco depois da hora do jantar. A mãe colocara as crianças para dormir e permanecera no cômodo inferior, terminando uma peça de costura que entregaria no dia seguinte.

O vento rugia do lado de fora, carregando poeira e folhas. Relâmpagos riscavam o céu, mas nenhum trovão ribombava ou gota de chuva caía. Noite estranha, observara a mãe.

Os relâmpagos produziam sombras compridas na parede imediatamente oposta à janela, onde uma poltrona rosada, ao lado de uma mesinha de pernas bambas com uma lamparina a óleo, descansava pacientemente.

Os cabelos da mãe estavam presos em um coque apertado no alto da cabeça. Seus olhos cansados e com rugas davam sinais inconfundíveis de quem já fizera mais do que aguentava.

Novamente, um relâmpago. Ela se assustou e olhou para fora.

Estava absoluetamente escuro. Não era possível ver nada, apenas o céu, coberto com a nuvem de negro mais leve que o das sombras. O vento carregava folhas.

Então ela a viu com um relâmpago. Parada, ao longe. Tão negra quanto a o exterior da casa, de estatura pequena. Uma menina. Os cabelos soltos ao vento. Endava com uma das mãos agarrando o vestidinho. Seus olhos eram tampados pelas madeixas que serpenteavam ao sabor do vento forte.

A mãe congelou, aflita. “Pobrezinha!”, pensou ela.

Imediatamente correu para o mastro que segurava o chapéu do pai que dormia no andar de cima e apanhou seu casaco de pele de urso. Estava realmente frio aquela noite.

Ela abriu a porta e chamou pela menina.

— Olá? Querida! Saia do frio, entre aqui! Está sozinha?

Um barulho de sucção e a garganta da mãe fora cortada rente ao queixo. O sangue espirrou de uma forma violenta e ela tossiu e engasgou, ainda não entendendo o que estava acontecendo.

— Obrigada. — Sussurrou a menina. Tinha uma voz rouca e rasgante, embora ligeiramente delicada, como se estivesse por cima da voz de uma criança.

A menina passou por cima do cadáver ligeiramente agonizante da mãe e seguiu para a escada. Sentia cheiro de medo. Naturalmente, sua presença inspirava pesadelos, mas ninguém a entendia. Ela era sozinha, tinha um ódio mortal dos que tinham sangue quente e odiava não poder dormir, jamais, sob cobertas quentes em uma casa confortável como aquela. Chegou até mesmo a sentir pena da mulher que tão tolamente oferecera abrigo à ela, um demônio como era.

Subiu as escadas e virou à direita. Lá estavam elas, como anjinhos. Dormindo tranquilamente. Ao menos em aparência. Em alguns momentos, se mexiam, incomodadas com o sonho que estavam tendo. Ela pensava que era algo da natureza deles, quando sentiam a morte vir. Sabiam que iriam morrer, só não sabiam que a própria morte as encarava, no batente da porta.

“Que indelicado!”, pensou ela, “ficar olhando para essas pobres crianças que estão tendo pesadelos.”

Andou silenciosamente, mas displicentemente até a cama da mais próxima, de cabelos dourados. Arrancou as cobertas e, com as mãos, agarrou a garganta da menina.

Ela acordou, sem poder respirar, tendo sua garganta esmagada. Conseguiu um grito rouco e silencioso, que acordou a irmã.

— PAAAI! — Gritou ela, horrorizada.

— CALE-SE! — Ordenou a vampira, com sua voz demoníaca. A criança observava-a, chorosa, enquanto a irmã lutava contra a mão do monstro, esmagando sua traquéia. Ela já estava ligeiramente roxa, pendendo do alto da mão da vampira, sacudindo as pernas de forma aterradora.

O pai entrou intempestivamente no quarto, segurando uma espada enferrujada. Estava no auge dos seus quarenta anos, enfiado dentro de um pano azul listrado de dormir. A barba já estava crescendo. Provavelmente, o leiteiro.

Quando ele viu sua filha, mexendo debilmente, pendurada na garra da vampira, vacilou por um momento, então gritou em direção ao monstro.

— SARAH! TIRE AS MENINAS DAQUI!

Mas Sarah jazia morta, na portsa de entrada. Obviamente, o homem não sabia, ou apenas imaginava.

Com um gesto simples da mão da vampira, ela barrou a espada, que penetrou em seu antebraço nu e chiou com sangue negro e cáustico. Usava um vestidinho simples e preto sobre a pele absolutamente alva. Seus olhos eram negros, a boca estava suja de sangue e,quando o relâmpago voltou, não produziu sombra.

— Deus do céu! — Gritou ele, indo para trás num vacilo.

A menina estava morta, erguida a alguns metros do chão. Ela apertou a mão e a garganta dela estourou, lançando sangue no colchão branco. A irmã gritou. Sorrindo, a vampira rumou para ela, que tentou correr.

A vampira simplesmente entrou na frente da garotinha e abriu os braços, arrebatando-a num abraço mortal.

Com as presas à mostra, abocanhou a garganta e enfiou a mão no peito da garota, arrancando seu coração.

O pai fugiu.

O delegado se lembrava muito bem do estado do homem ao chegar e contar isso para ele. Estava embebido em suor e pálido como cera. Marcas de noites não dormidas lhe acentuavam ainda mais o rosto.

Decidiu, então, começar uma caçada. Já tinha a permissão de sua majestade, a Rainha, para rastrear a destruir esse monstro em forma de garotinha que matava e feria crianças, mulheres, velhos e homens.

Não tardou muito para ele encontrar um grupo dos melhores caçadores da região e partir em busca da criatura. No meio tempo, outras duas vítimas já tinham sido registradas, aumentando para quarenta e sete o número de mortos. Partiram sobre os brados e vivas da população, em direção ao rastro de sangue deixado pelas venezianas corridas e casas vazias.

Passaram dois dias sem nada encontrar, até que eles a acharam.

Dormia sob uma carroça abandonada. Absolutamente pálida, de cabelos negros como a noite e sem produzir sombras. Ela foi pega como a uma presa, amarrada, amordaçada e levada, à pedido da Rainha, para ser executada em praça pública, na capital.

O palco havia sido montado com capricho, como para um espetáculo. Nele, a guilhotina erguia-se sinistra e imponente. Em um determinado momento, a cidade inteira estava lá, e sua majestade viera acompanhar.

Em um discurso caloroso e displicente, a Rainha dirigiu-se ao seu povo aflita e aliviada pelo monstro ter sido capturado. Em honra aos seus súditos mortos pelo monstro, encheria um vaso de cristal com o sangue negro do bicho e o deixaria exposto no hall de entrada de seu magnífico castelo, para provar que os cristãos servos e tementes a Deus jamais se curvariam perante uma obra do demônio, e sairiam vitoriosos!

E, acompanhada de muitos e emocionados aplausos, a Rainha voltou satisfeita para seu acento acolchoado na sacada de uma pousada na praça principal.

Ela foi trazida acorrentada. Estava assustada, mas encarava a multidão com altivez. Sua falta de sombra fazia-a parecer um recorte de papel. Sua pele já não estava pálida e límpida como leite, mas queimada e com bolhas terríveis. Quanto mais você encarava-a, mas ela parecia borbulhar.

A multidão atirou insultos enquanto prendiam-na na guilhotina.

— Últimas palavras, monstro. — Disse o executor.

Para a surpresa da rainha, ela olhou-a diretamente nos olhos.

— Está cometendo um grande erro oferecendo-me para aquilo, majestade. — Disse ela.

Um lampejo e a cabeça fora arrancada do corpo. O sangue negro e causticante caiu na bacia de cobre colocada em frente ao executor e fora introduzido no recipiente de cristal, que a Rainha ergueu triunfante, sob os vivas da população.

Mas a frase da vampira pairava sobre sua mente. Como ela sabia?

Mas não podia deixar-se abalar por algo tão bobo. Ela provavelmente falou aquilo só para me assustar, afinal, o que terá ela a saber do espelho? Obviamente, a verdadeira garotinha estava presa na prata vampírica do objeto, e ela libertaria-a quando a desse o sangue negro do demônio e ganharia os seus desejos. Bela, poderosa e amada.

Entrou feliz no quarto com o jarro. Subiu os três degraus do palco do espelho e passou a mão na superfície vítrea e sem reflexo.

O frio penetrou-lhe na espinha, e ela sentiu que o espelho sabia que conseguira. Sentiu a euforia.

“Entregue-me” sussurou ele, em sua mente.

A Rainha se afastou e atirou o recipiente no chão, espalhando o sangue negro, que queimou a pedra cinzenta. Ele se fez em uma circunferência perfeita, absorvendo todas as gotículas do líquido negro que restassem, então com uma linha tênue e continua, preencheu os sulcos ao da moldura do espelho. E as últimas palavras, ignoradas na sede de poder da rainha, fizeram-se presentes:


Fine Tertii Ordinis




bestia est liberum




Et mundi periit



Então, lendo atentamente, a Rainha percebeu algo que lhe passara completamente despercebido.




A superfície vítrea e liza do espelho, sem reflexo, gradualmente adquiriu fluidez. O brilho opaco deu lugar à janela para um mundo de fibras e cordas, de linhas. Um mundo que parecia tecido por uma aranha agonizante. No centro do local, um busto elevava-se, em fibras e brilho vermelho. As fibras foram se arrebentando e o busto foi gradualmente se desenrolando. A Rainha assistia, petrificada, uma coisa horrível se libertar do cárcere que há eras vivia.





bestia est liberum





Et mundi periit





Não era uma menina, mas algo tão horrível e tão aterrorizante que fez até o tutano dos ossos da Rainha estremecer. Seus cabelos se eriçaram e seus dentes rangeram. Um medo mortal atravessou seu tecido como lâminas geladas. A criatura se ergueu em sua postura humanoide e olhou-a diretamente em seus olhos.





A Rainha sentiu seus joelhos dobrarem e caiu estatelada no chão frio, inconsciente. Sem antes ouvir o som de vidro se quebrando.




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