Três da manhã e eu ainda não peguei no sono, minhas noites têm sido difíceis desde que o acidente acontecera. Não consigo parar de pensar no que as autoridades podem encontrar em suas investigações e quando consigo cochilar, meus sonhos são sempre os mesmos, confusos, memórias misturadas com alucinações, com desejos desesperados de que ele esteja vivo ainda. Comecei a lembrar os sonhos, eu sempre o reconhecia por seus olhos, sempre tão vivos e tão cheios de significado.

No começo pensei que não fossem apenas sonhos, mas percebi que estou ficando muito velha, farei sessenta e oito anos em março, há cinquenta que não o vejo e provavelmente nunca tornarei a vê-lo por estes poucos anos que me restam... 

Quanto tempo leva para se conhecer alguém? Eu não sei, mas eu sentia, desde a primeira vez que o vi, que nos conhecíamos desde o início dos tempos, ele parecia ver em mim o que eu com sucesso escondia de todos, ele via por trás dos sorrisos todas as dúvidas e os desejos e os medos que me rondavam, ele sabia quem eu era, mas eu acho que nunca cheguei a saber verdadeiramente quem ele era, apesar da singularidade de seu olhar... Ele não escondia nada de mim, mas eu sempre tive a sensação de que havia algo escondido, algo que eu nunca saberia com precisão. Ele partiu e essa dúvida continuou, lateja em minhas têmporas até hoje...

Um ano depois que terminamos, fui estudar Direito em Cambridge, isso serviu para me fazer esquecer um pouco meus sentimentos e me focar em meu futuro, algo que eu tão ardentemente idealizara. Apesar das marcas que ficaram no meu coração, tive uma vida feliz, me realizei profissionalmente, conheci um homem que me amou até o dia de sua morte, dele tive um filho e sempre tive tudo o que quis. Allan era um homem bom, capaz de tudo por mim, ele sabia que havia algo de doloroso em meu passado, mas nunca perguntou, nunca se incomodou, ele entendia o que poderia representar, Allan nunca desistiu de mim, nem em nossas piores discussões. A vida que tive com ele foi a vida que poucos casais possuem atualmente. Infelizmente, há dez anos, estávamos velejando com uns amigos quando Allan caiu no mar, como havia engolido muita água, seu sistema respiratório ficou comprometido e ele não resistiu. Foi uma grande perda, pois, a certo modo, eu também amei aquele homem, era algo diferente, mas também era amor...

E então me lembrei de Zayn. Os dois homens da minha vida. Um já se fora a muito e agora o outro, o primeiro, que eu nunca esqueci, talvez tenha ido também, para além de qualquer alcance meu. Todos da cidade estavam ávidos por notícias acerca do acidente. Encontraram alguns acessórios, um par de sapatos meio chamuscados tamanho quarenta e rastros de sangue. Tudo foi para análise. E eu continuo sem descanso.