Recém-nascida escrita por Cambs


Capítulo 2
Um




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PARTE I — UMBRA

“Taste me, drink my soul, show me all the things that I shouldn't know”

Atualmente

Viajar de avião, às vezes tão divertido, às vezes tão chato. Hoje estava chato, talvez porque eu não quisesse estar viajando, talvez porque eu já tenha feito esta viagem tantas vezes que já tinha o caminho gravado na memória. “Ações repetitivas tornam-se cansativas” era o que Marco dizia sempre que eu mencionava a palavra tédio.

Por sorte, ou não, o pouso já estava próximo. Eu já conhecia o procedimento, então poderia me dar o luxo de observar a paisagem nos últimos momentos de voo. Poderia ter vindo para cá milhares de vezes antes, mas a paisagem sempre me tira o fôlego, é realmente bonito.

O avião pousou e enquanto eu pegava minha única — e grande — mala, repassei minha rotina mentalmente: pousar, fazer o check-in, passar em uma loja de conveniência, passar em uma doceria, alugar um carro e dirigir por mais ou menos cinco horas e meia até o Castelo Hunyad. Depois de quase todos os itens da lista já cumpridos, me faltava agora convencer o gerente da loja a me permitir alugar a Bugatti Veryon prata, cuja qual eu estava apaixonada desde que entrara ali.

— Então o que me recomenda? — perguntei cruzando os braços para disfarçar a irritação. Todos meus palpites foram recusados, a Bugatti Veryon, a Lamburghini Diablo, a BMW, a Ferrari e até o Audi. Quero dizer, apenas me alugue o carro e fique quieto.

— Acredito que o Jaguar seja mais adequado para a senhorita — ele sorriu revelando os dentes amarelados pelo uso de nicotina. Velho gordo nojento.

— Um Jaguar? — arqueei a sobrancelha. Certo, era um carro bonito e rápido, mas por que não aceitar minha primeira proposta de uma vez? — Ok, ainda prefiro a Bugatti.

Ele suspirou fazendo alguns fios do bigode balançar. Analisando sua postura e expressão, eu deveria ser a cliente mais chata que ele já tinha visto.

No fim das contas eu acabei ficando com uma Masserati.

Depois da briga para conseguir alugar o carro, consumi todas as minhas barras de chocolate em menos de uma hora. Eu estava nervosa, isso era um fato. Visitar os Amattris depois de três anos fora era algo que certamente mexeria com os nervos, principalmente quando se trata de Marco. Meu pai sempre foi imprevisível.

Tinha se passado cerca de três horas quando fui obrigada a parar o carro no acostamento pela falta de combustível.

—Ah fala sério — bati a cabeça contra o volante.

Como se não bastasse à viagem de reencontro familiar — cuja qual eu estava hesitante em terminar —, eu estava tendo um daqueles dias em que vários “sinais” são enviados dizendo que você não deveria ter levantado da cama. Deveria ter percebido isso quando a aeromoça derrubou uísque na minha roupa, ou então quando aquele cara bonito veio me trazer um dos meus sutiãs que tinha caído da mala com o zíper aberto — vergonha pura — ou então até mesmo quando aquele vaso de planta caiu na minha cabeça.

Consegui pegar um pouco de gasolina com um casal que passava pela estrada e dirigi até um posto de gasolina, completei o tanque, comprei alguns salgadinhos e voltei para a estrada com duas horas faltando para terminar o percurso, isso se nada mais acontecesse. Como eu previa, fui obrigada a parar mais duas vezes, pois minhas pernas insistiam em ficarem dormentes tornando impossível dirigir. Aproveitei essas paradas para trocar minha roupa e arrumar a maquiagem. Segundo Marco, usar camisetas — especialmente as de bandas — e jeans não era uma maneira adequada de se vestir, principalmente pelo meu “status” de uma dhampir Amattris. Eu sempre o mandava à merda por isso, mentalmente, mas mandava.

Continuei a dirigir e finalmente comecei a ver a silhueta do castelo, sua bela construção gótica que contava com uma ponte e um imenso jardim, além do pequeno caminho de água debaixo da ponte e seu interior gigantesco. Estacionei o carro perto dos portões de entrada e saí caminhando com o barulho do salto alto ecoando em meus ouvidos, Hunyad geralmente era um ponto turístico — não extremamente visitado — de Huneadora e isso gerava “alegria” para Marco já que garantiam seu alimento. Mas Hunyad sempre perderia para o Castelo de Bran no quesito turismo. Quem dera as pessoas soubessem que os vampiros estão em Hunyad e não na Transilvânia.

Passando pelos portões, encontrei um grupo de cinco pessoas paradas na ponte tirando fotos da paisagem e quando estava perto da porta de entrada da construção entendi porque o fluxo de pessoas estava extremamente baixo. O castelo estava trancado, para eles isso significava fechado para visitação.

Excuse me — uma mulher chamou, ela fazia parte do grupo na ponte e pelo sotaque era inglesa. Turistas. — Do you know why the castle is closed?

Sorry, I wanna know why too — sorri. Ela retribuiu o sorriso e pediu licença, voltando para perto de seu grupo.

Realmente, por que o castelo estava fechado?

Certo, a luz do Sol atrapalha já que ninguém pode sair do castelo, mas as portas costumavam continuar abertas já que todos dormiam em seus quartos no subterrâneo enquanto o horário de visitação acontecia. As poucas vezes que vi este castelo trancado foram nas “crises” de Marco, que eu conseguia contar na mão quantas vezes aconteceram.

Então, eu estava presa do lado de fora. Eles deveriam estar dormindo ou simplesmente no subterrâneo, eu não tinha nenhuma cópia da chave do cadeado e não poderia gritar por causa dos turistas. A única solução que eu tinha em mente era ficar ali e esperar anoitecer. O horário de visitação geralmente terminava as oito, mas como apenas a ponte está liberada não deve haver mais ninguém por aqui por volta das seis. Analisei a porta um pouco mais e depois me encostei-me a uma parte do muro da ponte, apenas observando a bela paisagem enquanto esperava as horas passarem. Eram apenas quatro da tarde, duas horas até as seis e duas horas até minha entrada se eu tiver sorte. O que eu certamente não tenho.

Os cinco turistas saíram dali depois de meia hora e até que o relógio batesse as seis, mais umas três pessoas passaram por ali. Movimento terrivelmente baixo. Preparei-me para gritar quando ouvi o barulho de chaves do outro lado da porta. Mas já estava na hora da ronda?

— Sophie? — Elliot abriu a porta.

Elliot fazia parte da guarda. Tinha os cabelos loiros e lisos, geralmente bagunçados, seu corpo era esguio, dentes perfeitos com os caninos retráteis, rosto fino e os famosos olhos azuis safira que todo vampiro tinha.

— Elliot — sorri e o abracei. Independente da minha relação turbulenta com os Amattris, Elliot era meu amigo.

— O que está fazendo aqui? — ele retribuiu meu gesto de uma maneira rápida e me empurrou para trás.

— Visitando vocês.

— Você não apareceu por três anos.

— Tive meus motivos — coloquei uma mão na cintura. — Hey, por que o castelo está trancado?

— Estamos com alguns problemas — Elliot olhou por sobre o ombro.

— Elliot, o que aconteceu?

Ele não respondeu de imediato. O vento na ponte começou a ficar forte e eu esfreguei meus braços arrepiados, deveria ter pegado minha jaqueta.

— Desculpe — Elliot deu um passo para o lado liberando minha passagem para dentro do castelo. — Você precisa saber de qualquer jeito.

Suspirei e entrei no castelo. Seu interior era tão esplêndido quanto o lado de fora, eu e Elliot andamos pelos corredores imensos e quando pensei que entraríamos no corredor que levava até a sala do trono, Elliot virou para o outro lado e nós descemos para o subterrâneo, o lugar dos quartos.

— Espere aqui — ele me fez parar no meio do corredor e depois continuou andando até que parou em frente a uma porta, bateu e entrou assim que a passagem lhe foi permitida. Cruzei os braços e respirei fundo enquanto esperava Elliot voltar, comecei a olhar ao redor, todas as portas estavam fechadas, algumas apresentavam movimento do lado interior e outras não. Mas tudo continuava do mesmo jeito de três anos atrás.

— Sophie? — Vicktor apareceu no fim do corredor acompanhado por Elliot mais atrás. — O que faz aqui?

Bufei. Certo, eu não esperava uma festa de boas vindas ou abraços, mas custava fazerem de conta que estão felizes com a minha presença? Quero dizer, isso não é uma maneira agradável de chegar a um lugar que você nem queria vir.

— Visitando vocês — cruzei os braços.

— Não é uma boa hora — ele suspirou pesadamente. É, eu já percebi que não era uma boa hora.

— Certo, então vou voltar para o Canadá e daqui umas duas semanas eu volto.

— Sempre com piadinhas — Vicktor balançou a cabeça tentando esconder o sorriso. — Venha, precisamos conversar. Obrigada por trazê-la até aqui Elliot.

Elliot maneou a cabeça em um sinal de positivo e saiu do corredor, passou por mim sem piscadelas e sem sorrisos tortos. Suspirei e segui Vicktor pelo corredor. Primeiramente eu achei que ele me levaria até seu quarto, depois passei a achar que ele me levaria até o quarto de Marco, mas quando nós dois paramos em frente a uma porta de mogno eu não acreditava que ele tinha me levado até ali, justo ali.

— Só um minuto — Vicktor bateu na porta e entrou. Segundos depois a porta tornou a abrir e agora ele me convidava a entrar. Seria muito ruim se eu recusasse o convite?

— Olá Sophie — fui recebida por uma mulher no quarto. Ela tinha os cabelos escuros descendo em ondas até a cintura, o rosto era delicado e a pele translúcida, os olhos tingidos de um intenso azul safira revelava que era uma vampira e sua beleza era, de fato, estonteante. Embora sua aparência desse a entender que ela era doce, eu sabia que não era. Aquela era a esposa de Marco.

— Olá Mégara — voltei a cruzar os braços.

— Sentem-se — ela apontou para o canto de seu quarto aonde havia suas poltronas de veludo vermelho. Mégara esperou até que eu e Vicktor nos sentássemos e começou a andar pelo quarto. — Então, resolveu aparecer.

— Pois é, sentiu minha falta? — cruzei as pernas enquanto brincava com uma mecha de cabelo.

— Nem um pouco — Mégara sorriu.

— Você ainda não sabe das novidades, não é Sophie? — Vicktor recostou-se na poltrona. Para ele era divertido ver eu e Mégara juntas. Marco também achava a mesma coisa.

— Não, acabei de voltar para esse mundo. E, por favor, onde está Marco?

— A novidade é essa — Mégara sentou-se séria na cama. — Ninguém sabe.

— Como assim? — encarei-a. — Você quer dizer que ninguém sabe onde Marco está?

— Exatamente — foi Vicktor quem me respondeu.

— Certo... Ele foi para alguma festa, reunião, viagem de negócios, passeio turístico ou o que?

— Ele foi levado ou sequestrado, como desejar — Mégara encarou um dos travesseiros.

— Marco? Sequestrado? — arquei uma sobrancelha. — O senso de humor de vocês é ótimo, meio macabro, mas ótimo. Agora é sério, onde ele está?

— Marco foi levado, já dissemos. Ria se achar que deve, mas os Mottris os levaram — Mégara levantou-se da cama em um salto.

Parei por um minuto. Os Mottris eram um dos clãs mais “poderosos” e o líder deles, Carlo, estava no quarteto de líderes. Eu sempre ouvia Marco reclamar sobre eles, que não honravam com sua espécie e que não se podia esperar lealdade do clã. Mas eu passei meio século vivendo com eles e sei que não é assim, ou pelo menos achei que não. Mas por que os Mottris levariam Marco? Em que seria útil?

— Os Mottris, Sophie, são agora traidores — Vicktor dirigiu-me um olhar que eu não soube identificar se era decepção, diversão ou aflição. E, por um breve momento, eu imaginei que eles estavam certos.


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