As Cem Melhores Historias Da Mitologia escrita por Allan


Capítulo 12
O Nascimento de Baco




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A princesa Sêmele, filha de Cadmo e Harmonia, estava deitada em seu leito. Estava só,

mas ao seu lado ainda havia a marca profunda de um corpo — o corpo de um deus. De fato,

Júpiter, o mais poderoso dos deuses, estivera até há pouco gozando dos prazeres que lhe

proporcionara sua mortal amante.

— Béroe! — disse Sêmele, espreguiçando-se. Um raio cálido de sol que entrava pela

janela de cortinas balouçantes acariciou seu ventre.

Alguns instantes de silêncio.

— Béroe, surda! — gritou Sêmele, apoiada aos cotovelos. Uma velha criada entrou

apressada.

— Desculpe, minha ama...

— Béroe, esta noite foi verdadeiramente divina... — disse a jovem, sorrindo. "Então é

tudo verdade!", pensou Juno, pois era a esposa divina de Júpiter quem estava ali, metamorfoseada

na velha criada de Sêmele.

— Vamos, ajude-me a me vestir — disse a jovem, erguendo-se.

— Desculpe, ama, me intrometer em tais assuntos — disse Juno disfarçada -, mas está

certa, verdadeiramente, de que este homem que priva de seu leito todas as noites seja mesmo

Júpiter, o deus supremo?

— Que diz, Béroe? — exclamou Sêmele, enrubescendo. — Um homem, ele? Sua tonta,

nenhum mortal poderia amar uma mulher como este divino ser! Homem algum teria o seu toque

misterioso, nem beijo algum teria a volúpia que ele, Júpiter, põe em seus divinos lábios...

Sim, Juno sabia perfeitamente de tudo isso. "Mas as carícias que ele lhe dá nunca serão

mais do que o mero produto de um instante, estando sempre conspurcadas pelo susto e pelo

medo de um terrível castigo", pensava Juno, tentando vingar-se mentalmente da adversária.

Entretanto, desconfiava em seu íntimo, mesmo sem dar-se conta claramente disto, de que

justamente ali poderia estar uma parcela do encanto e das delícias que ela, esposa legítima, jamais

poderia desfrutar.

— Mas existem tantos homens, bem, digamos... — disse a falsa Béroe, fingindo escolher

o termo certo -... tão hábeis, minha ama, que às vezes nós mulheres, frágeis e tolas que somos,

deixamos nos enganar com humilhante facilidade...

— Não diga tolices, Béroe — disse Sêmele, entregando as vestes à velha e lhe dando as

costas nuas. — Vamos, vista-me.

— Eu mesma, minha ama — prosseguiu Béroe, sem dar atenção às reprimendas -,

quantas vezes fui ludibriada por homens que me pareceram deuses.

Você?! — exclamou Sêmele, com um riso escarninho. — Você, Béroe, amada por um

deus? Rá!

Sêmele, contorcendo-se de riso, impedia que a ama lhe cobrisse o corpo, e embora Juno

soubesse que o deboche não fora feito a ela, ainda assim sentiu-se tomada pelo rancor — tal o

poder que uma afronta, mesmo feita por engano, pode ter sobre a vaidade feminina. Enquanto

escutava o riso, sem poder concluir sua tarefa, Juno percebeu nas costas da jovem as marcas

inequívocas que o amor deixara em sua — sim, ela tinha de admitir — nudez perfeita. Juno tinha

diante de si o mapa exato do país da traição: cada mancha arroxeada que Juno encontrava sobre

aquela alva pele simbolizava uma província do prazer que Júpiter, auxiliado pelos desvelos da

amante, havia descoberto e marcado em seguida com a mesma ganância do explorador que

descobre um lugar paradisíaco e instala com fúria o seu marco a fim de deixar bem clara a sua

posse exclusiva.

Sêmele fez menção de virar-se, mas a falsa Béroe não lhe permitiu; temia ver em que

outros lugares infames poderiam estar depositadas aquelas manchas.

— Vamos, minha ama, deixe-me vesti-la — disse a criada, introduzindo a veste pela

cabeça, como quem ensaca algo que deseja ver logo ocultado.

— Calma, Béroe, não se zangue... — disse a jovem, ainda tomada pelo acesso de

hilaridade.

— Peça-lhe uma prova... — disse Béroe, com voz insinuante.

— O quê?

— Peça a ele uma prova, cabal e definitiva, de que ele é mesmo quem afirma ser.

— Mas que prova melhor poderia Júpiter me dar, além das que já tenho? -disse Sêmele, já

vestida, abraçando-se com braços fingidamente alheios.

— Você sabe que os deuses usam uma forma humana apenas para se relacionar com os

mortais — disse a Juno disfarçada. — Peça, então, que ele se mostre para você em todo o seu

divino esplendor. Sêmele ficou alguns instantes pensativa, enquanto Béroe penteava, fio a fio, os

seus longos cabelos. — Está bem, lhe pedirei a tal prova! — disse a bela filha de Cadmo.

— Apenas não esqueça de uma coisa — disse a velha, com um sorriso pérfido no

escondido rosto -, deve fazer antes com que ele jure pelo Estige que não lhe negará qualquer

pedido.

— Por que pelo Estige? — quis saber a jovem.

— Porquê este é um juramento fatal, ao qual os próprios deuses estão submetidos —

disse Juno, em tom solene. — Todo aquele que jura pelo rio infernal deve cumprir rigorosamente

com a sua palavra, e nem mesmo Júpiter tem poder para transgredi-la.

Dito isto, a falsa Béroe afastou-se, e Sêmele ficou entregue aos seus próprios

pensamentos. Quando a noite chegou, Júpiter reapareceu, como de costume. -Júpiter, meu

amado! -disse a jovem, lançando-se a seus braços.— Desde que você começou a vir até mim, nos

braços da noite, que eu nunca mais soube dizer, com certeza, quando é dia ou quando é noite.

— Por que estas palavras? — perguntou o deus supremo.

— Porque me parece que a noite quando chega, trazendo-te consigo, me traz um dia

ainda mais claro e brilhante do que aquele que está partindo, apenas isto.

Os dois amantes abraçaram-se, e após um longo beijo, Sêmele, tornando-se séria, tomou

o rosto de Júpiter em suas mãos.

— Meu querido, preciso que você me dê uma prova de seu amor.

— Prova de amor? — exclamou Júpiter, surpreso. — Para quê?

— Não importa; apenas prometa. Prometa pelo Estige que me dará tal prova. Só assim

poderei ter sossego em minha alma e confiar plenamente em você.

Júpiter relutou durante um longo tempo. Jurar pelo Estige — o mais irrevogável dos

juramentos -, e tudo apenas por um capricho feminino!

— Está bem, eu prometo — disse Júpiter, afinal.

— Vamos, pelo Estige... — disse Sêmele. — Diga, por favor...

Júpiter acedeu, contrariado, e fez o juramento. Sêmele, aliviada, foi até o fundo do quarto

e parou, com um ar misterioso estampado no rosto.

— Quero agora uma prova definitiva de que você é mesmo o Júpiter que tanto amo —

disse ela, com o ar subitamente decidido.

— Do que está falando, criatura?

— Mostre-se agora, diante de mim, tal qual é! Júpiter ficou paralisado.

Não, aquilo não podia ser verdade. Ela devia estar brincando, ou então louca. Claro, só

uma louca lhe pediria uma coisa destas. E ele sabia perfeitamente que não poderia fazer isto sem

destruí-la.

Júpiter chegou a abrir a boca para lhe explicar o motivo, mas subitamente deu-se conta de

que o destino da pobre moça já estava selado, pois ele havia feito o juramento fatal. Nada poderia

fazer com que ele voltasse atrás — mesmo que ela mudasse de opinião ou tentasse anular sua

vontade anterior.

"Finalmente verei o que mortal algum antes viu", pensou a jovem, extasiada.

Júpiter, pesaroso, afastou-se um pouco, embora soubesse que era um ato inútil. Depois,

concentrou-se e fez com que suas formas humanas fossem lentamente se apagando. Ao mesmo

tempo uma luz, a princípio muito tênue, foi brotando do seu corpo, em dourados feixes, como se

um segundo sol estivesse a nascer dentro dele.

Sêmele deu-se conta, subitamente, do que estava para acontecer, quando viu a vaporosa

cortina atrás do deus desaparecer como num sopro, e uma nuvenzinha de fagulhas ser expulsa

pela janela, impelida pelo vento.

— Não, Júpiter... Não! — gritou a pobre jovem, mas já era tarde demais. Uma bola de

chamas irrompeu de dentro da forma humana do pai dos deuses e se expandiu por todo o quarto;

relâmpagos espalhavam-se em todas as direções e um fragor intenso de chamas devorando tudo

abatia-se sobre a jovem infeliz.

— O, maldita Béroe! — gritava Sêmele, ajoelhada, com a cabeça oculta e os ouvidos

tapados. — Béroe e a minha maldita desconfiança foram a minha perdição!

Caiu no chão o corpo chamuscado e já sem vida de Sêmele. Dentro dela, porém, sem que

ela tivesse sequer sabido, ainda pulsava outra vida.

Júpiter, dando-se conta disso, retirou do ventre da amante morta o produto divino dos

seus amores: um bebê, muito jovem ainda, mas que respirava. Sim, ele respirava! Júpiter, antes

que o palácio inteiro ardesse, retomou sua forma humana e, fazendo um talho na própria perna,

introduziu o pequeno e delicado ser dentro de sua própria coxa.

"Não poderia encontrar um refúgio mais seguro", pensou Júpiter, que já era capaz de se

alegrar outra vez, com a descoberta daquele agradável consolo.

— Afinal, para alguém que já gestou um ser em sua própria cabeça, gestar outro em sua

coxa não será coisa tão penosa... — disse o deus supremo, indo embora.

E foi assim que dali a algum tempo veio ao mundo Baco, o único deus cujos pais não

eram ambos divinos, sendo filho de uma divindade com uma bela mas infeliz mortal.


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