Kolybelnaya escrita por themuggleriddle


Capítulo 41
Et in Arcadia ego




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“Então você agora tira pó das estantes do Ollivander?”

Hermione lançou um olhar feio na direção do loiro, que estava debruçado sobre o balcão da loja enquanto ela tentava organizar as caixas de varinhas nas prateleiras. Malfoy parecia entediado, como sempre acontecia quando ele saía do Ministério e ia visitá-los, com os olhos cansados e roupas escuras que não pareciam combinar com ele. Roupas de funcionários do Ministério, dos membros mais prestigiosos das Casas do Parlamento, não as roupas do rapaz bon vivant que ele era.

“Estou ajudando Garrick em tudo que posso,” ela explicou. “De vez em quando ajudo até mesmo na fabricação das varinhas.”

“E como é?” o garoto perguntou, mudando o peso sobre os pés. “Fabricação de varinhas é um ofício super mistificado.”

A bruxa parou o que estava fazendo por um momento, tentando achar um jeito de explicar. Como ela podia descrever a sensação de entrar no atelier de Ollivander e sentir a magia pesando no ar? Ou o jeito como o homem sabia combinar cada madeira com núcleo e terminar de forjar o objeto com o formato perfeito? Nem ela sabia como Garrick reconhecia todas as varinhas que tinha ali dentro, mas ele fazia isso e ainda as tratava como velhas conhecidas.

“É... Diferente,” a bruxa falou, encolhendo os ombros. “Não é o tipo de coisa que aprendemos em Hogwarts. Claro, tem uma técnica, mas boa parte do que Garrick faz parece... Intuição.”

“Intuição?”

“Ele sabe quais madeiras e núcleos usar, mas na hora de combiná-los... É como se os materiais conversassem com ele? Não sei explicar.” A jovem voltou para perto do balcão, depois de dar uma última olhada na prateleira recém arrumada. “Ele pode fazer duas varinhas de teixo com núcleo de fênix, mas as duas serão diferentes, seja porque ele as esculpiu de forma diferente ou colocou uma magia diferente ali... Elas são... Quase vivas.”

Malfoy ficou em silêncio, o rosto apoiado na mão, enquanto a olhava. Então, suspirou profundamente e puxou o relógio de bolso pela corrente, abrindo-o.

“Deve ser divertido trabalhar com algo diferente,” ele murmurou, fechando a tampa do objeto com um estalido metálico. “Vamos? Tommy já deve estar saindo.”

A garota assentiu. Deu um último aceno com a varinha para organizar o balcão e enfiou a cabeça pela porta dos fundos para se despedir de Garrick, que estava tão absorto em esculpir o cabo de uma varinha que mal a viu saindo.

Abraxas já a esperava do lado de fora da loja. Era interessante como a postura dele mudara nas últimas semanas: se antes ela o encontrava com os ombros relaxados e as mãos no bolso de forma descontraída, agora ele mantinha a coluna e ombros retos, como se as roupas o impedissem de se mexer. Na rua, ele normalmente mantinha essa postura, como se tivesse medo de sair do padrão, mas era só entrarem no apartamento (ou, como ele gostava de chamar, o muquifo bolorento) de Tom que ele voltava a relaxar. Hermione se sentia mal de ver o quão contido ele ficava longe deles.

“Como vai o Ministério?” perguntou Hermione, enquanto desciam o Beco Diagonal.

“Uma chatice,” Malfoy resmungou e batucou algo no chão. Só então a garota percebeu que ele estava com a bengala com o cabo de cobra, a mesma que ela já vira Lucius Malfoy usando. “Leis e mais leis. Puro-sangues propondo projetos e mestiços e nascidos trouxas os vetando e vice versa. De vez em quando tem um julgamento de verdade e eu posso ir assistir... Mas os últimos foram bem ridículos, como o de uma bruxa que azarou a prataria da vizinha trouxa para as peças dançarem can-can no jantar.”

“Eu não sei se devia ficar feliz que essa é a coisa mais grave que está acontecendo agora no mundo bruxo ou se devia ficar triste pelo seu tédio,” a bruxa falou, virando na Travessa do Tranco.

“Nem eu, Elston, nem eu.” Ele suspirou e franziu o cenho. “Odeio esse lugar.”

“Mesmo?”

“Claro, tem muita coisa interessante aqui, mas... Não sei. Não gosto daqui.” O rapaz a olhou e Hermione sentiu o rosto corar. Ele a viu encarando a bengala e riu. “Um presente do Tommy.”

“Ele te deu uma bengala?”

“Certa vez eu quebrei a perna em um jogo que Quadribol e acabei usando uma bengala durante um tempo, mas sabe, eu gostei... Tommy ficou super irritado, porque eu não parava de irritá-lo com o negócio.” O loiro riu, sacudindo a cabeça. “Ai teve um Natal e eu não sei exatamente a razão disso, mas ele pegou a minha bengala e a quebrou. Ai ele pegou o cabo e, com magia, juntou à minha varinha e, voilà! Um porta-varinhas e uma bengala em um só!” Ele ergueu o objeto e sorriu. “Ele também fez a cobra, porque, como você sabe, Tommy é o maior admirador de Salazar Slytherin que existe nesse mundo.”

Hermione apenas riu, tentando imaginar a cena e se perguntando se Lucius sabia a história daquela bengala. Não demorou muito para chegarem à Borgin & Burke’s, onde ficaram parados na frente por alguns minutos. Eles raramente entravam, quando iam atrás de Tom, depois que o Sr. Burke quase os expulsou da loja porque Malfoy falou que já tinha visto crânios mais bem conservados em uma boutique na França.

Olhando pela vitrine empoeirada (Hermione sabia que aqueles vidros eram os eternos inimigos de Riddle, já que ele vivia reclamando da poeira infinita daquele lugar), eles podiam ver Tom dentro da loja, andando para lá e para cá enquanto mostrava alguma coisa para uma cliente. O rapaz estava bem vestido e a bruxa não duvidava que ele tinha no rosto o sorriso mais elegante possível, enquanto a cliente parecia estar vestindo todos os possíveis tons de rosa e roxo e andava de um jeito bem espalhafatoso, volte meia apoiando as mãos nos ombros do outro ou se aproximando demais dele. Hermione fingiu não notar a forma como Abraxas simplesmente desviou o olhar e começou a bater o pé no chão.

Depois de alguns minutos, a porta da loja finalmente se abriu, o sininho desta tocando, e deu espaço para a saída da cliente. Ela era uma senhora em seus sessenta anos, com os cabelos ruivos penteados de forma a ficarem volumosos e com o rosto muito maquiado. Ela sorria abertamente enquanto acenava e se despedia de Tom, que apenas parou na porta e ficou sorrindo educadamente.

“Sr. Malfoy!” Abraxas deu um pulo e virou-se para olhar a mulher quando esta o chamou. “Oh, por Morgana! Você é o filho! Eu me lembrava do seu pai!” A risada estridente da bruxa ecoou pela ruela da Travessa do Tranco, atraindo o olhar irritado de um goblin que estava fechando a sua loja de penhores. “Como você cresceu! Me lembro de você como um garotinho que não parava de pular em volta de Septimus.”

“Madame Smith.” O sorriso que apareceu no rosto de Malfoy era educado, mas também estava longe de ser convincente como o de Tom. “O que faz por aqui?”

“Ah, meu querido, gente velha como eu precisa arranjar um passatempo para não enlouquecer.” Ela revirou os olhos teatralmente. “Para mim, fazer coleções ajudou. E, como deve saber, a Borgin & Burke’s tem o seu valor no quesito antiguidades.” A mulher virou-se uma última vez para Tom, erguendo uma mão para dar um tapinha de leve em seu rosto. Hermione não pôde deixar de notar a forma como o rapaz pareceu enrijecer sob o toque e a forma como o olhar da bruxa brilhou diferente. “Nos vemos novamente em alguns dias, Sr. Riddle, quando vier buscar aquele item.”

Antes de dizer qualquer outra coisa, Madame Smith girou no lugar e desapareceu com um estalido. Riddle, parado à porta, soltou a respiração e relaxou os ombros. Ele acenou para eles, indicando para esperarem um pouco.

“Quem é ela?” perguntou Hermione, não a estranhando por completo.

“Hepzibah Smith,” disse Abraxas, escorando-se na frente da loja. “Como você sabe, o mundo bruxo tem a sua parcela de gente rica e excêntrica.” O rapaz apontou para si mesmo. “Hepzibah é uma delas. Não sei se é verdade, mas alguns rumores dizem que ela é descendente da própria Helga Hufflepuff... Vai saber. Eu posso dizer que sou descendente de Slytherin e pouca gente duvidaria.”

“A árvore genealógica dos Malfoy está muito bem documentada,” disse Tom, que apareceu do nada na porta, fechando-a atrás de si. “Assim como as de Slytherin. As chances de você ser um descendente dele são ínfimas.”

“Estraga prazeres.” O loiro mostrou a língua e passou um braço pelos ombros do outro, que logo se esquivou.

“Não aqui,” ele murmurou, rapidamente, ao ver o olhar quase machucado do outro. “Burke tem estado de olho.”

“Velho safado,” Abraxas resmungou e esticou a mão para segurar a de Tom, assim como Hermione.

Em um segundo, eles estavam no apartamento de Riddle e, sem esperar mais um segundo, Malfoy largou a bengala no chão e puxou o outro garoto para si, segurando-lhe o rosto e o beijando. A bruxa riu ao ver os olhos de Tom se arregalarem, mas logo o bruxo pareceu relaxar. Ela sempre achava interessante como Tom Riddle se entregava quase que por inteiro naquelas situações.

“Que tal comermos primeiro?” ela perguntou em voz alta, deixando a bolsa sobre a mesinha no canto da sala e puxando a varinha para acenar para o pequeno fogão que ficava no canto do cômodo.

Um barulho abafado de aprovação escapou de Abraxas e a fez rir. O fogo se acendeu e mais um aceno com a varinha fez as comidas do estoque se organizarem para começarem a preparar um jantar. A garota soltou um gritinho surpreso quando sentiu alguém a puxar e riu quando um beijo brincalhão alcançou o seu rosto.

“Eu preciso prestar atenção no que estou fazendo!” ela falou, ainda rindo enquanto se desvencilhava de Malfoy.

A garota observou Tom se perder nos beijos do outro por mais alguns segundos, antes de também se afastar, puxando a varinha e arrumando a mesa. O loiro apenas riu.

“Vocês não vão acreditar aonde eu fui esses dias,” disse Abraxas, sorrindo de lado, depois que todos estavam sentados à mesa, já apreciando o jantar (que  consistia em sopa de legumes).

“Como dinheiro que tem, você pode ir para qualquer lugar do mundo, Brax,” Tom respondeu, encolhendo os ombros. “Não nos faça tentar adivinhar qualquer lugar do mundo.”

“Acredite, Tommy, não foi nenhum lugar tão distante assim.” O jovem pigerreou, como se estivesse preparando alguma fala importante: “O Departamento de Mistérios.”

Hermione sentiu a colher escorregar por entre os seus dedos e soltar um barulho alto quando bateu contra o prato de metal fosco. Como se alguém tivesse aberto uma porta em sua mente, diversas memórias voltaram à tona: ela e Harry levando Umbridge para a Floresta Proibida, Luna com uma expressão sonhadora enquanto voava em um testrálio, a Armada correndo por um Ministério vazio no meio da noite e todos eles em busca de Sirius, que no final, não estava lá.

“D-Desculpe,” ela murmurou,” pegando a colher novamente e voltando a olhar Abraxas. “E o que tem de tão misterioso lá?”

Os rapazes não deixaram de lado a expressão curiosa enquanto a olhavam. As sobrancelhas de Riddle estavam franzidas, seus olhos levemente cerrados. Ela já o vira fazendo aquela cara antes e sabia que isso significava que o garoto havia notado algo que o fazia revirar os próprios pensamentos. Ela não gostava disso, não quando essa revisão podia levar à descobrirem sobre a sua viagem no tempo.

“Muitas coisas. Não me mostraram tudo, é claro, mas... Basicamente, tudo que o Ministério quer esconder, eles enfiam ali dentro: experiências malucas que podem curar ou destruir o mundo, magias que deram errado, armas de guerra, etc,” Malfoy continuou. “Meu pai me mostrou apenas algumas salas... Uma tinha uma fonte de poção do amor, conseguem acreditar nisso? Fiquei me perguntando a razão de terem isso no Ministério, mas achei melhor não pensar muito sobre isso.” Ele soltou uma risada nervosa. “Havia uma sala cheia de vira-tempos. Sinceramente, eu achei que eles fossem lendas. Claro, ouvimos e lemos sobre eles, mas nunca há relatos sobre bruxos que viajaram no tempo os utilizando, certo? Mas lá estavam eles, todos enfileirados em prateleiras, diversos modelos diferentes.”

Hermione sentiu, outra vez, um arrepio descer pelas suas costas e fez questão de reforçar as proteções ao redor de sua mente. Nos últimos meses, ela nunca sentira Tom Riddle tentar invadir os seus pensamentos com legilimência, mas ela preferia não arriscar, ainda mais quando via aquele olhar curioso no rosto do garoto.

“Existem modelos diferentes?” ela perguntou.

“Sim. Quero dizer, a maioria serve para viagens curtas, outros conseguem atravessar anos. A única coisa que o vira-tempo não faz é viajar para o futuro, pelo que me explicaram. Por serem tão... perigosos, o Ministério possui todos os vira-tempos existentes no Reino Unido,” o loiro falou, antes de sorrir de lado e se inclinar na direção deles para sussurrar: “Mas as histórias da família dizem que uma tia meio distante possui um. Aparentemente ela gosta de colecionar essas coisas estranhas.”

A garota fez o máximo de esforço possível para não deixar transparecer a mistura de emoções que surgiram dentro de si. Surpresa, alivio, medo... Finalmente, algum sentido para os Malfoy terem um vira-tempo pendurado na parede. Isso explicava muita coisa, mas também deixava Hermione se perguntando quando aquele vira-tempo fora parar lá: teria sido Abraxas, no futuro, que o levara para a mansão em Wiltshire?

“Por que ela tem um vira-tempo?”

“Porque nós, Malfoys, gostamos de coisas brilhantes, Tommy.” O loiro deu de ombros e riu. “Mas a sala mais esquisita do Departamento foi a última que visitei. Eles chamam de Sala da Morte.”

Foi a vez de Tom enrijecer na cadeira. A garota arqueou uma sobrancelha enquanto observava o rapaz parecer empalidecer por um momento. Ela sabia que Tom Riddle tinha medo da morte, mas ainda não se acostumara com o fato de que esse medo era tão exuberante.

“O que seria essa sala da morte, Abraxas?”

“Não é nada demais a princípio,” ele explicou, voltando-se para a garota. “Uma sala redonda, meio parecida com uma das salas da Suprema Corte, sabe? Mas no meio, onde normalmente ficaria o acusado, tem um arco... Como um batente de porta? Um arco de pedra com um véu negro.”

“E o que é isso?” perguntou Riddle.

“Ninguém realmente sabe dizer. Os Inomináveis não comentam muito sobre... Meu pai diz que acredita que a Sala da Morte foi criada antes do Ministério conseguir a ajuda dos dementadores em Azkaban e servia como a última solução para os criminosos,” o rapaz falou. “A Grã-Bretanha é o único lugar que usa o beijo do dementador como punição máxima, sabe? Eu sei que o MACUSA é adepto da sentença de morte, mas ainda não sei o que é pior: morrer ou ter a alma sugada por esses bichos.” O corpo de Abraxas tremeu inteiro por um segundo. “De qualquer forma, isso faz muito tempo. Acho que hoje em dia alguns bruxos ainda tentam estudar a morte com a ajuda do véu, apesar de que nenhum deles sabe exatamente como ele funciona.”

Houve um silêncio desconfortável entre eles enquanto Hermione olhava de um garoto para o outro e Tom girava o anel com uma pedra negra no dedo. Ela já havia notado o anel há muito tempo, mas agora, depois de viver com Riddle, o objeto era algo que ela via todos os dias.

“Que assunto deprimente para um jantar,” a bruxa falou.

“Seria mais deprimente se eu começasse a falar dos meus clientes de hoje,” disse Riddle.

“Não comece,” Abraxas completou, rindo e ficando de pé, depois de notar que todos haviam terminado. “Agora, deixem a louça ai, depois cuidamos disso.”

O loiro segurou os dois pelas mãos e os puxou para longe da mesa, ainda rindo. A cama, como sempre, rangeu sob o peso deles e lhes arrancou algumas risadas.

***

A voz de Garrick ainda lhe assombrava, principalmente quando ficava muito tempo em silêncio. Oito meses antes, a notícia que o homem lhe dera a teria feito chorar de alegria, mas agora ela apenas lhe causava dúvida e angústia.

É claro que Hermione queria voltar para o seu tempo. Ela sentia falta de Harry e Ron, além de se sentir inútil ali, sem poder ajudar na guerra e na caça às horcruxes. Mas ao mesmo tempo, bastava olhar para os garotos dormindo ao seu lado que toda a certeza que tinha, meses antes, simplesmente desaparecia. Tom e Abraxas haviam se tornado seus amigos e, apesar de não saber dizer se os amava, podia dizer que se preocupava com eles... Ela gostava de ver Riddle parecer relaxado e sorridente, diferente do rapaz sério e arrogante que ela conhecera no orfanato, e adorava ver Malfoy rindo e contando piadas, tão diferente do que seu filho e neto viriam a ser.

Eles eram pessoas interessantes e, se o destino tivesse sido mais gentil, talvez pudessem ter feito muitas coisas boas pelo mundo bruxo. Hermione sabia que parte de si ainda se perguntava se tudo aquilo não teria algum impacto no futuro e que tinha esperanças de que sim... Talvez, muito talvez, ela voltasse para um lugar onde Abraxas Malfoy havia compilado a maior coleção de obras literárias trouxas enquanto cuidava dos seus bichos exóticos enquanto Tom Riddle fazia alguma mudança boa no Ministério. Era um sonho distante que sempre voltava à sua mente quando os via dormindo, depois de sentir os beijos e as mãos deles por todos os lados, depois de ver Tom parecer tão vulnerável e Abraxas, tão realizado.

“O que está te perturbando?”

A garota se sobressaltou ao ouvir a voz sonolenta de Riddle. Quando abaixou o olhar, viu o bruxo a encarando com os olhos claros cheios de sono.

“Não estou perturbada.”

“E eu não tenho pavor de abandono.” Uma risada fraca saiu por entre os seus lábios.

Hermione suspirou, ajeitando-se melhor ao lado dele e erguendo a mão para acariciar-lhe os cabelos. Ela sorriu ao vê-lo fechar os olhos e soltar um barulho que parecia uma mistura de um suspiro com um ronrono de gato, inclinando mais a cabeça na direção do carinho.

“Você parece um gato,” ela murmurou.

“Não fuja da minha pergunta.”

“O futuro está me perturbando,” ela falou, vendo os olhos dele se abrirem outra vez.

“Abraxas diria que deveríamos esperar o futuro com muita bebida enquanto perdemos tempo fazendo amor,” o garoto falou, sua voz ainda saindo embargada e com um tom de risada ao fundo.

“É uma ótima alternativa.”

Riddle sorriu, seus olhos se fechando outra vez com o sono, mas logo se abriram novamente. Hermione sempre ouvira falar sobre os olhos escarlate de Voldemort e até agora se surpreendia com o tom azul claro dos olhos de Tom Riddle.

“Eu gosto muito de você, Hermione,” o bruxo sussurrou, levantando a mão para tocar-lhe o rosto com uma delicadeza que, antes, ela não imaginava que ele teria. Os dedos finos dele traçaram o relevo da sua maçã-do-rosto, descendo pelo nariz até alcançar os lábios. Tom, ela descobrira com certa satisfação, gostava de detalhes.

“Eu também gosto muito de você, Tom,” ela murmurou, beijando a ponta dos dedos dele e sorrindo.

“Eu me sinto bem com vocês,” o rapaz continuou, seus dedos descendo até o queixo dela. “É meio ridículo.”

“Não é ridículo.” Ela riu, inclinando-se para a frente e beijando-o nos lábios.

Ainda sonolento, Riddle respondeu ao beijo, sua mão deslizando até os cabelos da bruxa. Abraxas, ao lado deles, continuava dormindo, mas não demorou muito até ouvirem um resmungo vindo do loiro.

“Não posso deixar vocês dois sozinhos por um minuto,” a voz de Malfoy ecoou, embargada.

“Ninguém mandou ter o sono pesado,” disse Hermione, afastando-se do outro garoto.

Um sorriso torto e cheio de sono apareceu no rosto de Abraxas e, para o prazer da garota, se refletiu no de Tom. O sono, ela sabia, teria que esperar mais um pouco.

***

A noite de verão estava fresca, mas o céu de Londres não dava espaço para nenhuma estrela. Anton Dolohov não parecia se importar com isso, já que seus olhos raramente se desviavam até o céu. Na verdade, o homem parecia nem piscar enquanto observava a porta do necrotério de Hammersmith & Fulham.

Tom ainda não sabia a razão de ter pedido para o russo o acompanhar até ali. Desde que Abraxas lhe entregou todas as informações possíveis sobre o tal homem que fora atrás dele no orfanato, Riddle sabia exatamente o que precisava fazer, mas talvez, parte de si pensou, trazer Dolohov junto pudesse ser de alguma ajuda. Talvez aquela noite pudesse ser a prova de lealdade que ele precisava.

“Tom?” A voz carregada de sotaque do bruxo o tirou de seus pensamentos e Riddle notou que as luzes das janelas da frente haviam se apagado. Pela porta, um homem saiu, com a cabeça baixa e andando rapidamente. “Acho que podemos entrar.”

Eles haviam acompanhado enquanto cada um dos funcionários saíam do prédio, restando apenas um. Respirando fundo e arrumando a postura, o rapaz atravessou a rua, ouvindo os passos pesados do russo atrás de si, até alcançar a porta do prédio. Com um aceno rápido da varinha, a tranca soltou um estalido e eles entraram.

O lugar parecia uma delegacia e, apesar do escuro, não passava a impressão de ser um local onde guardavam gente morta. Acendendo a ponta da varinha com um Lumus, Tom os guiou pelos corredores, passando por portas fechadas e murais com recados ou fotos. No final de um corredor escuro, depois de descerem uma escada que levava para o que devia ser o subterrâneo, no entanto, ele conseguiu ver um feixe de luz iluminando o chão, escapando por debaixo de uma porta.

“O que exatamente quer que eu faça?” perguntou Anton, sussurrando.

O que ele iria fazer ali? O que Tom sabia sobre quem estavam prestes a encontrar era que se tratava de um legista que havia trabalhado nos corpos dos Riddle, quando estes foram encontrados mortos em Little Hangleton. Pelas pesquisas de Malfoy, o homem ficara intrigado com os cadáveres de três pessoas saudáveis que não demonstravam nenhum sinal de uma causa de morte e decidira investigar por conta própria... Ele não conseguira muita coisa, mas, de alguma forma, chegara até o Orfanato Wool’s.

“Apenas me acompanhe,” ele pediu. “Não podia trazer Abraxas nisso. Se eu precisar de algo mais... Bom, você irá saber.”

“Posso saber quem é esse homem?”

“Alguém que descobriu algo sobre mim que eu não gostaria que outros soubessem.”

“Oh.”

“Vamos remediar a situação.” Riddle sorriu, apagando a varinha.

Apesar de tentar ser silencioso, Tom podia jurar que os seus passos ecoavam mais do que o normal naquele corredor. Enquanto a distância entre ele e a porta se dissipava, o rapaz não pôde deixar de se lembrar daquela noite em Little Hangleton... Também estava fresco, mas o céu estava salpicado de estrelas. A casa de seu pai tinha um cheiro floral e amadeirado, enquanto aquele lugar cheirava a algo químico e estéril. O barulho que vinha da sala de visita de seus avós era o som de conversa e de páginas sendo viradas e ali, o som era de metal contra metal e de alguma coisa molhada que Tom não sabia classificar.

O bruxo abriu a porta sem cerimônias. Ele sentiu a magia de Dolohov se atiçar atrás de si e um arrepio atravessou o seu corpo quando finalmente viu o interior da sala: tudo era meio cinzento e uma das paredes era tomada pelo que parecia ser um enorme armário de metal com várias grandes gavetas. Havia duas mesas de metal e, sobre uma delas, um corpo cujo tórax e abdômen estavam abertos. Sobre uma bancada ao fundo, era possível ver alguns órgãos, mas Tom não se deteve nisso.

O que mais chamou a atenção do rapaz, além do cheiro de carne fresca, fora o homem parado do outro lado do cadáver. Ele era alto e tinha metade do rosto coberta por uma máscara, mas seus olhos, por detrás dos óculos de grau, não pareceram se abalar quando a porta se abriu. Só depois, ao ver que não se tratava de seus colegas de trabalho, que o médico franziu as sobrancelhas.

“Em que posso ajudar?” ele perguntou e sua voz carregava um sotaque muito parecido com o de Minerva McGonagall. Escocês.

“Ravenwood?” o garoto perguntou, aproximando-se lentamente.

Mais próximo, Riddle pôde ver como os olhos do homem se desviaram rapidamente para as suas mãos e, depois, para Dolohov. Ele parecia estar prestando atenção em alguma coisa neles que não era apenas as suas feições... Mas o que o surpreendeu foi quando o médico finalmente o olhou no rosto. Primeiro, porque havia uma pontada de reconhecimento em sua expressão, mesmo com parte desta escondida por detrás da máscara, e, depois, porque ele logo reconheceu aqueles olhos azuis.

“Você sabe quem eu sou, doutor?” Tom perguntou, parando a alguns passos do cadáver e tentando não olhá-lo.

O homem não respondeu de imediato. Ele ergueu a mão, tirando a máscara e fazendo Riddle sentir seu estômago revirar. Pelo que Abraxas descobrira, aquele médico devia ter quase a idade de seu pai, mas parecia muito mais novo... No entanto, os olhos azuis e os cabelos negros cacheados faziam toda a lembrança de Little Hangleton voltar ainda mais vívida em sua mente. O rosto sardento finalmente demonstrou alguma surpresa enquanto seus olhos voltavam para as mãos de Tom, para a varinha.

“Como você fez aquilo?” o homem perguntou, olhando-o outra vez.

“O que exatamente?”

“Como você matou os Riddle?”

Ali estava o que ele precisava ouvir. A confirmação de que aquele pobre coitado sabia que ele estava envolvido com o assassinato dos Riddle. Como ele sabia disso não vinha ao caso no momento... Tom só queria que ele parasse de saber.

“Você sabe o que é isso?” o bruxo perguntou, erguendo a varinha e vendo os olhos do outro acompanharem o movimento, antes de ele negar com a cabeça. “Você sabe o que eu sou?”

“Eu sei que você consegue matar sem deixar evidências físicas que os outros possam ver,” ele respondeu. “Mas eu... Eu vi alguma coisa e estou vendo agora também.”

Tom franziu o cenho e se concentrou em entrar na mente do homem, mas foi como se algum tipo de barreira o impedisse de se aproximar. Ele tentou uma, duas, três vezes, até ver o médico fechar os olhos e esfregar os dedos sobre a testa. Ele estava sentindo e o estava mantendo longe.

“Bruxo?” perguntou Dolohov, mas o olhar confuso do médico foi o suficiente para saber que aquele não era o caso.

“Não, apenas um trouxa metendo o nariz onde não foi chamado,” disse Riddle, apertando a varinha com mais força entre os dedos. Se não fosse pela luz clara do local, ele podia se afundar ainda mais nas memórias de Little Hangleton: seu pai também não permitira que ele entrasse em sua mente... Como? Ele nunca descobrira e nunca tivera coragem de perguntar em seus sonhos. “Não é mesmo, Dr. Ravenwood?”

“Você matou os Riddle,” o homem falou e Tom tinha que admitir que ele era corajoso. Apesar dos olhos arregalados, a voz continuava firme e ele não havia dado nem um passo para trás. Além disso, quase como em um esforço bobo, o médico continuava com um bisturi na mão. “Por que você veio aqui?”

“Você parece ser um homem inteligente, Dr. Ravenwood. Conseguiu juntar as peças e chegar até onde eu morava por conta própria,” o bruxo falou, sorrindo de lado enquanto via as sobrancelhas do outro se franzirem. “Você sabe a razão de eu estar aqui.”

Ravenwood olhou dele para Anton e, então, para o cadáver sobre a mesa. Ele sabia o que iria acontecer e, como se aquilo não importasse, largou o bisturi sobre a mesa de metal e se ocupou em fechar os retalhos de pele que estavam abertos no corpo. O morto ainda parecia morto e, mesmo com menos cavidades abertas, ainda era possível ver como a pele não fechava direito, não sem alguns pontos.

O homem o encarou outra vez. Ele tinha o olhar de alguém que sabia demais, apesar de parecer jovial. Os olhos claros e tão familiares brilhavam com algo que ele talvez pudesse comparar ao jeito que os olhos de Helena Ravenclaw brilhavam quando ela se animava com alguma conversa, apesar das sardas parecerem ainda mais evidentes por conta da palidez de seu rosto. Ele parecia, Tom notou e se repreendeu por isso, um pouco com Helena: o mesmo rosto forte, olhos claros, sardas e uma mistura de curiosidade e melancolia aqui e ali.

“Dolohov?” o rapaz chamou.

Ele podia simplesmente apagar a memória do tal Dr. Ravenwood, fazê-lo esquecer que ele fizera as autopsias dos corpos de seus avós e seu pai (parte de si odiava aquele homem ao notar que ele sabia mais sobre a sua família do que o próprio Tom) e que ele desconfiara de algo. Seria mais fácil e mais limpo, faria com que a sua mente não ficasse tão perturbada com as semelhanças com a noite de 1943 em Little Hangleton... Mas o médico havia conseguido escapar de sua Legilimência e pessoas assim eram conhecidas por terem mais controle sobre as próprias mentes. Ele não podia arriscar.

O russo parou ao seu lado, a varinha em mãos e os olhos presos no médico.

“É assim que eu fiz, doutor,” disse Tom, guardando a própria varinha.

Riddle não chegou a ouvir a voz de Dolohov enunciando a maldição. Ele viu os olhos de Ravenwood seguirem a varinha e então se arregalarem, logo antes do clarão verde encher o necrotério. Mais um pedacinho de morte em um lugar que a via todos os dias.

O primeiro som que notou após a maldição foi o estalo alto de quando a cabeça do médico bateu contra o chão. Ele era um homem alto e, sem qualquer reflexo para parar a queda, não seria de se surpreender que seja lá quem o examinasse depois (uma pequena parte de Tom achou aquilo engraçado, um legista tendo seu cadáver examinado por outro legista) encontrasse algum osso quebrado em seu crânio. Os óculos foram parar a alguns metros dele, com as pernas meio tortas e a lente riscada da queda. 

“É a primeira vez que vejo um Avada fazer isso,” disse Tom, apontando para o corpo. “Das outras vezes foi bem... Silencioso.”

“Acontece. Aposto que os outros corpos não caíram direto no chão, não é?” perguntou Dolohov, abaixando-se e colocando uma mão por debaixo da cabeça do médico. Os dedos dele voltaram vermelhos. “De certo os trouxas vão dizer que ele caiu e bateu a cabeça.”

Tom tentou se lembrar de Little Hangleton. Seu avô estava de pé quando foi atingido pela maldição da morte, mas ele caiu em cima da poltrona, antes de escorregar para o chão. Sua avó e seus pais estavam no chão, ajoelhados: Mary Riddle estava sacudindo o marido, tentando acordá-lo, e Tom Riddle, implorando para ser morto enquanto ainda tinha o corpo da mãe nos braços.

“Melhor assim.” Ele observou o bruxo voltar para o seu lado e lhe estender a mão para a aparatação.

Ele olhou para o corpo do médico uma última vez, tentando não pensar em como aquele homem, assim como o seu pai, aceitara a morte com tanta facilidade.


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Notas finais do capítulo

1) Quem lê "Três de Bastões" conhece o Dr. Ravenwood em mais detalhes, mas, como eu disse antes, a linha de Três de Bastões e de Kolybel'naya são diferentes, então o que acontece aqui não é exatamente o que acontece em TdB, até porque, como vocês viram, o Feliks e o Frank nem se conheceram aqui... é a velha brincadeira dos universos alternativos e como as escolhas mudam os destinos. Em TdB, a escolha do Ravenwood foi procurar Frank Bryce enquanto aqui, foi seguir sozinho e muita coisa muda nessas escolhas... De qualquer forma, se você se interessa por magia, investigação criminal e adultos em crise existencial, vão lá dar uma olhada em Três de Bastões :D prometo que o Feliks é um personagem muito querido e o Frank Bryce também.

2) Vou deixar aqui minha indicação para Inlustris, da Seren, porque eu li o capítulo novo dela ontem e me deu um gás legal pra escrever esse aqui ehehe é TomBrax e é AU e é incrível.

3) Et in arcadia ego: "até na Arcadia eu estou" é uma frase que fala sobre como a Morte está em todos os lugares... eu sempre relaciono ela à outras falas/conceitos como o Memento mori ou o Danse Macabre. Ele também é o título de uma das partes de Brideshead Revisited, que alude ao fato de que, apesar do paraíso onde os personagens vivem, as coisas ruins ainda estão por lá...

Muito obrigado todo mundo que deixou review no último capítulo, foi um alívio ver que o pessoal está gostando ♥ espero que tenham gostado e, por favor, vão dizendo o que estão achando (: