Nunca soube o quão frio eram as noites do lado de fora de casa. Ficar encolhido, forçando os músculos só piorava a situação, mas nem por isso deixei de caminhar, eu queria andar para o mais longe de casa e fugir da tentação de desistir. Ir mais longe e chegar mais rápido ao meu destino final, mesmo que eu tivesse saído de casa há poucas horas.

- Yuna, estou com frio. - Disse Ichigo se encostando em uma árvore.

- Saímos de casa há horas, quer voltar?

- Quer parar por favor? Não vamos chegar no Tibet amanhã ou semana que vem tá? Se continuar agindo a favor de seu orgulho estamos ferrados. Já saímos do bosque, devemos estar uns 15km de casa, já gastamos muita energia.

Tive que concordar, minha respiração era ofegante e minha barriga doía muito. Sentei no chão próximo as raízes de uma árvore rendendo-me a razão. Ichigo deitou-se ao meu lado e me abraçou.

- Desculpe ser tão impulsiva.

- Sinto que nessa viagem você aprenderá muito mais do que ter calma. Agora vamos dormir.

Mal peguei no sono e sonhos ruins vieram me atormentar. Andava por uma trilha antiga, de vegetações rasteiras e mortas, era uma faixa marrom no chão, indicando o caminho que deveria seguir. Aos poucos as longas árvores robustas deram espaço para uma pequenina casa no estilo oriental. A madeira, escurecida pelo tempo, parecia tão frágil que nem uma aranha tinha a ousadia de se instalar ali. Na varanda, havia uma cadeira de palha trançada com algum pano à costurar. Dentro era frio e escuro, com retalhos na parede, uma briga de espadas que foi silenciada com os milenios. Uma jovem chorava no canto do quarto abraçada aos joelhos. 

Chamei-a e descobri que era Wan, minha mãe.

- Saia daqui! Saia! Saia! - Ela gritava me expulsando porta a fora.

Atrás dela havia algumas crianças assustadas, um rapazinho com o olhar distante, um outro mais novo com o dedo na boca e uma menininha que me encarava furiosamente.

Eu. Aquela menininha era eu. Enquanto todos já tinham ignorado totalmente minha existência ela continuava a me olhar. O cabelo despenteado e sujo, as roupas remendadas. Nada conseguia me intimidar mais que seus olhos. Tentei me aproximar dela, esticando a mão, mostrando que não carregava nenhuma arma, mas ela permaneceu impassível.

- Por favor, Yuna, eu sei que não quer ser durona comigo. - Disse.

- Não me subestime. - Disse me dando as costas, pegando um galho seco do chão e partindo para cima de Wan. 

Ela gritava com a mãe e a machucava da forma que conseguisse. Batendo, puxando cabelo, amaldiçoando-a.

- Maldita! Maldita! Eu não pedi para vir ao mundo! Por que me trouxe para essa vida infeliz? É tudo culpa sua! 

Ichigo tentou afastá-la de Wan, mas acabou levando socos também. Ele poderia ser maior e mais velho que ela, mas nada se comparava aquela pequena diabinha. 

- Pare Yuna. Pare já. Você não pode fazer isso com eles. 

- Por que não? Eu faço isso com você. - Disse a garotinha, sorrindo para mim. 

Ela pegou novamente os galhos que tinha deixado cair no chão e o assoprou, fazendo-o pegar fogo rapidamente e atirou-o na casa. Contemplei a madeira ficando acinzentada e se despedaçando a minha frente. O fogo lambeu a casa em instantes e a fumaça além de impedir minha visão, me fez tossir como uma doente. 

A última coisa que vi antes de acordar foi Ichigo saindo do meio das chamas com Ho nos braços. 

- Yuna, Yuna, acorde! Está me machucando! - Disse Ichigo segurando meus punhos, encaixados em seu pescoço.