Kuroi Crystal escrita por Luciane


Capítulo 14
Capítulo 13 - Um pequeno passo




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-Demorei?

            Jean sorriu ao ouvir aquela voz próxima ao seu ouvido. Olhou para a colegial que se sentava a sua frente na mesa da lanchonete e respondeu:

            -Que nada. Eu é que cheguei cedo demais.

            -E a Nat, como está? – Tiemi indagou, preocupada.

            -Está bem. O pai cancelou os compromissos da semana pra ficar com ela.

            A ruiva alegrou-se com a notícia. Logo uma garçonete se aproximou e os dois fizeram seus pedidos.

-Então, em que série está? – Jean perguntou assim que a funcionária do local se afastou.

            -Terceiro ano.

            -Ah, legal! Já tem idéia do que fará na faculdade?

            Os olhos dela brilharam ao contar sobre seu sonho:

            -Já, sim. Quero ser Historiadora.

            -História é show! Taí um curso que eu faria... Se gostasse de estudar. u.u

            -Ah, gostar eu também não gosto, não. Mas é necessário, né?! ^^”

            -Isso é! Quem sabe ano que vem eu não me animo de começar uma facul também? Pelo menos minha velha se orgulharia de mim por alguma coisa.

            Tiemi riu.

            -Seria legal! Já pensou? Podíamos estudar juntos! ^^

            -É, a idéia não me parece ruim.

            A adolescente tomou fôlego para perguntar mais qualquer coisa relativa a faculdades, mas deteve-se ao notar uma mala no chão, ao lado da cadeira de Jean. Ficou curiosa com aquilo.

            -Er... Desculpe a indiscrição, mas... Você vai viajar?

            Tal pergunta fez com que o rapaz ficasse sério.

            -Não. Estou de mudança.

            -Mudança? – Ela se assombrou – Pra onde? Como babá, não seria muito mais viável continuar morando na casa da Nat?

            -Seria, se eu ainda trabalhasse lá. Pedi demissão.

            E o assombro de Tiemi aumentou:

            -Como é? Por que fez isso?

            Suspirando, Jean começou a explicar os seus motivos:

            -Eu não sou a pessoa ideal para essa função. Além do mais, Nat não é mais uma criança, não precisa de babá. A única coisa da qual ela precisa é de um pouco mais de atenção da família. E isso é uma coisa que eu nunca poderei dar, já que não sou nada dela.

            -Mas... Você parecia ser o único amigo que ela tinha.

            -E sou. Exatamente por isso é que vou tentar seguir minha vida aqui em Tóquio. É uma forma de eu continuar por perto. Sei que não posso abandoná-la dessa maneira.

            -Eu entendo. Tem pra onde ir?

            -Que nada. Vou caçar um hotel pra passar a noite e amanhã começarei a procurar outro emprego, quando conseguir descolo um aluguel de um apê ou de um muquifo qualquer, sei lá...

            Assim como ocorreu quando Kazuo lhe contou que sairia de casa, Tiemi não se controlou e sugeriu:

            -Não tem porque passar a noite num hotel, pode ir lá pra república. Maaya gostou de você, vai adorar recebê-lo como hóspede. Claro, isso se você não se importar de ter que dividir o quarto com outros garotos, e de ter que vez ou outra provar a comida horrível da May u.u”... Ou de ter que aturar o mau humor constante da Sayuki... ¬¬’ Sem contar que terá que me aturar também.

            Ele voltou a sorrir, admirado não apenas pelo empenho da ruiva em ajudá-lo, mas pelo jeito que ela tinha de falar. Era espontânea e verdadeira, bem diferente das garotas com quem ele estava acostumado a sair.

            -Então, o que me diz? – Ela indagou, aguardando por uma decisão da parte dele.

            Jean também foi espontâneo em sua resposta:

            -Já é, guria!

            Os dois trocaram sorrisos.

 

*****

            A semana passou-se rapidamente. Jean havia se mudado para a República, mas passava a maior parte do tempo na rua, procurando um novo emprego.

            Luna, em contrapartida, tivera sucesso em sua busca e conseguiu uma vaga em uma escola primária como auxiliar em uma turma para crianças brasileiras. Aproveitava os momentos de folga para se encontrar com Kairi. Apesar da antipatia que sua melhor amiga tinha com seu namorado, o namoro ia bem.

            Era fim de tarde de um sábado. Tiemi, Maaya e Harumi dividiam um dos sofás, assistindo a um filme na tevê, quando algo inusitado aconteceu: duas jovens entraram pela sala, sendo seguidas por Yuuhi que praticamente se arrastava carregando inúmeras malas.

            Tiemi levantou-se de súbito ao reconhecer uma das “invasoras”.

-Nami-chan? O.o

            -Ah, Tiê-chan! – Respondeu Manami, sorridente – Quanto tempo, fofa! ^-^ Saudade de você!

            -A gente se viu mais cedo no colégio O.o. O que significa isso tudo?

            -Ah, é que eu e minha amiga Miyu... – Manami começou a explicar. Mas a mencionada a interrompeu:

            -Hi, everybody! ^-^ - E acenou para as três.

            -...Viemos morar aqui também! ^-^ - Manami completou. E abriu os braços, como quem faz uma surpresa a alguém.

            E, de fato, Tiemi ficou surpresa.

            -Morar aqui? O.o

            -É, Tiê-chan! Não é o máximo? ^__^

            -Er... Sejam bem vindas! – Desejou Maaya, ainda olhando totalmente pasma para a cena. – Yuuhi, ajude-as levar as coisas pros quartos... O.o

            -Ah, eu ajudo também! – Anunciou Tiemi, levantando-se e indo até onde Yuuhi havia deixado as malas. Pegou uma maleta rosa com grades, mas, ao perceber que algo se movia lá dentro e constatar o que era, largou-a no chão e correu, subindo em cima de um dos sofás. – AAAAAAAAAAh!!!! ;__________;

            Todos na sala olharam preocupados para a ruiva. Menos Miyu, que correu apavorada até a sua maleta e a abriu, tirando de lá um pequeno poodle rosa.

            -Cachorrooooo!!! ;____; - Choramingou Tiemi, apavorada.

            -Mas o que deu nela? – Harumi finalmente se pronunciou.

            Yuuhi explicou, deixando uma gota escorrer:

            -Tiemi tem medo de cães! ¬¬’ Traumas de outra vid... Digo, de infância u.u

            -Mas é só um poodle. – Informou Harumi, pasma com o pavor demonstrado pela adolescente ruiva.

            -Mas é cachorro! – Choramingou Tiemi em resposta – Poodles são os piores! São invocados, bravos... Eles, eles... Eles latem! E... E mordem! E... São seres do mal, criaturas demoníacas! ;____;

            Afagando o pelo rosa do pequeno animal, Miyu se revoltou com aquilo:

            -Não fale assim da minha Mimi! Ò.ó

            -“Mimi”? – Repetiu Yuuhi. –Mas isso não é nome de gato?  O.o

            -No! Mimi é apenas o apelido! – Miyu explicou, orgulhosa – O nome dela é Michelle! ^___^

            -Isso não é nome de gente? O.o – Indagou o bad boy.

            -Mas Mimi é como se fosse gente! – Explicou Miyu. Olhou para a cadela e sorriu – Não é, minha fofa?? ^-^

            A poodle latiu em resposta, fazendo o pânico de Tiemi aumentar ainda mais.

            -Alguém tira esse monstro daqui! Animais são proibidos na república, não é, Maaya? Não é?! ;___;

            -Na verdade... – Começou a responder a dona da república – Não é nada contra a Fifi, mas...

            -Mimi! ^-^- Corrigiu Miyu.

            -Mimi! u.u” Mas é que, se eu abrir essa exceção pra você, todos podem se achar no direito de trazerem seus bichinhos de estimação para cá, e vai acabar virando bagunça.

            -But... – Começou a responder Miyu, com lágrimas nos olhos – My Michelle não é um “bichinho”. Ela é quase gente, e é a minha filhinha! E eu... Eu não posso abandonar ela! ;____;

            -Er... Mesmo assim, querida, entenda que... – Maaya tentou contornar a situação, mas foi interrompida por Miyu.

            -A senhora tem filhos? ;____;

            -Er... Tenho.

            -So, tell me, como se sentiria sendo obrigada a abandonar um deles? ;___;

            Maaya odiou aquele argumento. E odiou ainda mais o fato de ser se convencido com ele.

            -...Tá, “Michelle” fica! ¬¬’

            -NÃÃÃÃÃÃÃÃO!! ;_______; - Gritou Tiemi, ainda de pé sobre o sofá.

            -Thank’s, darling! ^____^ - Vibrou Miyu, não parecendo se importar com o desespero da nova colega de república – Ouviu isso, filhinha? Você vai continuar pertinho da mamãe!

Acariciando o pêlo da cadelinha, a nipo-americana começou a subir as escadas, acompanhada por Manami, ambas sendo seguidas por Yuuhi, que carregava, como podia, as inúmeras malas.

            Apenas quando elas terminaram de subir e sumiram de suas vistas, foi que Tiemi finalmente desceu do sofá e anunciou:

            Eu me recuso a ficar no mesmo quarto que aquele bicho!

            Maaya riu.

            -Não se preocupe, querida. A mocinha e sua “filha” ficarão no outro quarto, junto comigo, Harumi e Luna.

            -Se for assim, tudo bem! ;___; Mas pelo menos Nami-chan vai ficar no mesmo quarto que eu. Já tava ficando insuportável dividir o quarto apenas com a, como diria o Yuuhi, “monstrenga”! u.u”

            Dito isso, Tiemi saiu. Resolveu ir para a varanda, tomar um pouco de ar na tentativa de se recuperar do choque causado pela poodle cor-de-rosa. Maaya levantou-se e foi para a cozinha. Harumi continuou assistindo tevê, até que teve sua atenção desviada para a voz masculina que adentrava o cômodo, vinda do escritório:

            -Escuta, Maaya, eu tava dando uma olhada nas fichas e percebi que... – Hideki parou de falar ao notar que não era sua mãe que estava na sala – Ah, me desculpe. Achei que minha mãe estivesse aqui.

            -Ela estava, mas foi pra cozinha. – Explicou a brasileira, um pouco constrangida com a situação. Desde que havia chegado à república, os raros encontros com aquele rapaz não eram nem um pouco confortáveis para nenhum dos dois.

            -Obrigado. – Respondeu Hideki, também sem graça. Trocou um breve olhar com a garota e seguiu para a cozinha.

Após a saída dele, Harumi voltou seus olhos para a televisão, mas já não prestava a mínima atenção ao que se passava na tela. A simples presença daquele rapaz sempre provocada estranhas sensações em seu corpo e em sua mente. Além da beleza e simpatia, o beijo que dera nele não saía de sua mente. E sempre que o via, controlava a vontade que sentia de, mais uma vez, puxá-lo para junto de si e tornar a provar aqueles lábios.

            -Por Deus, o que é isso? – Ela murmurou.

            Respirou fundo e passou as mãos pelo rosto, tentando livrar-se daquelas sensações.

 

*****

            Após expulsarem Yuuhi do quarto, elas fecharam a porta para poderem conversar melhor. Miyu ajudava a amiga a desfazer suas inúmeras malas, enquanto reclamava:

            -Terei que dividir um quarto com três pessoas! God, a que ponto cheguei?

            -Não reclame, amiga, sabe que é por uma boa causa. – Lembrou Manami – É pela eliminação da raça das mocréias! *.*

            -Yeah! *.* But, eu não faço idéia de por onde começar com a sem-sal. Primeiro tenho que descobrir mais sobre ela... E sobre my honey Kairi também. Sobre ele não será assim tão difícil. Meu pai é um dos sócios da empresa e eu tenho livre acesso a todos os registros do departamento pessoal.

            -Então, enquanto você não vê isso, começaremos cuidando da monstrenga! *.* Eu já sei algumas coisas sobre ela. Sei que está fugida de casa e que morava com os tios... Na minha rua, aliás.

            -Hm... Acha que essas informações podem ser úteis em algo?

            -Não sei. Pensarei no que posso fazer com isso. Enfim, teremos tempo para planejarmos com mais calma, não precisamos ser afobadas.

            -Concordo! – Miyu sentou-se em uma das camas, pondo-se a acariciar o pêlo de sua poodle –  Ah, amiga, seu namorado é tão prestativo. Nos ajudou trazendo as malas, é um fofo!

            -Ele é! Perfeito! E não só no quesito cavalheirismo. Acredite, ele sabe ser bem mais... Selvagem! – A última palavra foi dita num sussurro.

            Miyu se empolgou com o assunto:

            -Really? *.*

            -Ah, amiga, Yuuhi é um verdadeiro furacão! Que homem! Dá de mil em todos os outros que já conheci.

            -Ele é tão bom assim, é?!

            -Você não faz idéia. Não é a toa que é tão cobiçado na escola: o beijo dele acaba com qualquer mulher!

            Miyu ficou em silêncio, pensando sobre aquelas palavras. Realmente, Yuuhi era do tipo de rapaz que despertaria os desejos de qualquer uma. Ele não fazia muito o seu tipo, era verdade. Era mais novo que ela, ainda estava no segundo colegial... Mas não era um tipo para se jogar fora. Aliás, muito pelo contrário.

            Olhando para uma das malas abertas sobre a cama, avistou um porta-retratos com uma fotografia de Manami abraçada a Yuuhi. Fixou seus olhos na imagem do rapaz.

            -Mas o que custa experimentar? – Pensou, voltando em seguida os olhos para a amiga, que guardava algumas roupas nas gavetas embaixo de uma das camas. – E por que não? Ela não precisa saber...

 

*****

            De um lado, Miyu, Manami, Yuuhi, Tiemi, Luna e Harumi. Do outro, Kairi, Saito, Karin, Jean, Kazuo e Hideki. Assim estavam eles, distribuídos ao redor da grande mesa na cozinha. Um tanto desanimados, voltaram seus olhos para aquela... “Coisa” coberta por algo que deveria ser um molho de tomates, descansando em uma travessa ao centro da mesa.

            Quase que simultaneamente, olharam em seguida para a cozinheira do prato em questão, que cantarolava de frente para a pia, preparando um suco de frutas.

            Tiemi abaixou o rosto próximo à mesa, sussurrando para Hideki, que estava do outro lado:

            -Mas que coisa é aquela que ela fez?

            -Acho que deveria ser uma lasanha. – Ele respondeu, também sussurrando.

            -Ah, gente, dá um desconto. – Pediu Luna, também sussurrando – Lasanha é uma coisa relativamente fácil de fazer. Uma camada de massa, uma de recheio, uma de molho... Até eu sei fazer isso.

            Tiemi olhou para a loira.

            -Luna-chan, a Maaya não consegue entender a simples lógica de preparar um macarrão instantâneo. O que te leva a acreditar que ela saiba fazer lasanha?

            A brasileira suspirou, tendo que concordar. O suspiro foi seguido por outro, dessa vez coletivo. Todos os que já conheciam de outra vida os “maravilhosos dotes culinários” de May, se amaldiçoavam por não terem tido coragem de negar a dona da república àquele pedido para que jantassem todos juntos, como uma família.

            Ainda cantarolando, Maaya aproximou-se com a jarra de suco, servindo todos os copos ao redor da mesa.

            -Resolvi fazer uma coisinha especial: comida italiana. ^-^ - A ruiva anunciou, alegremente – Tá, optei pela lasanha porque era o mais simples. u.u” Mas acho que vocês irão gostar. Segui à risca a receita que veio num dos livros da coleção que comprei, com receitas do mundo inteiro. Ah, tem um só de comida brasileira. Qualquer dia eu preparo, para Luna e Harumi matarem um pouco da saudade de sua terra. ^-^

            -Er... Não se incomode, May-chan. – Luna pediu, sem graça.

            -Imagina, Luna-chan. – Respondeu Maaya – Não será incômodo algum. Farei amanhã mesmo. E depois de amanhã, o que acham de comida chinesa? ^-^

            Kairi foi o primeiro a se pronunciar:

            -Er, eu não sou muito fã, não.

            -Mas sua mãe era chinesa, Kairi! O.o

            -Tem razão, Shihara-san! u.u

            Terminando de servir o suco, ela repartiu a lasanha em pedaços bem generosos, servindo um a um os pratos dos hóspedes. Ao terminar, também colocou um pouco para si, sentando-se na ponta da mesa.

            -Então, podem comer! ^^

            Os jovens ainda se entreolharam por um instante, antes de, hesitantemente, cortarem um pequeno pedaço da lasanha. Olharam ainda temerosos para aquela coisa nas pontas de seus garfos, antes de tomarem coragem para finalmente colocarem aquilo na boca.

            Maaya fora a única que não repetiu o gesto. Apenas olhava para os hóspedes, apreensiva.

            -E então? ^-^

            -Well... –Começou a dizer Miyu.

            -É... Diferente. – Comentou Manami.

            -Muito diferente. – Concordou Kairi.

            -Exótico. – Descreveu Hideki.

            -Um pouco... Dura. – Disse Harumi.

            -Um pouco... Adocicado.

            Luna balançou a cabeça, concordando com Yuuhi. Mas também fez uma nota:

            -Ao mesmo tempo, meio apimentado também...

            -Eu diria... Diferente. – Kazuo voltou ao comentário inicial – Realmente diferente.

            -TÁ HORRÍVEL!!! ;____; - Resumiu Tiemi.

            E, num outro movimento sincronizado, os jovens largaram o garfo sobre a mesa e pegaram os copos de suco, virando-os sobre a boca. Dois ou três goles depois, cuspiram o líquido sobre a mesa.

            -Por Deus! Ela fez o suco também! ;___; - Desesperou-se Jean, o primeiro a se levantar e correr em direção à pia, enchendo um copo com água da torneira e virando-o goela a baixo. Os demais também se levantaram e repetiram o gesto, num desespero generalizado.

            -Nunca comi algo tão horrível em toda a minha vida. –Manifestou-se Saito.

            Kazuo concordou.

            -Cara, já tinham me dito que era ruim... Mas eu não sabia que era tanto.

            -Eu avisei. – Comunicou Tiemi. Olhando ao redor, notou a ausência de uma das “vítimas” da comida de Maaya. Voltou seus olhos para a mesa, encontrando Karin sentada, comendo tranqüilamente a lasanha. – Sayuki? O.o Como tu consegue?

            -Já comi coisas piores na vida. – Foi a resposta.

            Tiemi balançou os ombros e já ia se preparar para encher novamente o copo com mais água, quando finalmente olhou para Maaya, no momento em que esta se levantava da cadeira, e saía em direção à sala.

            -Ei, May! Espera!!! - Ela ameaçou segui-la, mas foi impedida por uma mão que a segurou pelo ombro.

            -Deixa que eu me entendo com ela. – Pediu Hideki.

            Tiemi fez que sim e observou enquanto o rapaz saía, seguindo os passos da mãe. Ia finalmente pegar mais água, mas, antes disso, seus olhos caíram novamente sobre a garota que terminava de comer a fatia de lasanha em seu prato. Deixou uma gota escorrer, incrédula.

            -Mas como é que ela consegue comer isso? u.u” – Questionou, em voz baixa.

 

*****

            Ainda no corredor, Hideki parou observando a cena. Maaya havia se sentado em um dos sofás, de costas para onde ele estava, e cruzado os braços como quem estivesse muito brava. Devagar, ele se aproximou e sentou-se ao seu lado. Olhou-a melhor, só então percebendo que realmente parecia sentida com aquilo tudo.

            Respirando fundo, começando a falar:

            -Escuta, mãe...

            Mas foi prontamente interrompido:

            -Você só me chama de mãe quando tá querendo me paparicar, né?

            -É... Mais ou menos. ^-^”

            Ela suspirou e, tristemente, constatou:

            -Eu compreendo. Realmente não devo lembrar em nada uma mãe, não é?!

            Hideki riu, numa forma de tentar descontrair:

-Também não é para tanto! Tá, talvez você não seja das mais tradicionais, é verdade... Mas, veja pelo lado bom: Karin comeu toda a lasanha do prato. Sinal de que gostou de sua comida! ^-^

            -Não. É apenas sinal de que ela está habituada a se alimentar em péssimos lugares.

            -Bem, pelo menos é a prova de que há no mundo comida pior do que a sua. - Ao ganhar um olhar nada amigável, ele se retratou – Tá, tá... Foi brincadeira, viu?! ^^”

            Desfazendo a expressão zangada, Maaya ficou em silêncio por alguns instantes. Hideki tomou fôlego para dizer qualquer coisa, mas ela o cortou:

-Sua mãe dessa vida cozinhava bem.

            -Na verdade, eu não sei. Era tão novo quando ela morreu, não lembro de muita coisa sobre ela.

            -É, mas eu lembro bem. E como eu iria esquecer? Não há nada mais aterrorizante para uma garota que não leva o mínimo jeito com fogão, do que ter uma sogra cozinheira de mão cheia. Takashi e você devem ter herdado dela essa habilidade com cozinha.

            Hideki entreabriu um sorriso, saudoso.

            -É... Meu irm... Digo, meu pai cozinhava bem. Mas tente entender que cada um tem seus dons. Talvez cozinha não seja bem o seu. Então, em vez de ficar se crucificando por um “defeito”, tente ver suas qualidades: você é uma mulher de fibra. É corajosa, determinada, comunicativa, simpática... Sem contar que é a maior gata!

            Diante daquilo, Maaya não conseguiu evitar o riso. Contudo, esforçou-se para manter-se séria e retrucou:

            -Olha o respeito comigo, moleque!

            -Todo! ^^” Só estou tentando te mostrar que você tem inúmeras qualidades. Todos aqui te adoram.

            Ela o olhou tristemente.

            -E de que vale tudo isso, Hideki, se eu nunca consegui ser a mãe que você e sua irmã mereciam? Você mesmo já cansou de repetir que, por mais que tente, não consegue olhar para mim e me ver como sua mãe.

            -Sei que te magôo por te chamar quase sempre pelo nome, mas...

            -Não. – Ela o cortou – Sei que eu é que estou errada em exigir isso de você. Afinal, não sou nada sua nessa vida, além de uma cunhada.

            -Apenas uma cunhada? Maaya, você me acolheu em sua casa assim que meus pais dessa vida morreram. Você era recém-casada, tinha todos os direitos do mundo de não querer aceitar um moleque de três anos atrapalhando sua vida. Mas você me recebeu com o maior carinho. Tinha por mim o mesmo cuidado e preocupação que com sua filha. E, depois que morreu e retornou como Shihara Maaya, procurou incansavelmente por mim durante mais de dois anos. Mesmo sem saber que eu era Hinoky, você me tirou, já um adolescente, daquele orfanato, me adotou legalmente, me deu o seu sobrenome... Ainda acha que não seja nada minha nessa vida? Você é minha mãe, Maaya! Tão minha mãe nessa vida quanto era na outra. A melhor mãe que alguém poderia escolher. Akemi concordava comigo... E tenho certeza de que Karin também irá concordar quando souber a verdade.

            Ela sorriu de leve. Em seguida puxou Hideki para junto de si, abraçando-o com força.

            -Obrigada, filho.

            -Eu é que te agradeço, mãe.

            Ficaram abraçados em silêncio por algum tempo, até que Maaya, de repente, anunciou:

            -...Árabe!

            -Ãh? – Ele desfez o abraço que os unia e a olhou, confuso.

            -Comida árabe! – Ela explicou, sorrindo – Não deve ser tão difícil de fazer. Vou tentar amanhã!

            Ele afastou-se um pouco mais, encarando-a com um olhar de desespero.

            -Está brincando comigo, não está? Diga que está brincando!

            Rindo, ela tratou de acalmar o filho:

-Sim, é só brincadeira. Juro que nunca mais chegou perto daquele fogão.

            -Serei grato pelo resto da minha vida!

Os dois riram juntos. Maaya ia dizer mais alguma coisa, quando ambos tiveram suas atenções desviadas para a garota que vinha da cozinha. Karin passou direto pelo sofá, sem ao menos olhar para eles, e saiu pela porta.

            Hideki percebeu o olhar triste com o qual Maaya acompanhou os passos da adolescente, e a puxou novamente para junto de si. A ruiva apoiou a cabeça no ombro do filho, deixando-se ser abraçada por ele. Logo o rapaz sentiu o peito dela mover-se num soluço contido, e pediu, com a voz baixa e carinhosa:

            -Ei... Não chora, mãe.

            Ela não respondeu e Hideki respeitou aquilo. Sabia que sua mãe estava sensível, mas não apenas pelo seu último desastre na cozinha. Por mais que tentasse se manter forte, abalara-se muito por como havia reencontrado sua filha. Karin estava muito mudada, não lembrava absolutamente nada a garotinha que ambos haviam visto pela última vez quando tinha apenas cinco anos de idade. Era notório para ele que Maaya queria se aproximar da filha, mas não encontrava brechas ou caminhos para isso. Afinal, como se aproximar de uma pessoa arisca que faz toda questão de se manter completamente isolada, afastada de todos ao seu redor?

            -Por que será que dói tanto? – A voz dela o arrancou de seus pensamentos. – Sempre achei que quando a tivesse por perto novamente toda essa minha aflição diminuiria, mas... Mas dói demais, tê-la tão perto de mim... E não poder abraçá-la, chamá-la de “filha”.

            Hideki beijou-lhe a cabeça, e sugeriu:

-Pode fazer isso, basta contar a verdade. Você pode adiar, mas terá que contar algum dia. E é melhor que seja logo, antes que ela lhe escape novamente.

            -Eu vou contar... Assim que isso tudo acabar e Hiroshi deixar de ser uma ameaça para nós. Então, acho que finalmente poderei ser feliz. Com você e Karin ao meu lado.

            -Comigo, com Karin... E com Akemi. – Ele a corrigiu.

            -É. Contigo, com Karin... E com Akemi. – Repetiu ela, embora não concordasse com o que o rapaz estava querendo dizer com aquilo.

 

*****

            Colocando nos ouvidos os fones do player que carregava em mãos, Karin sentou-se no chão, apoiando a cabeça no tronco da grande cerejeira que havia na parte de trás do quintal da república. Fechou os olhos, numa tentativa de relaxar. Já estava quase pegando no sono quando uma voz feminina pareceu ressoar em seus ouvidos.

 

“Akemi...”.

“Eu... Quero... Ser... Você.”

 

            Subitamente, abriu os olhos. Ainda olhou ao redor, constatando que não havia ninguém por perto. Então, teve certeza: aquela voz vinha de sua mente. E não era a primeira vez que a ouvia.

            “Akemi”. Novamente aquele nome. Por que ele a perturbava tanto?

            “Eu quero ser você”? Mas ela não queria ser Akemi! Aliás, como iria querer ser uma pessoa que ao menos conhecia?

            Tentando deixar aquilo de lado, fechou os olhos novamente. Mas tornou a abri-los ao ouvir outra voz. Desta vez, não era de sua mente, mas sim do rapaz que chegava ao local:           

-Ah, fala sério! ¬¬’

            Encarou Yuuhi, que estava parado com os braços cruzados diante dela e, tranqüilamente, tirou os fones dos ouvidos. Sustentou o olhar de Yuuhi e indagou:

            -O que quer dessa vez?

            -Saber que tanto você me persegue. ¬¬’ – Ele retrucou, indignado.

            No entanto, a calma de Karin não se abalou:

            -Você é quem parece me perseguir.

            -Por que eu perseguiria uma monstrenga? ¬¬

            -Responda você, já que eu cheguei aqui primeiro.

            -¬¬’ Se eu soubesse que cê tava aqui, não viria para cá. Sou alérgico a mulher feia, tá sabendo não?

            Karin esboçou um sorriso debochado.

            -Mas até que tem boa imunidade a piranhas, né?

            -Tá querendo dizer o que com isso, monstrenga? Não vou tolerar que você ofenda a minha garota, tá ligada? Se tu é feia e mal amada, aceite-se ou tente mudar! Invejar outras garotas não irá reverter sua situação.

            -Ah... Desculpe por “invejar” tua namoradinha fácil e fútil.

            -Retire o que disse.

            -Idiota! - Foi tudo o que ela respondeu, antes de se levantar tranqüilamente, na intenção de entrar em casa. No caminho, esbarrou com Miyu e, como era de costume, seguiu direto sem dizer nada.

            Yuuhi ia gritar qualquer coisa para ela, mas desistiu quando avistou Miyu se aproximando.

            -A amiga gostosa da Nami-chan O.o. – Murmurou, observando enquanto a garota chegava mais perto.

            Parando diante dele, Miyu sorriu.

            -E aí, darling! Tá à toa?  ^-^

            -Bem... Na verdade, eu tô, sim! E você O.o?

            -Me too. ^-^

            -Hein?! O.o

            -Eu também! ^-^ Sabe que... –Ela se aproximou mais – Manami falou muito sobre você.

            Com o decote daquela blusa perigosamente perto de seus olhos, foi impossível para Yuuhi não admirar melhor o par de “atributos” da garota.

            -Lembra que tu tem namorada, cara! Cê não precisa babar por mulher nenhuma, porque tu tem a mais gata do colégio! Nami é tão gostosa quanto essa daí... Bem, tirando a parte do silicone. ;___;

            Com um esforço supremo, Yuuhi levantou os olhos, voltando a fitar o rosto de Miyu.

            -Ah, é? E o que a Nami-chan falou sobre mim?

            Mordendo de leve os lábios, ela lançou um olhar sedutor por todo o corpo do rapaz, tornando a encará-lo em seguida.

            -De seus inúmeros atributos e habilidades. Acho que ela não estava mentindo. ^^

            Yuuhi quase enlouqueceu com aquela mordida de lábios.

            -Mas o que é essa boca? O que são esses olhos? O que é esse rosto? ...E o que são esses seios?? ;_____;

            Sem se dar conta, os olhos dele já haviam descido mais uma vez para o decote. Ousou descer ainda mais, analisando aquelas pernas. Viu as mãos dela descerem pelo corpo e, num movimento extremamente sensual, levantarem de leve a barra da saia. Apenas alguns poucos centímetros, mas que foram suficientes para deixá-lo ainda mais atiçado do que antes.

            -Darling? – Disse ela, num sussurro incrivelmente sedutor.

            Yuuhi subiu novamente os olhos, tornando a encará-la. Ela sorriu maliciosamente.

            -I want you! Right here, right now!

            -Er... Eu não entendi uma única palavra do que disse. Mas acho que gostei disso! O.o

            E, sem perder mais um segundo, ele a puxou violentamente para junto de si, beijando-a com fúria. Ele a prensou contra o tronco da cerejeira, descendo os lábios pelo pescoço dela.

            -Darling, vai com calma aí! – Miyu pediu, com a voz sedutora.

            -Não dá pra ter calma com uma gata que nem você, “Mon amour”. – Yuuhi retrucou, empolgado.

            -Isso é francês! ^^”

            -Que se dane! Francês, inglês, é tudo a mesma coisa! u.u”

            Ela não ousou discordar.

            O que nenhum dos dois desconfiava é que, da janela de um dos quartos no segundo andar da casa, Manami os observava.

 

*****

            Todos ainda estavam acordados, mas Karin não se importava com isso. Queria dormir, para que aquele tedioso dia chegasse logo ao fim. Como sempre, gostava de ouvir música até pegar no sono, mas, ao deitar-se em sua cama, sentiu falta de seu MP4-player Apenas nesse momento deu-se conta de que o havia deixado no quintal.

            Levantou-se da cama e saiu do quarto. No corredor, esbarrou com Tiemi e Maaya e passou direto. Tiemi olhou para aquilo, furiosa.

            -Ela é extremamente mal educada! – Revoltou-se – Mas que mania de esbarrar em todo mundo e passar reto sem nem se desculpar! ¬¬

            Suspirando, Maaya aconselhou:

-Veja se ela não te roubou nada.

            Apavorada, Tiemi percorreu as mãos sobre o corpo, vendo se não faltava nada. Até mesmo confirmou se o colar com seu cristal ainda estava com ela. Apesar de saber que apenas Akemi conseguiria tira-lo, pensou que podia se esperar qualquer coisa de uma ladra esperta e ágil como Sayuki Karin.

            -Não, tá tudo aqui. u.u

            Maaya riu e as duas seguiram caminhando, entrando no mesmo quarto de onde Sayuki havia acabado de sair.

 

*****

            Eles se viram obrigados a parar ao perceberem – pelos passos que ouviram – que não eram mais os únicos do local. Temendo que fosse Maaya, Yuuhi virou-se bruscamente. Surpreendeu-se ao ver que se tratava de Karin.

            Percebendo que o “clima” havia acabado, Miyu deu mais um leve beijo nos lábios de Yuuhi e saiu, ajeitando as roupas pelo caminho. Ao passar por Sayuki apenas sorriu, cordial, como se nada tivesse ocorrido.

            A bad girl, no entanto, ao menos percebeu o sorriso que a outra lhe lançara. Manteve-se imóvel desde o momento em que seus olhos captaram aquela cena, encarando Yuuhi com uma expressão neutra, a qual ninguém saberia decifrar o que estaria se passando pela mente dela.

            Kawamoto também estava estático, sustentando o olhar da recém-chegada. Após alguns segundos, finalmente houve alguma reação: Karin virou-se para sair do local e Yuuhi correu até ela, segurando-a pelo braço de forma com que ela foi obrigada a parar e voltar a olhá-lo.

            Mais uma vez, os olhos dos dois se encontravam. Parecendo aflito, Yuuhi começou a falar:

            -Escuta, deixa eu te explicar. Eu só...

            -Explicar o quê? – Ela o cortou, com a voz calma.

            Enfim, Yuuhi pareceu se dar conta da situação. Era apenas Sayuki a flagrá-lo com uma mulher. Sendo assim, por que estava tão preocupado em dar-lhe explicações?

            -É mesmo. O.o – Ele disse, enfim soltando o braço dela – Não tenho nada pra te explicar! ¬¬’ Só espero que você não vá contar isso pra Manami.

            -Por que eu contaria? Não é da minha conta. Não tenho nada a ver com tua vida, faça o que quiser.

            Ele não respondeu e ambos permaneceram parados, um diante do outro. Por qualquer motivo, Yuuhi manteve o olhar fixo nos olhos da garota à sua frente, que, como de costume, não transmitiam qualquer emoção. De alguma forma, isso prendia a atenção dele, como se sua mente se distraísse num jogo silencioso de tentar decifrar o que se escondia por trás daquele olhar.

            Ao mesmo tempo, teve uma súbita sensação de “dejà vu”. Veio-lhe à mente uma lembrança de sua vida passada, de seu primeiro beijo com Akemi. Havia sido uma situação um pouco parecida com aquela. Mesmo os dois até então não tendo absolutamente nada um com o outro, ele sentiu-se mal por ela ter-lhe flagrado com outra garota.

 E o mesmo acontecia nesse momento com Karin. Não sentia nada por ela. Nada além de ódio ou desprezo. Sendo assim, porque se sentia tão culpado pela situação que ela presenciou?

            Alguns segundos se passaram e ele continuava a olhar fixamente nos olhos da garota. Ela apenas sustentava o olhar em silêncio, até que percebeu que ele a encarava de uma maneira diferente do habitual. Estranhou aquilo.

            -Quié? – Indagou, por fim – Tá me olhando desse jeito por quê?

            Sem desviar os olhos dos dela, ele enfim disse algo:

            -Sabe o que eu quero fazer, Sayuki?

            -Hã?

            -Isso.

            Num súbito movimento, ele contornou o braço pela cintura de Karin, puxando o corpo dela para junto do seu. Em seguida colou seus lábios aos dela e a beijou.

            Num primeiro momento houve certa resistência. Porém, depois de algum tempo Yuuhi teve a nítida sensação de senti-la retribuir o beijo. Mas ele não pôde ter certeza disso, pois no instante seguinte ela o empurrou com força, afastando-o dela.

            -Mas o que pensa que está fazendo? – Sayuki esbravejou entre os dentes, enquanto passava uma das mãos trêmulas sobre os lábios.

            Ele sorriu com malícia.

            -Qual é? Vai dizer que não gostou?

            Ela o encarou com ódio, enquanto respirava pesadamente. Yuuhi prosseguiu, num tom de voz sacana:

            -Devia me agradecer. Eu te livrei do karma de ter que morrer BV!

            -Quê?

            -Bem, não preciso ser gênio pra saber que uma garota como você nunca deve ter tido um homem na vida. Devia se sentir feliz em ter recebido o primeiro, e quem sabe último beijo da tua vida, de Kawamoto Yuuhi. Né pra qualquer uma não! Acho que você deveria me agrade...

            Ele foi impedido de continuar devido ao soco em seu rosto que o levou ao chão. Olhou para Karin, já se preparando para xingá-la, mas conteve-se, surpreso, ao vê-la encará-lo com os olhos marejados.

            Seriam mesmo lágrimas? Nos olhos da Sayuki? Yuuhi jamais imaginara que algum dia veria algo assim.

            -Idiota. – Foi a única coisa que ela conseguiu dizer, antes de sair correndo.

            Yuuhi a observou enquanto ela se afastava.

            -Será que peguei pesado demais? – Perguntou-se, arrependido das próprias atitudes.

            E continuava sem perceber que, de uma janela do andar de cima, Manami ainda o observava, nem um pouco satisfeita com tudo o que vira.

 

*****

Maaya e Tiemi conversavam animadamente no quarto, sobre qualquer assunto trivial, quando Karin entrou, mostrando-se completamente transtornada. Ignorando os olhares curiosos em sua direção, ela deitou-se em sua cama e virou o corpo de lado, com o rosto voltado para a parede.

Intrigada com aquilo, Tiemi perguntou:

            -O que aconteceu?

            A resposta que recebeu não foi nada educada:

            -Não enche.

            Diante disso, a pequena ruiva se revoltou:

            -É impossível conviver com você, sabia?! – Irritada, saiu do quarto.

Vendo-se sozinha com a filha, Maaya sentou-se na ponta da cama e, em silêncio, pôs-se a observar a garota. Não conseguia ver bem o seu rosto, já que ela o havia coberto com a mão, mas percebeu que sua respiração parecia pesada. Não restava dúvidas de que algo havia ocorrido para deixá-la transtornada, e Maaya sentia uma vontade quase incontrolável de perguntar o que era, mas conteve-se, já sabendo que seria inútil. Entretanto, não conseguiu controlar o impulso de levar uma das mãos à cabeça da filha. Mas mal a tocou e ouviu:

            -Sai de perto de mim!

            Após dizer isso, Karin sentiu que Maaya se levantava da cama, e pôde ouvir os passos dela se afastando. Percebendo-se sozinha, fechou os olhos, não conseguindo evitar que algumas lembranças viessem à tona.

 

            Tinha pouco mais de treze anos de idade e descia, correndo, as escadas de sua casa. Estava sendo perseguida. Tentou abrir a porta da sala, mas constatou que estava trancada. Virou-se, olhando totalmente aterrorizada para o homem que descia as escadas, vindo em sua direção.

            Ela gritou, pedindo por ajuda. Mas ninguém apareceu para salvá-la.       

 

            -Shihara? – Ela chamou, com a voz baixa, ao mesmo tempo em que se sentava na cama.

Olhou para a porta fechada do quarto e isso, por qualquer razão, a fez sentir o aperto em seu peito aumentar. Há muito tempo que preferia a solidão. No entanto, nesse momento, estar sozinha provocou-lhe uma leve sensação de medo.

Contudo, uma voz a mostrou que havia mais alguém com ela naquele cômodo:

            -Estou aqui.

            Karin olhou para a direção em que a voz vinha. Só então viu que Maaya não havia saído do quarto: estava sentada na cama ao lado da sua.

            A ruiva sorriu. Um sorriso carregado de carinho e compreensão, ainda que não soubesse dos motivos que abatiam a colegial. E, com a voz doce, sugeriu:

            -Por que não chora, minha querida? Seja lá o que estiver sentindo, coloque para fora. Vai te fazer bem.

            Karin tornou a deitar-se, novamente com o rosto virado em direção à parede.

            -Lágrimas são para fracos. – Explicou.

            -Não, querida. – Maaya respondeu – Você não faz idéia do quanto vai te fazer bem colocar para a fora essa tristeza que está te corroendo.

            -Há anos que não choro. E, mesmo que tivesse que fazer isso, não seria na frente de outra pessoa.

            -Se for por isso... – Maaya levantou-se da cama – Vou te deixar sozinha. Caso precise de mim, estarei bem no quarto ao lado, tudo bem?!

            Shihara caminhou até a porta e já ia abri-la, quando ouviu a voz baixa da adolescente:

            -Shihara?

            -Sim?

            Após alguns segundos de silêncio, finalmente Karin pediu:

            -Você pode... Pode ficar... Se quiser.

            Diante da permissão, Maaya voltou até a cama onde Karin estava e tornou a sentar-se ao seu lado, permitindo-se passar levemente as mãos pelos cabelos da filha. Em poucos segundos, começou a ouvir alguns leves soluços e um choro baixo, abafado. Suspirou tristemente, ainda afagando os cabelos da garota.

            -Quando você quiser contar o que aconteceu, estou aqui, viu?!

            Karin não disse nada e Maaya compreendeu aquele silêncio. Era pedir demais que a garota confiasse tanto assim em alguém. Entretanto, apenas por Karin permitir sua presença ao seu lado naquele momento já era um grande passo. Fazia-a sentir que a distância entre as duas parecia estar finalmente começando a se reduzir.


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