Décimo Sétimo Andar escrita por Lyn


Capítulo 2
Capítulo 2




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O melhor da insônia era poder assistir através da mais estreita janela do apartamento, o nascer multicolorido do excepcional sol do Rio de Janeiro. Por manter-se alerta durante noventa por cento da noite, Carlos apreciava imensamente a chegada da alvorada. Era durante o dia que o barulhento décimo sétimo andar tornava-se ruidoso, proporcionando à seus moradores um pouco de paz. Mesmo o encanamento transformando seus gritos chorosos e graves em rangidos borbulhantes menos escandalosos, o vento, por sua vez, continuava a assobiar através de todas as janelas e Carlos, de sono tão leve, não conseguia mais que alguns cochilos durante a manhã, antes de rumar para o pequeno jornal onde trabalhava.

 

Com um cigarro entre os dedos, o rapaz vigiava o horizonte, em expectativa. Mais que um belo espetáculo, ele presenciava a concretização da paz que se instalaria no prédio assim que o sol despontasse completamente, enchendo de calor e luz o pequeno apartamento do escritor. Ele refletia sobre o início daquela noite, que se dera de forma tão estranha. Os sons amedrontadores que pareceram tencionar encurralá-lo ainda soavam em seus ouvidos como em uma lembrança vivida e convincente. Por sobre o ombro, ele mirou as garrafas vazias de cerveja sobre sua mesa de trabalho. O vidro escuro de cada uma equivalia a uma prova de que todo o ocorrido TINHA de ser real. Ao menos uma coisa era certa: ele não podia ter sonhado. Desde que se mudara para aquele apartamento no edifício Horizonte que o escritor não conseguia permanecer adormecido tempo suficiente para sonhar.

 

O estranho evento perturbador já havia ocorrido em outras duas ocasiões, mas o estranho ataque não fora tão agressivo quanto o mais recente. E durante ambas as primeiras vezes que o corredor se transfomara em algo ofensivo, Carlos já havia tomado suas cervejas. Cogitara que sua mente já se dava embriagada o suficiente para fantasiar algo do tipo, afinal os barulhos do prédio e de seu encanamento não lhe saiam da cabeça. Até mesmo no escritório do jornal onde trabalhava, o jovem escritor passara a imaginar os mesmos barulhos que lhe assolavam em seu apartamento. Porém, naquela noite em que vira Lia entrando no elevador, Carlos tinha certeza de ainda não ter bebido. O ataque não era uma alucinação. O rapaz tinha certeza quanto a isso e apenas a lembrança do ocorrido lhe causava calafrios.

 

Com uma última tragada, Carlos amassou o cigarro no cinzeiro velho sobre o peitoril da pequena janela, dirigindo-se em seguida para sua cama desarrumada. O relógio digital sobre o lençol puído marcava quatro e meia da manhã. Ele foi atirado ao chão quando o rapaz jogou-se na cama, apoiando a nuca sobre o travesseiro fofo. Exalando lentamente fumaça por entre os lábios, o rapaz permaneceu deitado sobre os lençóis, tentando ignorar os barulhos do encanamento, que apesar de menos sonoros continuavam presentes.

 

.x.

 

 

Era como ter fechado os olhos e os reaberto no instante seguinte. Bêbado de sono, Carlos tateou o chão ao lado de sua cama, até encontrar o relógio. Cinco da manhã. Tinha dormido por malditos trinta minutos e acordara assustado com um forte rangido que parecia vir da parede bem a seu lado. Maldito encanamento. Malditas velharias.

 

Com aquela estranha sensação de ter o coração na garganta, Carlos ergueu-se da cama desviando-se do lençol que se enrolara em suas pernas. O apartamento já estava banhado em luz, o que fez os olhos do rapaz arderem. Encaminhou-se para o banheiro, vestindo uma camisa velha. Precisava estar apresentável, não porque fosse trabalhar. Era sábado, finalmente sábado. Mas sua cabeça estava tão cheia por coisas intrigantes e curiosas, que o escritor resolvera-se por usar aquele dia de folga para a execução de uma investigação informativa para uso pessoal. Quem sabe se descobrisse algo que realmente valesse a pena, a história daquele prédio não virasse uma boa história. Depois de tanto tempo sendo torturado por aqueles barulhos, era o mínimo que a construção lhe devia.

 

Apesar do horário, Carlos sabia que a pessoa com quem precisava falar deveria estar acordada. Por esse motivo, não hesitou ao bater à porta frente a seu apartamento. Quando a porta branca se abriu, um forte cheiro de gatos inundou as narinas do jovem que imediatamente se viu nauseado. Tudo lá dentro estava escuro, cortinas fechadas jogando trevas sobre todas as coisas cor-de-rosa.

 

- Bom dia senhora Fillipa. – Carlos entoou, sorrindo desajeitado.

 

A velhinha colocou seus grandes óculos sobre o nariz, segurando a porta na defensiva. O rapaz sabia que ela tinha grande medo de assaltantes e que não era correto se divertir com esse fato, porém, ainda assim, apenas com muito esforço conseguiu manter seu semblante sério.

 

- Ah. Ah, é você, meu rapaz. Por um momento pensei... – ela levou os dedos extremamente enrugados aos lábios, refletindo. – Bobagem. – sorriu com seus dentes amarelados. – Como você está? – indagou segurando-lhe o braço. Carlos odiava a mania que algumas pessoas tinham de conversar mantendo contato corporal e invadindo o espaço pessoal alheio.

 

- Bem, senhora Fellipa. – ele forçou um sorriso, dando um discreto passo para trás.

 

- Ah, ah, ah! – ela pigarreou descrente, enquanto fazia sinais negativos com as mãos. – Não minta para mim, mocinho. Ainda não consegue dormir, certo?

 

Mas que Diabos! Por que todos naquele prédio o tratavam como uma criança? Desde quando seu sono virara propriedade nacional? – a falta de sono começava a afetar seu humor e o rapaz se viu surpreso por irritar-se com aquele comentário de sua vizinha. Resolveu mudar de assunto.

 

- Na verdade eu gostaria de perguntar se a senhora não ouviu ou percebeu alguma movimentação estranha em nosso corredor em alguma das noites passadas.

 

- Ladrões? – ela arregalou os feios olhos azuis, levando a mão ao peito.

 

- Não, não, senhora Fillipa.- Carlos apressou-se a acalmá-la. – Barulhos mais parecidos com... Com... o dos canos. Uma coisa meio sinistra. Sobrenatural? – ele murmurou em uma tentativa incerta.

 

A senhora o encarou estranhamente. Era possível que estivesse se questionando sobre a sanidade mental de seu vizinho e especulando se seria seguro morar tão próxima a alguém com esse tipo de problema. Fillipa abriu a boca para responder, mas pareceu avistar alguma coisa atrás do jovem que lhe prendeu a atenção.

 

- Ah, espere um minuto, querido. Mocinha!- ela chamou por sobre o ombro do rapaz. – Você continua deixando a porta que dá para a garagem aberta, sabia?

 

Carlos olhou por sobre o ombro a tempo de ver Lia, recém saída do elevador, tentando furtivamente escapar para dentro de seu próprio apartamento. Contudo, o molho de chaves em suas mãos não parecia formar uma boa dupla com o grande vaso de flores amarelas que ela tentava equilibrar ao mesmo tempo em que tentava destravar a fechadura. Com o sorriso mais surpreso que conseguiu encenar, a moça voltou-se para os dois parados em meio ao corredor, exibindo todos os seus piercings à luz dos primeiros raios de sol que entravam pelas janelas.

 

- Bom dia, Sra. Fillipa. Carlos. – ela acenou com a cabeça e o canto de seus lábios tremeu levemente. – Uops! – sobressaltou-se, enquanto tentava impedir a queda do vaso de flores. Foi feliz na tentativa, mas o molho de chaves escapou por entre seus dedos finos. – Merda.

 

Em um movimento rápido, Carlos pegou as chaves, com uma idéia inesperada surgindo num repente. Empolgado com a nova perspectiva, destravou a porta para Lia que agradeceu com uma piscadela.

 

- Obrigada, superman. Bom, Sra. Fillipa, prometo fechar a porta dos fundos do prédio com mais freqüência, certo?- Carlos ficou surpreso com a habilidade que Lia adquirira repentinamente, conseguindo cruzar firmemente os dedos por trás do vaso de flores, para que a idosa vizinha não visse.

 

- Sempre ao sair e ao chegar do trabalho, sim? Ou serei obrigada a falar com o sindico. É perigoso deixar aquela porta escancarada durante as madrugadas. - a Sra. de cabelos curtos e brancos proferiu em meio à rouquidão própria das pessoas mais velhas. Ela deu as costas, mas no último minuto pareceu mudar de idéia, voltando-se. – E você, meu querido, pare com todos esses cigarros. E a bebida. – ergueu um dedo em riste para depois se retirar, sumindo nas profundezas cavernosas de seu apartamento mal cheiroso.

 

Quando a porta branca se fechou com um clique sob os olhos pasmos dos dois jovens, ambos se encararam, as sobrancelhas erguidas e os lábios curvados em divertimento.

 

Carlos tinha certeza de que Lia não poderia ter ouvido ou visto nada de anormal naquele prédio, pois em todas as vezes que os eventos estranhos ocorreram, a noite já ia alta e a jovem, que trabalhava no período noturno, por certo não havia estado em casa. De qualquer forma, por algum motivo estranhamente plausível, Carlos sabia que poderia contar-lhe o que havia acontecido e desejava fazê-lo. Sempre existia a possibilidade que ela o achasse um louco e, na melhor das hipóteses, saísse correndo sem olhar para traz, mas era Lia. A garota mais estranha que ele já vira. E pelo que Carlos já conhecia da restauradora, a chance de que ela fosse bizarra o bastante para ouvi-lo até o fim da história era grande. E no mais, o escritor não tinha mais nenhum conhecido que ainda morasse naquela cidade ensolarada. Ainda incerto, ele proferiu em um tom baixo e casual:

 

- Acho que você a irritou.- a jovem ergueu uma sobrancelha abraçada ao vaso de flores amarelas. O rapaz apressou-se a emendar. – Um pouco.

 

- Não sei por que o fato de a maldita porta dos fundos ficar aberta a irrita tanto. – Lia suspirou entrando em seu apartamento para deixar as flores sob algum móvel poeirento. – Eu quero dizer, é só uma maldita porta.- Carlos, do corredor, continuou a ouvir a voz forte e feminina, apesar de um pouco abafada pelo rangido dos canos. Lia definitivamente não era discreta e o rapaz olhou constrangido por cima do ombro, verificando se a Sra. Fillipa não estava bem ali, ouvindo tudo.- Não é como se eu estivesse torturando os gatinhos de estimação dela. – a jovem reapareceu pela porta, encenando asfixiar ferozmente algo invisível entre suas mãos. – Sabe? – recostou-se no batente, parecendo repentinamente serena ao pegar suas chaves das mãos de seu vizinho.

 

- Sinceramente? – o rapaz tinha uma expressão atrapalhada e cautelosa estampada em seu rosto.

 

-Okay, esqueça. – ela rolou os olhos, divertida, fazendo menção de fechar a porta.

 

- Espere.- ele espalmou a mão sobre o tampo branco. – Será que nós poderíamos conversar mais tarde?

 

- Não. Trabalhei todas as noites dessa semana, hoje é sábado e pretendo dormir o dia todo. – ela novamente tentou fechar a porta, mas foi impedida.

 

- Prometo ser rápido. É importante, sério. De uma forma... Estranha, mas importante. – Carlos pareceu incerto de suas próprias palavras. Até que ponto assombrações, fantasmas e maldições eram um assunto sério? Sério para quem?

 

- Estranha como? – Lia questionou cruzando os braços, pela primeira vez demonstrando algum interesse. Seus olhos caramelados brilharam, intrigados.

 

- Estranha... – o rapaz repetiu tentando buscar uma explicação convincente em sua mente cansada. – Okay, sobrenaturalmente estranha.- ele pestanejou, abrindo o jogo. Talvez a sinceridade fosse a melhor saída em um caso como aquele.

 

- Me acorde às cinco.

 

O sorriso entusiasmado de Lia desapareceu quando a porta foi fechada, deixando Carlos atordoado, encarando debilmente a superfície lisa e branca a sua frente.

 


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