Décimo Sétimo Andar escrita por Lyn


Capítulo 1
Capítulo 1




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O prédio era antigo e o encanamento velho incomodava os moradores com barulhos agourentos, lamuriantes como gemidos humanos que ecoavam provindos de dentro das paredes. A maioria das pessoas acabara por se acostumar àquilo, como é típico do ser humano adaptar-se a divergentes situações, e não mais se incomodavam, sequer notavam os rangidos e lamentos da encanação estrutural arquitetada nos anos quarenta. Contudo, no décimo sétimo andar as coisas eram bem diferentes. Ali se concentravam os maiores problemas no quesito de barulho. Sendo que no último andar, além dos barulhos vindos das paredes, o vento uivava constantemente adentrando pelas janelas sempre abertas e juntando-se a cacofonia de gemidos dos canos velhos, formavam uma orquestra infernal. Deixar que as janelas permanecessem fechadas era, no mínimo, absurdo, pois o calor do Rio de Janeiro tornara-se algo insuportável nos últimos anos, principalmente naquela época do verão. Por esse motivo os habitantes do fadado décimo sétimo andar escolheram o barulho constante ao em vez do calor sufocante. Não que tivessem escolha quanto ao encanamento barulhento.

 

Carlos, especialmente, tinha dificuldades para dormir desde que se mudara para seu apartamento simplório e arcaico no último andar do edifício Horizonte. A insônia era sua companheira fiel nos últimos meses, junto aos barulhos altos e úmidos vindos das profundezas daquelas paredes insuficientemente grossas para devolverem-lhe a paz e o silêncio. Olheiras profundas já se instalaram na forma bolsas arroxeadas sob os olhos cansados do rapaz de vinte e cinco anos, envelhecendo maldosamente sua aparência gaiata. As técnicas de enfiar a cabeça sob o travesseiro e usar tampões de ouvido já haviam sido testadas e falhado miseravelmente logo nas primeiras semanas de estadia naquele velho prédio e a cada noite insone, o jovem sentia-se mais exausto. Carlos não tivera escolha, forçara-se a adquirir hábitos noturnos para livrar-se do conjunto de sons desarmoniosos que invadiam seu singelo apartamento de solteiro.

 

Naquela noite mormacenta, após o passeio habitual em meio à madrugada, ele jogou seu cigarro na lata de lixo de metal prateado e adentrou pelas portas do elegante elevador original da construção. Utilizá-lo era uma verdadeira viajem no tempo. A decoração interior era surpreendente com um carpete vermelho sangue, um pequeno lustre folheado a ouro e uma placa com o ano 1941 em relevo dourado, fixada na parede dos fundos, como que lembrando aos recém chegados que muitos humanos já mortos utilizaram o mesmo aparelho de locomoção que eles estavam prestes a utilizar no presente. Carlos admirava peças arcaicas, mas sempre as achara mórbidas e perigosas. Apelidara aquele elevador de [i]câmara de tortura[/i], pois ele era sufocantemente apertado e sacolejava ameaçadoramente a cada parada, dando trancos no decorrer de seu percurso.  O rapaz não se sentia nem um pouco seguro ou confiante naquele ambiente. Alguns moradores dos demais andares sempre sufocavam risadinhas e lançavam-lhe olhares caridosos quando Carlos demonstrava sua inquietude ante àquelas irregulares e penosas viagens de elevador. Mas naquela noite, quando as grades de fecharam barulhentas, prendendo-o dentro da ‘câmara de tortura’, ele estava absolutamente sozinho com sua sacola do supermercado. As garrafas tilintando dentro do plástico não eram nada se comparadas aos gemidos vindos de dentro das paredes e ao barulho do trôpego e errante elevador. Os ruídos aumentavam gradualmente de acordo com o progresso que o elevador fazia tortuosamente lento, como que intencionado a torturar Carlos por um tempo mais prolongado. Era como se quanto mais alto fosse, mais se chegava perto de uma verdadeira câmara de tortura, de onde gemidos e lamentos partiam agonizados.

 

- Vamos, geringonça.– ele murmurou impaciente, apertando o botão do 17° andar repetidas vezes, como se isso fosse apressar o elevador.

 

O jovem escritor era perturbado pela impressão de que os cabos que seguravam o elevador cederiam a qualquer momento, tão desconfortável era aquela subida. Entretanto, após alguns minutos aflitivos, a porta reluzente e as grades barulhentas se abriram revelando mais que a liberdade do corredor do décimo sétimo andar. Parada a encará-lo, com uma câmera fotográfica pendurada no pescoço, estava a vizinha mais estranha que ele poderia conseguir. A garota tinha olhos grandes, de coloração caramelada, e seus cabelos eram tão curtos que mal chegavam a seu queixo. Possuía um rosto infantil e era tão magra, que por conta dos vários piercings espalhados por seu rosto, era difícil definir sua idade.

 

- Olá, restauradora. – o rapaz sorriu cordialmente, deixando o elevador.

 

- Escritor. – a moça respondeu, trocando de lugar com seu vizinho e apertando o botão do térreo.- Você esta com uma aparência horrível. – completou entre as mascadas de seu chiclete.

 

- Os barulhos.

 

- Ainda não te deixam dormir?– ela indagou, como se o entendesse perfeitamente. –Deviam trocar logo esse encanamento. - Como para confirmar a veracidade daquelas palavras um barulho grave e gorgolejante preencheu o corredor. Lia fez uma careta. – Faça como eu. Turno da noite. – ela bateu uma foto do rosto surpreso de Carlos.

 

-Achei que você fosse restauradora e não fotografa- a voz rouca do rapaz estava ainda mais acentuada pelo cansaço.

 

- Preciso de fotos das estatuas nuas que irei restaurar antes de começar o trabalho. – ela deu uma piscadela marota, fechando as grades do elevador.

 

Carlos riu consigo mesmo soltando a porta que estivera segurando para impedir o elevador de iniciar sua viagem. Lia era mesmo uma figura estranha, que muitos fariam questão de evitar, mas era inegável o carisma que partia das palavras da espontânea jovem. O rapaz sentia inveja de todo aquele despojamento e divagando sobre isso ele deu as costas para as portas douradas do elevador, iniciando a caminhada até seu apartamento.

 

As lâmpadas ao longo do corredor davam uma iluminação bruxulenta para o ambiente, tornando-o mais sombrio. Àquilo, pelo menos, Carlos já se adaptara, mas quando um barulho seco, de batida, se deu através da parede bem a seu lado, o rapaz não pode evitar um sobressalto. A alça da sacola quase escorregou por seus dedos, mas ele conseguiu firmá-la no último instante. Com o coração ainda aos saltos, em meio a um jato repentino de adrenalina, Carlos aproximou-se da parede de onde partira o barulho tão diferente dos costumeiros gemidos da encanação velha daquele edifício antigo. Franzindo o cenho, o rapaz notou algo de errado na superfície que deveria ser lisa e bem acabada. A pintura a altura dos olhos do jovem assemelhava-se a algo acido, que borbulhava com um chiado ruidoso e nauseante.  Surpreso e intrigado, Carlos apertou os olhos, tentando enxergar melhor na penumbra daquele corredor onde, repentinamente, o silêncio era quase pleno, a não ser pelo vento uivante que entrava feroz atravez das janelas abertas.

 

O rapaz esfregou os olhos com a mão livre e eles arderam cansados. Quando os reabriu, a superfície branca a sua frente estava lisa e monotonamente normal, como o restante das paredes. Carlos passou a mão pelo local onde antes algo acido parecera estar queimando, mas tudo de incomum havia sumido literalmente num piscar de olhos, como uma alucinação provocada pela falta de boas horas de sono.

 

Ele deu as costas, mas ao estender a perna para retomar seu caminho, algo fez com que estancasse ao mesmo tempo em que um estranho arrepio corresse por sua espinha. Uma batida seca, dura e direta se fez ouvir, vinda de dentro da parede bem a seu lado, mas diferente daqueles gemidos dados pelo encanamento velho. Era como se um balanço de madeira tivesse acertado o lado de dentro da parede, levemente, empurrado pelo vento. Fechando a mão em punho, Carlos deu uma leve pancada na superfície, investigando, curioso. Não foi decepcionado, pois o barulho se repetiu e o rapaz repetiu a pancada mais três vezes, sendo que todas elas obtiveram como resposta aquele leve barulho de batida, como se algo de madeira acertasse o outro lado da parede. Mas na quarta tentativa, quando Carlos aproximou seu rosto da superfície plana, a batida que obteve em resposta não foi única nem suave. A impressão era que do outro lado da parede algo começara a espancá-la sucessivamente com algum objeto duro. Uma bordoada após a outra, numa ferocidade incessante.

 

O rapaz se afastou assustado, espremendo-se contra a parede oposta, mas quase que imediatamente a repetição de barulhos ensurdecedores se transferiu para ali, às costas de Carlos. Ele arregalou os olhos, afastando-se de ambas paredes, parando atrapalhado no meio do corredor. Tropeçando, correu até a porta de seu apartamento, mas o barulho pareceu persegui-lo assustadoramente, seguindo atrás dele alternando entre as duas paredes. Bordoadas à direita, bordoadas à esquerda. A ferocidade das pancadas era enlouquecedora.

 

A alça da sacola de plástico apertava o pulso do rapaz, mas ele sequer sentia, enquanto procurava a chave correta no molho em suas mãos. Tremulo, destravou a fechadura e se atirou pela porta, fechando-a com força atrás de si. Antes que ela batesse, uma última pancada, desta vez ensurdecedora, partiu do teto como o soco de um gigante. Carlos trancou a porta, ofegante e no mesmo instante tudo se fez silencioso. A não ser pelos lamentosos canos que começaram a gemer dentro das paredes como o habitual, mas dessa vez com um toque diferente. Debochavam. Mais que lamentos, naquela noite o encanamento parecia rir, gargalhar umidamente, preenchendo o apartamento de Carlos com um som macabro.


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