Jogos Vorazes: Rue escrita por Nhami


Capítulo 1
A Colheita




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/213580/chapter/1

Acordo tarde. Posso perceber pela luz do Sol entrando no quarto através das frestas da janela. Fecho os olhos. Isso não é muito bom, os Pacificadores vão me punir por chegar tarde, penso. Papai deveria ter me acordado quando ele se levantasse. Ah, não. Marco. Alínia. Cravina. Eles deveriam ter sidos acordados pelo papai também. Estico meus braços, procurando por eles, mas não encontro nada. Abro os olhos. Estou sozinha no colchão.

Meus irmãos devem ter pego turnos em dobro para eu poder dormir um pouco mais. Mas está tudo bem, posso fazer o mesmo para Marco daqui 2 anos, quando ele tiver completado 12, e para todos os outros também, quando crescerem. Até que é bom descansar um pouco antes da minha primeira Colheita. Levanto-me do colchão de casal estendido no chão. Vejo Melline na cama dos nossos pais, junto de Alexander. Os dois são parecidos comigo. Pele escura, estrutura delicada. Tiro meu colchão do chão com dificuldade e o encosto na parede.

Com o colchão fora do caminho, o quarto até que é grande se comparado com o resto da casa. Olho para ele de novo. É enorme, mas é preciso. Afinal, Cravina, Marco, Alínia e eu dormimos nele. O tecido está um pouco gasto e desfiado, em alguns pontos posso ver a espuma amarela dentro dele. Mas ainda é mais do que a maioria das famílias que moram nessa área tem. Talvez minha mãe costure onde o tecido está rasgando mais tarde.

Coloco roupas limpas e saio do quarto em silêncio, com medo de acordar meus irmãos. Se fosse um dia comum, eles deveriam dormir até às 9:30, quando iriam acordar e se arrumar para a escola. Eles ainda são pequenos demais para trabalhar, mesmo na época da colheita. Mas não é um dia normal, e daqui a pouco eles terão de se levantar e ir à praça. Só os que trabalham na colheita têm que trabalhar antes dos nomes serem escolhidos. E depois, também. Uma família hoje vai recolher verduras com lágrimas nos olhos.

Mas se fosse um dia normal de colheita, eu e Marco iríamos para os galhos mais altos no pomar antes do Sol nascer, e Cravina e Alínia para as hortas, junto de nossos pais. Fico triste por eles, na verdade. Trabalhar nos pomares é melhor. Sem chapéus de palha, dores nas costas, sem muitos Pacificadores. Só uma cesta, a árvore que nos é apontada e tordos. Eu e Marco adoramos o trabalho. Correr pelos galhos no alto, saltar de árvore em árvore. Voar. É claro que os empregos mais para o centro do Distrito são melhores. Supervisores de produção, cientistas que criam agrotóxicos, até as pessoas que são pagas para levar caixotes de alimentos para dentro dos trens, têm, no fim do dia, um jantar melhor do que nós, que trabalhamos até o anoitecer. Mas está tudo bem. Minha família tem o que comer, onde dormir, o que vestir. Não posso reclamar. Entro na sala pequena e vejo minha mãe já toda arrumada. Ela deve ter tirado o dia de folga, também. Aposto que papai a forçou.

– Rue, por que você está com a roupa de trabalho? Hoje é a Colheita.

– Achei que poderia ir ajudar Marco ou as meninas antes de ir.

Minha mãe balança a cabeça.

– Eles estão te dando o dia de folga como presente. Se arrume, querida. Daqui a pouco vamos ter que ir.

Volto para o quarto em silêncio e troco de roupas rapidamente. Ponho um vestido verde, antigo. Quase não cabe mais em mim. Acordo meus irmãos e em pouco tempo estamos fora de casa, caminhando em direção a praça. Seguro a mão de Alexander enquanto caminho. Penso de novo em como é injusto o sistema da Colheita. Os filhos dos que trabalham mais para o centro nem participam. Só vão para a praça os que têm 3 ou mais tésseras. Basicamente, todos que trabalham nas plantações são obrigados a se inscrever, enquanto os mais ricos do Distrito praticamente 0aproveitam os Jogos, como os moradores da Capital.

Antes de chegar na praça, já vejo os telões espalhados pelas ruas no centro. Todos os telões mostram a mesma cena: o palco com o prefeito ao lado de Chaff e Seeder, os vitoriosos que esse ano vão ser mentores, e Summer Rhedem, a escolta do Distrito 11. As ruas já estão cheias de pessoas, todas olhando ansiosamente para os telões. Eu e minha família andamos mais depressa, tentando desviar das pessoas. Solto a mão de Alexander e começo a caminhar na muretinha que separa a rua da calçada. Quase todo o Distrito é pavimentado, para as carretas que levam nossa produção poderem circular com facilidade das plantações até a estação de trens. Eu sempre caminho nelas, é divertido. Para quem caminha nos galhos não é nenhum desafio. Melline puxa meu braço, tentando me desequilibrar. Eu pulo com facilidade para longe dela, e sorrio. Ela encara isso como um desafio e começa a me perseguir. Quando chegamos na praça, estamos ambas suadas e com as roupas amassadas e um pouco sujas. Olho para trás e vejo que minha mãe e Alexander ainda estão longe. A praça já está cheia, com a maioria das crianças nos lugares designados.

– Melline, espere aqui pela mamãe. Eu tenho que ir para a minha seção.

Ela faz que sim com a cabeça e corre para nossa mãe. Esperar quieta não faz o estilo dela.Sorrio e caminho até o lugar designado para a minha idade. Reconheço algumas pessoas, da escola, do pomar, do Edifício da Justiça quando recolhemos nossa cota de grãos da téssera. Comprimento todos com a cabeça e aliso meu vestido, tentando, provavelmente em vão, arrumá-lo. Percebo que estou um pouco tonta.

Não como nada desde o almoço de ontem, porque dei meu jantar a Cravina. Ela foi punida por um Pacificador por tentar esconder uma batata para nós. O Pacificador devia estar sentimental: não bateu na minha irmã, nem a denunciou para o prefeito. Eu me lembro de quando Alínia tentou pegar um legume para dar de presente para nossos pais. O Pacificador tentou chicoteá-la, mas eu cheguei antes que a prendessem no tronco. Me ofereci, falei que eu que tinha mandado-a fazer aquilo. Três chicotadas nas costas, uma nos ombros. A última foi dada com muito entusiasmo e acertou minha bochecha também, me deixando com uma cicatriz comprida e clara.

Mas esse Pacificador que pegou Cravina foi bondoso, até. Ele se limitou a tomar a batata de volta e deixá-la sem jantar. E é claro que não permiti que ela ficasse com fome. Achei que iria tomar um bom café-da-manhã, mas acordei tarde e perdi, e o almoço será servido depois da Colheita. O jeito é ignorar meu estomago reclamando e tentar focar no que o prefeito está falando. Depois do seu discurso de como a Capital é generosa e sobre como nós todos deveríamos ser gratos, Summer se levanta. Ela nos deseja sorte e caminha direto para o globo de vidro. Não faz mais nenhum comentário, apenas coloca a mão no globo e tira uma tirinha de papel.

E eu desejo mais do que tudo que não seja eu. Se for eu, como meus irmãos vão se virar? Por favor, que não seja eu. Papai e mamãe são ótimos pais, mas eles trabalham tanto. Alexander e Melline com certeza vão ser designados para o pomar. Por favor, que não seja eu. Como eles vão aprender a se mover no alto, a correr pelos galhos, a evitar Pacificadores, a dividir as refeições para que todos recebam o que precisam? Por favor, que não seja eu. Quem vai proteger os pequenos? Por favor, que não seja eu. Quem vai tomar as punições dos Pacificadores? Passo a mão pela cicatriz em minha bochecha. Por favor, que não seja eu.

Olho para Summer de novo. Ela se aproxima do microfone e todos prendem o fôlego. Por favor, por favor, que não seja eu. Ela põe o rosto em frente ao microfone e lê o nome em voz alta.



Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!