Sombras escrita por Yukitsuki Shion


Capítulo 5
Capítulo V - Diante do espelho




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Uma vez me disseram que os olhos são a janela da alma. Através deles, é possível decifrar todos os segredos de alguém, compreender seus sonhos e descobrir seus temores. Transformar o imaginário em realidade, tornar a realidade um verdadeiro paraíso ou inferno, a depender de suas intenções. E para aqueles que já perderam a alma? O que os olhos significam para aqueles – como eu – que não possuem mais nada? Esferas vazias, uma passagem sem saída... Um caminho a ser trilhado através de uma estrada solitária. Sem dia ou noite, luz ou escuridão. Um céu sem chuva, também sem nuvens; não existe uma árvore ao seu redor, não existem casas ou pessoas. Como se a vida se esquecesse de existir, como se a morte se esquecesse de reconstruir. Um corpo que apenas se move, ao sabor do passar dos anos, das décadas e dos séculos, marionete de desejos sombrios. Desejos na maioria das vezes são sombrios, como amar, viver ou sorrir. Ninguém sabe ao certo o que se esconde por trás de coisas tão indefinidas ou disformes. Desejos iluminados, por outro lado, podem assustar. Odiar, morrer ou chorar.

Do alto da torre, só me resta uma expressão descontente enquanto vejo sua silhueta se afastar. Mais uma vez. Meu pequeno nobre nunca mudou, não importa quanto tempo passe nem onde nosso jogo de predador e presa aconteça. Sempre desatento, deixando os instintos falarem tão alto a ponto de sufocarem seus últimos traços de humanidade, sua intuição. Não demorou muito para que eu me aventurasse a expor meu rosto novamente diante do jardim, enquanto o vento frio varria todo o lugar com um prelúdio de algo grandioso, porém misterioso. Fecho meus olhos e respiro fundo, sabendo que a esta altura ele está longe; e que uma vida será ceifada em breve, talvez a da pobre vendedora de maçãs que lhe deu esperanças mesmo sem saber de nenhum detalhe da nossa história. – Ao menos uma vez... Eu gostaria de não fazer isso da maneira certa. - Resmungo para mim mesmo enquanto dou mais um passo em direção aos balaústres que formam a borda da varanda, na torre abandonada da velha catedral. Aos poucos aquela sensação começa a se espalhar pelo meu corpo, um sinal de que ele estava ouvindo nesse momento, ansioso por responder. O toque de suas garras não me machucava, não dilacerava uma fibra sequer do meu corpo. Seu espreguiçar era como um par de asas que se abriam, ocupando todo o espaço de uma maneira gentil, uma carícia. – Sabe que não pode fazer isso, não podemos. Afinal somos o que somos, não é? – Suas palavras eram contidas como sempre, enquanto acabava de dispersar a névoa de noite e sombras que pairava ao nosso redor como uma teia de aranha, fria e maleável. Uma máscara, que havia nos ocultado com perfeição de nosso célebre convidado. – A perfeição é tudo que me aguarda, eu já ouvi isso antes, mais de uma vez. Embora me sinta sujo, Gäelle. Às vezes este jogo não faz sentido, eu não entendo porque prosseguir. – Solto o ar quente contra as mãos, na tentativa inútil de aquecê-las melhor que as luvas de lã. Ao contrário da maioria dos demônios, Gäelle nunca desejou o controle por completo, nunca ostentou seu poder ou mesmo seus desejos: mesmo depois de tanto tempo, somos completos desconhecidos. Ele apenas faz o que faz da maneira que escolhe, sempre me deixando como um observador aleatório. Na verdade, não sei se o que faço é movido por meus desejos ou pelos dele. – Ela ficará bem, ele não faria isso com quem lhe fez chegar tão perto... É uma pena que não tenha lido por completo. Aquele demônio arrogante. – Era clara a repulsa que meu demônio nutria por Uske, mesmo passado tanto tempo desde que estiveram juntos pela última vez. Tempos diferentes, um tempo em que eu era diferente. Nem de longe me parecia com isto, com o que me tornei hoje. Um sorriso se desenhou em meu rosto enquanto eu subia em uma parte mais avantajada do beiral e abria os braços. Equilibro meu corpo com perfeição, as vestes se movimentando ao gosto das correntes de vento enquanto os cabelos – fios de ouro iluminados pela lua – chicoteiam meu rosto, os lábios rubros como a mais linda das rosas, apenas esperando a ser colhida. E então me atiro, sem medo algum. Por segundos que parecem infinitos, a vertigem é a única sensação que tenho enquanto os dedos do demônio interior parecem se prender às minhas costelas, ajeitando-se da melhor maneira possível. O choque contra uma gaze de ar, a tentativa inútil de conter a queda de um corpo que já morreu há tanto tempo. Os pés tocam o chão sem maiores problemas, quando ouço os ossos estalarem, provavelmente quebrados. Em instantes, me apoio em uma das paredes enquanto estou impedido de andar. Fecho os olhos e um sorriso sádico aparece. “Apresse-se meu criado gentil, conserte o corpo que partilha comigo, uma vez que a alma já não pode ser restaurada. Una as peças quebradas, faça-me novo...” Não preciso esperar muito antes de voltar a caminhar, como se nada tivesse acontecido, até chegar ao canteiro onde ele esteve há tão pouco tempo. Estar morto significa apenas não estar vivo, não significa que não posso partilhar dos sentimentos destes, mesmo que isso seja doloroso na grande maioria das vezes. Embora tudo tenha sido tão diferente daquela vez. A primeira vez que confiei em alguém.

Eu já não sei mais o que sou. Se me perguntar como me tornei isso, também não saberei responder. Se não for suficiente o meu silêncio como prova da total ignorância que mascara e distorce minha mente, posso abaixar os olhos e talvez sorrir. Fingir e disfarçar mais uma vez, como se esta fosse a primeira. Meu mundo foi feito de mentiras. Mentiras que duraram tempo demais; tanto tempo que agora não sei separá-las da verdade e isso turva minha percepção. Faz com que eu me sinta num jogo constantemente, tão viciante que não me permito perder, mesmo que precise chegar ao fim das minhas forças. Talvez ao fim da dignidade e do amor próprio. A noite havia acabado, eu havia perdido minha balsa de salvação. Quando cheguei ao cais, era tarde para embarcar e tentar reconstruir minha próxima vida. Digo próxima porque não saberia numerá-la, mesmo que me sentasse e passasse horas costurando tantas personalidades e histórias diferentes. Agora só me resta lembrar cada uma delas. Quem sabe assim, em algum momento, eu consiga reunir em mim toda a coragem para fazer o que eu realmente preciso.



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