Ersio já havia perdido três lutas para Lyo, e já estava cansado. Desviar-se de seus incansáveis e certeiros golpes se tornava cada vez mais difícil.

Recordava-se frequentemente de quando era apenas uma criança, tentando socar o que quer que estivesse em sua frente, sem rumo. Fechava e comprimia os grandes olhos azuis antes de cada golpe que dava, e a tarefa de não chorar quando era atingida era difícil.

Também se lembrava de certa vez, em que não conseguira se segurar. Seu olho estava roxo, e o corpo dolorido, quando Draiko desenhou com a lâmina da espada um profundo corte na perna de Lyo. Apenas não a cortara por completo porque era sua filha.

O ferimento ardia, queimando como fogo na pele macia e clara da menina, que tinha apenas oito anos na época. Deixara sua espada cair no chão, se sentando e segurando a perna machucada. Lágrimas rolavam por sua face infantil, seguidas de soluços dolorosos e angustiantes.

A expressão de Draiko era furiosa, raiva e decepção flamejavam em seu olhar de uma vez só. Acertou a menina com um soco, e nem se preocupou em fazê-lo de leve. Usou toda a força que conseguiu reunir e acertou-a no rosto. Lyo cuspiu sangue, gemendo de dor em meio aos soluços.

– O que foi que eu lhe disse sobre chorar? - indagou ele, num tom frio e baixo, porém ameaçador.

Lyo tossiu, e sangue espirrou de sua boca e nariz ao mesmo tempo. Estava num estado deplorável.

– Devo controlar minhas emoções... E também a dor. - respondeu, em meio a dor e ao sangue que saía incansavelmente de onde o punho de seu pai havia atingido.

Draiko agachou-se, mantendo seu rosto alinhado ao de sua filha. Uma fina camada de ar quente os separava, debilmente. Segurou o queixo de Lyo, levantando-o e fazendo-a olhar em seus olhos.

– E, pelo que vejo, não é isto que está fazendo. Estou certo, minha cara?

Lyo engoliu sangue e saliva misturados, deixando outra lágrima cair de seu rosto acidentalmente. Abaixou a cabeça até seus longos cabelos negros lhe cobrirem o rosto.

– Eu sinto muito por tê-lo decepcionado...

Draiko fora um pai duro, e ainda o era, aos olhos de Ersio. O escudeiro sabia que havia se tornado daquele jeito por causa de sua esposa, sua tão amada Myenn. Havia se tornado um homem obssessivo, com uma infindável sede por vingança. Não enxergava mais seus limites, nem mesmo o perigo ao qual expunha sua própria filha.

E sua frieza fora transmitida fielmente à Lyo, porém em outras proporções. Tinha apenas seus catorze anos de vida, mas já mostrava características de sua personalidade forte e crítica. Analisava tudo ao seu redor atentamente, e não lhe faltava um detalhe sequer. Se houvesse uma pessoa certa para roubar Shadowland, esta, com certeza, seria ela, a filha de Draiko Graylake.

– Jesus! - exclamou Ersio ao ter seu nariz acertado pelo veloz punho de Lyo bruscamente. Deveria tê-lo quebrado, pelo estralo que provocou.

Ele se afastou da menina, que se desculpava por tê-lo machucado. Suas mãos foram automaticamente ao encontro do ferimento.

– Quando foi que você ficou assim tão forte? - indagou, assustado.

Lyo deu de ombros.

– Lamento pelo seu nariz. Não foi de propósito.- desculpou-se. - Não acha que está um tanto fora de forma? O Ersio que eu conhecia nunca seria acertado nem mesmo uma única vez.

Ele apertou os olhos.

– Está me desafiando?

Ela olhou para os lados, fingindo inocência.

– É claro que não. Seria estupidez a minha desafiá-lo para uma luta da qual tenho certeza de que sairia vencendo.

O desafio estava explícito em sua voz. Ersio notou.

- Ora, pois venha cá! - exclamou, lançando-se contra Lyo e dando início à mais uma luta.

Ignorando seu nariz quebrado e sangrando, deu um soco no ar, na tentativa de acertar a menina, que se desviava de seus golpes numa agilidade fria e apavorante.

– Lyo, - chamou a voz cortante de Draiko, interrompendo-os. - Lila quer vê-la.

Sua figura, banhada em roupas negras e vermelhas, surgiu na porta do Salão de Treinamento, analisando friamente a luta dos dois.

Lyo afastou-se de Ersio, voltando-se para o pai. Assentiu com a cabeça, caminhando até a porta do Salão de Treinamento.

Os olhos de Draiko esbarraram nos de seu escudeiro.

– Oh, minha nossa, Ersio. Em que estado deplorável você se encontra! - exclamou.

O escudeiro deu de ombros, limpando o nariz, que sangrava, com a barra de sua blusa, enquanto Lyo saía do Salão ligeiramente.

Draiko se aproximou do amigo.

- Ersio, meu bom escudeiro... - chamou. - Posso lhe fazer uma pergunta?

Seu tom era inseguro, completamente vascilante. Ersio se perguntava o que será que havia acontecido, temendo o pior. Nunca vira o rei agir daquela maneira tão cautelosa.

- Mas é claro, Vossa Graça.

- Acha que ela está pronta? - indagou.

Ersio refletiu sobre a pergunta antes de respondê-la. Apesar da usual frieza de seu tom, o escudeiro pode ver uma faísca de preocupação paterna se acender no olhar negro de seu rei.

- Sim, Vossa Graça. Lyo é uma menina forte e esperta, e sabe bem como se defender. - afirmou, com certeza. - Porém temo pelo que farão à ela enquanto ainda tiver de manter as aparências...

Draiko fez uma careta involuntária. Ersio tentou consertar.

- Lamento... Não devia ter colocado desta maneira. - disse.

O rei suspirou.

- Tudo bem... É só que ainda não me acostumei à ideia de um Blackfire colocar suas patas nojentas em minha Lyo.

- Não o culpo. Deve ser uma sensação angustiante, creio eu.

Draiko pareceu refletir por alguns segundos.

- É, meu caro Ersio... Parece-me que hei de me acostumar.

O escudeiro tentou reconfortá-lo.

- Vossa graça não deveria se preocupar. - disse, num tom brando. Os olhos negros de Draiko o analisavam, reflexivos. - Posso lhe assegurar que Lyo saberá o que fazer. Vossa Graça a ensinou bem.

A face do rei adquiriu uma expressão de contentamento, claramente satisfeito com o elogio.

- Pois espero que tenha razão.