Remote Heart e Show Pony passaram muito tempo ali. Não disseram nada, não se moveram, não se importaram com nada. Choraram em silêncio por minutos infindáveis, e quando perceberam, o efeito paralisante da arma da BLI estava desaparecendo.

Então, ao se recuperarem, levantaram e pensaram no que fazer primeiro. Show Pony decidiu ligar para Dr. Death.

— Ei... A Grace tá aí?

— Não, quer que eu a chame?

— Não, quero que ela esteja longe. Dr. D., o Kobra e o Jet...

Show Pony deixou que o silêncio pesasse o bastante para que fosse entendido.

— Ah, não... Pony, é sério?

— É, é sério. Foi um Exterminator, aqui na Rota Guano mesmo. Depois eu te conto os detalhes, agora nós precisamos achar Party e Fun.

— Mas venham pra cá primeiro... — Dr. Death controlava a emoção em sua voz. — Comam alguma coisa, relaxem, deve ter sido difícil de assistir. Eles podem esperar.

Show Pony olhou para Remote Heart e os dois deram de ombros.

— Tá, pode ser.

Desligou, e encarou os dois killjoys ao chão. Remote Heart fez a pergunta que rondava a mente de ambos:

— O que a gente faz com eles?

— Acho que o Dr. D. já vai mandar alguém buscá-los... Ele é rápido. Depois o Party e o Fun decidem aonde enterrar.

Dito isso, eles recolheram as rayguns, viraram-se e voltaram para a moto, obviamente fazendo força para não olhar para trás.

O silêncio permaneceu no caminho todo até a casa de Dr. Death. Ao chegarem lá, encostaram o veículo na entrada mesmo e entraram cautelosos; nenhum deles queria ver Grace e ter de contar o que acontecera.

— Ela tá lá atrás com a Star — Dr. Death falou, sabendo o que eles pensavam. — Querem contar só quando o Party e o Fun chegarem?

— É, acho melhor. Todos juntos — Remote Heart respondeu com um suspiro.

— Certo, entendo... Só tem um problema. Eu não estou conseguindo falar com nenhum dos dois. O Fun até me atendeu, mas o barulho lá tá muito alto e eu acho que ele não está em seu perfeito juízo, sabe...

— Melhor pra ele — Show Pony comentou sombriamente, sentando-se e se servindo de uma porção de batatas fritas que estava no braço do sofá. — É bom estar em outro mundo de vez em quando.

— Eu diria o tempo todo — Remote Heart falou, também se sentando.

— Bom... Eu vou dar as notícias — Dr. Death estava claramente triste, mas não chegara a chorar. — Tenho que ser imparcial...

Ele colocou a mão sobre a testa, apertou por alguns segundos, suspirou pesadamente e então acionou o microfone. “Más notícias das zonas...”. Ele falou rapidamente sobre a situação e se afastou. Os três ficaram quietos por um tempo.

— Eu só estou com uma dúvida... — ele disse então, franzindo o cenho. — Da onde aquele bando de Dracs veio? E o Exterminator?

— Eles sempre aparecem do nada. “A BLI está te observando” — Remote Heart falou, com um tom sarcástico.

— Eu sei, mas por que agora? Sei lá, tem algo estranho nisso... Acho que eu vou...

Ele terminou a frase em um murmúrio tão baixo que os outros não puderam ouvi-lo. Dr. Death se virou novamente, começou a mexer em seus equipamentos e logo barulhos altos de chiados e vozes desconexas encheram o ambiente.

Show Pony e Remote Heart esperaram, sabendo que só teriam explicações quando Dr. Death terminasse.

Em alguns minutos, uma voz, entrecortada por falhas de conexão, tornou-se clara. Não demorou dois segundos para que todos a reconhecessem.

— Korse — sussurraram juntos.

— … eu não consigo falar com ele! — o chefe dos Exterminators não parecia nada feliz. — Isso só pode significar que mais uma vez um dos seus brilhantes planos deu errado, e eu já estou perdendo a paciência!

— Sua paciência não me interessa — uma voz feminina respondeu, com um barulho muito alto por trás dela. Os três killjoys perceberam que era a mesma mulher com quem haviam visto Korse discutir quando foram salvar os Dust Angels. — E se seu pequeno Exterminator não foi bom o bastante para trazer dois killjoys, a culpa não é minha.

Dr. Death, Show Pony e Remote Heart se entreolharam. Como eles sabiam que eram só dois?

— Pearce é um dos meus melhores!

— Não, ele só é um dos que mais puxam seu saco. Ou era.

Korse começou a retrucar, mas a mulher prosseguiu:

— Você quer dizer que ele não pegou a menina, então?

— Se eu não consigo falar com ele, quer dizer que eu não sei, né?

— Então a falha no plano foi sua.

— Hey, você que devia ter atraído os quatro pra longe, não é culpa minha se só dois foram. E você já imaginava que isso podia acontecer, ou não teria mandado um dos meus melhores Exterminators depois da primeira leva de Dracs.

— Ah... — o suspiro da mulher foi quase inaudível, devido ao barulho. — Que seja. Já perdemos a oportunidade. Vem pra cá, precisamos levar os que estão aqui para a base.

— Onde?

— Zona 6, perto do 27º posto de vigilância. Você vai achar de longe, o barulho está infernal.

— Quantos killjoys aí?

— Muitos, traga bastante gente. Desli...

— Espera. Party Poison está aí, com absoluta certeza?

— Sim, Korse, está. Desligando.

Um chiado alto preencheu o vazio que se seguiu. Dr. Death, Remote Heart e Show Pony se encararam perplexos.

— O QUE VOCÊS ESTÃO ESPERANDO? — Dr. Death gritou.

Os outros dois pularam do sofá e correram para fora.

De certa forma, Remote Heart estava feliz por não ficar parado. A visão de Kobra Kid e Jet Star mortos precisava sair de sua cabeça, e não existia melhor forma de isso acontecer do que indo para uma possível luta. De novo.

Voaram pelas estradas até o local onde a suposta festa estava acontecendo. Tinham uma boa dianteira em relação à Korse, supondo que ele estava saindo de Battery City. De longe ouviram a música tocando, e ao que parecia, uma mulher falando em um microfone, em japonês.

Estranhamente — ou não — ninguém estava do lado de fora. As luzes passavam pelas janelas em períodos alternados, e a única porta de entrada estava fechada. Remote Heart e Show Pony viram vários carros e algumas motos estacionados, inclusive o dos Dust Angels. Ele pararam bem no meio e deram a volta na casa, olhando pelas janelas e procurando encontrar Party Poison e Fun Ghoul em algum lugar. Conforme andavam, Show Pony ia murmurando, nervoso.

— Ah, não, o Cat Cleric tá aqui... Ah, a Girl Glow! Ela nunca vai pra festas... Droga, a Night Riot também...

Acabaram encontrando uma porta nos fundos que conseguiram arrombar. Entraram, e o som doeu em seus ouvidos por alguns momentos, até eles se acostumarem. Passaram por algumas portas e chegaram ao centro da festa, espremidos entre dezenas de killjoys. Subitamente, a música eletrônica desapareceu, e em alguns segundos, o som de uma bateria encheu o lugar. Todos gritaram felizes com a mudança.

Remote Heart espiou por entre as pessoas e percebeu um pequeno palco improvisado montado em um canto. Um guitarrista passou a acompanhar a música, enquanto os outros se preparavam para suas entradas. Bem ao lado, a mulher oriental falava em seu microfone, animada, apesar de eles não entenderem nada. Ela estava completamente diferente da última vez em que a viram, agora com maquiagem mais pesada, vestido e salto alto. Era surpreendente como ela era uma boa atriz.

Remote Heart segurou a mão de Show Pony para não se perderem, e começou a procurar pelos amigos, o que não é tarefa fácil em um lugar lotado como aquele.

Enquanto andavam, Remote Heart foi notando que as pessoas agiam de uma forma muito estranha. Primeiramente achou que estavam todos bêbados, o que explicaria seus sorrisos estúpidos. Mas seus olhos estavam ligeiramente vagos, de uma forma que ele já conhecia de algum lugar...

Aproximaram-se do palco, e Remote Heart pôde ver melhor os músicos. O vocalista estava completamente vidrado, cantando como se estivesse sob efeito de ecstasy. Então Remote Heart entendeu.

— Pony! Eles estão drogando todo mundo com as pílulas da BLI! — gritou.

— Tem certeza?

— Tenho, eu já vi isso, lembra?

Show Pony gemeu de frustração. Eles olharam para todos os lados, procurando desesperadamente os amigos, mas não precisaram continuar assim por muito tempo. Ouvindo uma distorção no ritmo da música, eles se voltaram para a banda e viram nada mais nada menos que Party Poison e Fun Ghoul invadindo o palco.

O primeiro agarrou o microfone e passou a cantar junto com o vocalista, que não pareceu se importar com a divisão. Já Fun Ghoul foi um pouco mais além. Arrancou com maestria a guitarra das mãos do outro e passou a tocar.

Remote Heart e Show Pony não tinham como não rir ao vê-los. Ao que parecia, eles não estavam tão drogados; seus olhos focavam-se nas coisas. Aquilo tudo devia ser uma ideia puramente deles.

— Como eles conhecem a música? — Show Pony perguntou, gritando.

— Eles disseram que tinham uma banda, há muito tempo. Talvez seja deles.

— Mas porque a BLI mandou tocar isso agora?

— Ironia, quer motivo melhor?

Show Pony teve que concordar. Korse, a mulher oriental e a própria BL/ind iria adorar capturar os killjoys ao som de algo que eles mesmo criaram. E, prestando atenção na letra, a ironia ficava maior ainda.

This ain't a party!

Get off the dance floor!

Party Poison e Fun Ghoul ainda não os haviam visto, e eles não queriam ser percebidos pela mulher ainda. Aproveitando um momento em que ela olhara para outro lado, Remote Heart se jogou para frente e agarrou a barra da calça de Party Poison, atraindo sua atenção.

O de cabelos vermelhos sorriu ao reconhecer o amigo e tentou puxá-lo para o palco também, mas Remote Heart não deixou. Gritou que ele devia descer, mas afinal Party Poison havia tomado alguma coisa intoxicada com as pílulas da companhia. Ele pareceu um tanto desorientado. Deu de ombros e voltou a cantar.

Show Pony tentou agora atrair Fun Ghoul, que se ajoelhou para eles.

— TÁ DEMAIS ISSO AQUI! — ele gritou, sorrindo de orelha a orelha e perdendo várias notas com a distração. — Cadê o Kobra e o Jet? Eles não sabem o que estão perdendo!

Mais uma vez, tudo o que Show Pony e Remote Heart gritavam foi ignorado. Fun Ghoul se levantou, cambaleou um pouco — também não estava muito sóbrio — e se aproximou de Party Poison. Cantou junto com ele e o outro por um momento.

So throw a fist up,

Now throw your fist up!

Inesperadamente, Fun Ghoul virou o rosto e deu um beijo rápido em Party Poison, para depois se afastar rindo. Remote Heart e Show Pony se entreolharam, sorridentes, mas logo lembraram do porquê estavam ali. A mulher oriental estava mais afastada, parecendo preocupada. Olhava para as janelas, o microfone ainda em mãos.

Remote Heart atraiu a atenção de Party Poison novamente, e, junto com ele, gritou:

— Isso não é uma festa!

Party Poison se calou e franziu o cenho, confuso. Remote Heart fez sua melhor expressão de pânico e, com gestos, pediu para que o killjoy descesse. Depois de alguns segundos de atordoamento, ele obedeceu, agarrando Fun Ghoul pelo braço e o obrigando a vir junto. Fun Ghoul reclamou, mas devolveu a guitarra para o dono e seguiu os outros para o meio do salão.

— O que vocês estão fazendo? — o moreno exclamou, irritado. — Vocês não vieram pra festejar também?

— Fun, viemos pra matar a festa — Show Pony gritou, bravo, fazendo o killjoy se calar.

— É uma armadilha — Remote Heart explicou. — A japonesa ali é da BLI, nós a vimos quando fomos salvar vocês, e vocês estão tomando as pílulas deles a noite toda!

Os dois estacaram, parecendo não entender nada.

— Temos que sair daqui! — Show Pony falou.

— Mas... nossa música — Party Poison choramingou, olhando para o palco. — Como eles...?

— Sei lá, algum deles deve ter conhecido vocês antes!

Party Poison mudou subitamente com essa fala. Seu rosto ficou frio, sem mais nenhum sinal de embriaguez. Fun Ghoul o observou preocupado.

— Korse está vindo pra cá, não tá? — o maior perguntou, amargurado.

— Tá.

Party Poison assentiu. Segurou a mão de Fun Ghoul e correu de volta para o palco, deixando Remote Heart e Show Pony completamente desorientados.

Ele agarrou o microfone, dessa vez rispidamente, e disse:

— Vocês precisam sair. Tem Exterminators vindo pra cá. Agora.

Por mais que todos estivessem drogados, a menção à palavra “Exterminator” ainda ativava o invariável instinto de sobrevivência em todos eles. Pararam de falar repentinamente, e então começaram a gritar desesperados.

A mulher voltou para perto do palco, falando qualquer coisa que parecia quase convencer os killjoys a ficarem calmos, enquanto Party Poison e Fun Ghoul corriam de volta em encontro aos amigos. Algumas pessoas permanecerem em seus lugares, dançando como se não houvesse amanhã; e, além delas, somente a banda não parou. Já estavam totalmente sob o controle da BL/ind. Mas Remote Heart agradeceu internamente por poder continuar a ouvir. Fazia anos que não sabia o que era o som de uma guitarra. E aquela estava sendo uma ótima trilha sonora.

This ain't a party!

A porta da frente estava trancada, mas com todos correndo contra ela, não tinha como aguentar por muito tempo. Os quatro killjoys ajudaram as pessoas a saírem, deixando para se preocupar com eles mesmos depois. Remote Heart foi até um dos que continuavam a dançar e tentou falar com ele.

— Ei, você tem que sair... HEY!

Mas ele não respondia, nem sequer focava o olhar. Sorria, como se tudo fosse perfeito. Remote Heart suspirou. Ele estava em algum lugar, preso dentro daquela mente. Mas ninguém além da BLI — e, com muita força de vontade, talvez ele mesmo — tinham as chaves. Remote Heart voltou para os outros.

Ainda faltava muita gente para sair, mas agora já era possível caminhar lá dentro. Show Pony, então, agarrou o braço de Remote Heart e apontou para a mulher. Ela olhava para tudo com ódio e certo desespero, ainda gritando de vez em quando no microfone, suas palavras causando um efeito retardatário em algumas pessoas. Então tirou uma caixinha do bolso e a abriu, revelando um grande e lustroso botão vermelho. Remote Heart percebeu que o botão continha dois fios, que passavam por baixo de toda a algazarra de pés e terminavam em...

— BOMBAS!

Isso só fez todos correrem mais rápido. Mas a banda continuava a tocar.

So everybody get down!

A mulher se afastou, indo em direção a uma porta ao canto direito. Ela levou o microfone, mas agora gritava com alguém em um rádio. Provavelmente Korse por não ter chegado, pensou Remote Heart.

'Till the party breaks down!

Eles não podiam mais esperar. Party Poison segurou Fun Ghoul com tanta força que deve tê-lo machucado, e Remote Heart fez o mesmo com Show Pony. Saindo na frente dos últimos killjoys que estavam lá — exceto os que permaneciam felizes em seus lugares — eles correram o mais rápido que puderam, os gritos da mulher oriental e a música ainda a alcançá-los.

Now everybody get down...

A mulher gritava mais desesperada, falando coisas que pareciam hipnotizar alguns killjoys, que acabaram ficando para trás. Sabendo o que os esperava, todos do lado de fora pularam para a frente e se jogaram ao chão, tapando os ouvidos e aguardando o que viria a seguir.

Now everybody get down

'Till the party breaks down tonight...

A explosão aconteceu rapidamente, arrancando muitos gritos de susto e de dor dos killjoys que foram atingidos por estilhaços. A música morreu, e, depois de alguns segundos, todos se levantaram e correram para seus carros. Enquanto iam, um casal parou Remote Heart, os dois aflitos.

— Por favor, tem como nos dar carona ou emprestar o carro? Viemos a pé, não vamos ter tempo de fugir.

— Pega a moto — Party Poison disse, ainda puxando Fun Ghoul. — Eles vêm com a gente, vocês nos seguem pra devolver a moto depois.

Apesar de um pouco contrariado, Remote Heart concordou, e entrou no carro dos Dust Angels com Show Pony. Saíram voando de lá, o casal na moto a segui-los.

Não falaram nada por um tempo, recuperando o fôlego. Então Remote Heart e Show Pony se entreolharam, pensando a mesma coisa. Quanto tempo teriam até que perguntassem sobre Kobra Kid e Jet Star?