Céu escrita por Liminne


Capítulo 9
Capítulo 9 – Nada mais que a verdade (2)




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Ainda ouviam os saltos de madeira das sandálias do homem estalando nos degraus. O ruído foi desaparecendo gradativamente. Quando o silêncio absoluto se instalou então naquela sala, voltaram a se olhar.
- Então... – Ichigo pigarreou um tanto sem jeito. – Acho melhor a gente sentar.
- Hum... É. – Rukia assentiu.
Os dois então se sentaram no carpete macio, um de frente para o outro, rodeados das almofadas azuis. Rukia agarrou uma delas e ficou meio sem saber o que fazer, como começar. Ichigo segurava a testa parecendo pensativo. Ou quem sabe, amedrontado? Aquela última declaração de Celeste-sama com certeza o fez tremer nas bases. Não que tivesse algo para esconder... Bem... Sabe-se lá! Afinal, ele conhecia aquela baixinha ali havia pouquíssimo tempo. Não era fácil para o caranguejo amolecer a casca de uma hora para outra, expondo tudo o que guardava ali... No entanto, ela também estava ali, também seria vítima, estariam igualados. E afinal, ela era sua alma gêmea, não era?
- Bem... – a voz dela ecoou pela sala amarela. – Acho que eu vou começar. – endireitou-se sobre as pernas dobradas para trás e equilibrou-se melhor sobre os calcanhares. O ruivo rapidamente içou a cabeça. Olhou para aquele rosto. Ela parecia pensativa, um tanto incerta, mas sempre decidida e pioneira. Não admitiria aquilo para ninguém, talvez nem para si mesmo, mas admirava isso nela.
De repente, viu que os lábios dela se retorceram e uma expressão maliciosa espalhou-se pelo seu rosto. Sentiu-se contrair...
- Então, Ichigo... – foi dizendo devagar e enfaticamente. – É verdade que você me acha feia de qualquer jeito? – sorria. Não sabia bem o porquê, mas estava começando a gostar daquela brincadeira.

****

- Não acredito! – a boca da garota abriu exageradamente.
- É. – a outra assentiu com um suspiro desanimado. Agarrou-se aos travesseiros e semicerrou os olhos pretos. – Eu não entendo Chiharu... Eu não entendo...
Ficou em silêncio por um tempo. O que falaria a seguir?

Conhecia bastante a amiga, desde que eram crianças, e sabia o quão sensível era. Estava percebendo que boa coisa não viria. Mas também não queria defender o acusado da história. Ela ficaria mais brava ainda. Que tipo de advogada esperava ser?
- Mas Mai-chan... – arriscou. – Tenha paciência... Olha, eles pegam bem pesado mesmo
em Direito. E olha que eu sou praticamente uma caloura. E o Ashido vai se formar esse ano!
- Eu sei! – elevou um pouco a voz, mas continuou com o corpo mole em cima da cama. – Mas para ela ele tem tempo!
Soltou o ar e reuniu seus argumentos. Não podia continuar vendo a amiga acabada daquele jeito. Aquela não era a Mai que todos deveriam ver.
- Ah, você sabe que o Ashido é um coração mole, vai! Ele só ajudou a menina, foi uma coincidência ele tê-la encontrado duas vezes
em apuros... Você mesma sempre diz que ele é bonzinho demais. Ahh, Mai-chan! Se eu soubesse que ia ficar assim nem tinha contado nada sobre ela! – cruzou os braços impotente.
- Não é culpa sua, Chi. – mostrou-lhe um meio sorriso cansado. – Eu acho que eu estou carente demais... Espero que isso tudo acabe quando ele terminar a bendita faculdade.
- É. – sorriu de volta. – Vai acabar você vai ver.
Ficaram alguns minutos
em silêncio. Os olhos de Mai perdidos no chão. Os de Chiharu passeando pelo quarto da amiga, pelas paredes vermelhas, pelas fotos ao redor do espelho e pelos livros super grossos, mas sem realmente vê-los. Pensava num modo de tirar a escorpiana da cama para que ela não ficasse pensando naquele assunto.
- E se... – assustou-se, porém, quando ela recomeçou antes que pudesse impedir. – E se ela estiver fazendo de propósito?
- Ahn? Como assim? – Chiharu franziu as sobrancelhas feitas. – Você mesma disse a mim e à Fuu que ela não tinha nada com isso e que você não ia fazer nada com ela...
- E eu não vou fazer! – defendeu-se. – Só estou levantando a possibilidade de... Você sabe... Ela estar gostando dele e estar tentando seduzi-lo...

- Pode até ser... Mas agora que ela sabe que ele tem namorada, ela vai deixá-lo em paz, pense assim!
- Eu gostaria Chi... – murmurou com os olhos perdidos no chão. – Mas tenho medo... Tenho medo de ele já estar encantado por ela... – abriu um sorrisinho amargo. – Você sabe... Ela é toda perfeitinha... Inteligente, esforçada, bonita, toda adorável... Isso sem falar que é madura, responsável, confiante e que com certeza ganhou a admiração do Ashido com aquela história de ser médica, descobrir curas e salvar o mundo...
- Mai-chan, não fale assim! – Chiharu pediu genuinamente sentida. – E quanto a você? Você também é linda, inteligente, adorável...
- Não, Chiharu! – ela quase berrou, com a voz começando a tremular. – Eu sou uma farsa! Não sou confiante, não me esforço pelo que eu quero e muito menos tenho um objetivo nobre na vida!
- Mas... Mas... – encolheu-se levando uma unha feita à boca, quase a roendo. – Pelo menos todos acham que é!
Soltou o ar com força. Agarrou-se mais aos travesseiros. Apertou-os contra seu peito com a maior força que pôde. Como se fosse ele... Como se não quisesse deixá-lo escapar... Ou quem sabe como se fosse seu orgulho que doía tanto, já a beira das lágrimas?
- Mai-chan... – tentou de novo afastando o dedo da boca e olhando a amiga tentando não demonstrar o quão apertado seu coração estava. – Você conquistou o Ashido. Ele gosta de você pelo que é. Ele também te admira. Todo mundo tem seus pontos fortes. Mas também têm seus fracos... E ela também tem os pontos fracos dela... E você sabe que ele te ama mesmo com seus defeitos...
Pontos fracos e fortes... Realmente, não tinha pensado nisso... Para ela, em seu íntimo, não importava o quanto fosse respeitada. Não importava o quanto todos a admirassem. Porque sabia que não era nada daquilo. Que aquele queixo sempre erguido era uma capa. Que aquele andar confiante era mentiroso. Que a maioria dos amigos que tinha não sabiam nada sobre ela e ela queria que nunca soubessem... No fundo sempre achou que podia ser mais.

Sempre quis ser mais. E sempre pareceu como tal...
Mas realmente não era. E tinha tanto medo de ser o que era... O que considerava tão... Diferente. Talvez vergonhoso...
Mas Chiharu estava certa. Todas as pessoas têm pontos fortes e fracos. E aquela que parecia ser tão perfeita e estar roubando seu amor tão naturalmente tinha coisas ruins... Coisas que desencantam, coisas que poderiam derrubá-la também.
- Você tem razão, Chi. – secou os olhos com força. – Ela não pode ser melhor que eu nem que ninguém. Não vou deixar que ela me supere assim. – sentou-se finalmente na cama, ajeitando os cabelos longos.
- Isso, Mai-chan! – a moreninha sorriu bem mais leve. – É isso!
- Mas, por favor... Não conte para ninguém sobre o que aconteceu aqui, certo? É segredo. Tudo sobre essa crise é segredo. – levou o dedo indicador aos lábios e os olhos profundamente sérios aos da amiga.
- Sempre, Mai-chan. – a jovem assentiu com a cabeça. – Pode deixar. – encostou o dedo indicador aos lábios também como se ali selassem então aquele segredo.

*****
- Co-como é que é!? – Ichigo ficou vermelho. Muito vermelho. Que porcaria de pergunta era aquela? Uma pergunta tão superficial e tão... Tão...!
“Nervoso, nervoso. O participante está nervoso”. – ecoou uma vozinha irritante pela sala fazendo os dois girarem as cabeças assustados. Parecia a voz de um robozinho estereotipado.
- Uau! – Rukia continuava sustentando aquele sorrisinho maldoso. – Então foi isso que o Celeste-sama quis dizer com “sentimentos à mostra”. Sensacional. – balançava a cabeça e segurava o queixo aprovando.
- Como assim sensacional!? Isso é porque você não foi interrogada! – berrou com as bochechas ferventes.
- Vamos logo, então! Responda e me interrogue! Anda, seja homem! – desafiou.
O rosto do ruivo estava todo contorcido. Poucas vezes havia se sentido tão embaraçado. Mas não tinha jeito, tinha que ir
em frente... Aquela baixinha petulante... Ia lhe pagar...

- Ahn... – olhou para o lado com o rosto ainda numa careta cômica, as mãos passeando pela nuca, bagunçando os cabelos. – Não é verdade... – disse baixinho, esperando que ela não entendesse. – Quer dizer, sabe como é... Ah! Você não é feia, é... Você é... É mais ou menos...
“Meia-verdade. Uma chance para o participante!” – veio a vozinha de novo.
- Ah, mas que merda! – berrou agora olhando para a garota que tapava mordia o lábio inferior tentando conter o riso. – Você é bonita, ta?! – virou de novo o rosto e quase arrancou os cabelos da nuca. – Ah, que inferno!
“Afirmação verdadeira!” – a voz disse em tom alegre de aprovação e uma musiquinha de vitória ecoou pela sala.
Rukia ainda ficou observando o garoto se recuperar. O rosto ainda estava todo rosado, coitado. Era tímido de doer, não conseguia nem disfarçar... Mas porque é que estava sentindo aquilo no peito? Por que é que estava com os lábios repuxados, num sorriso, quase gargalhando ali, de uma coisa tão... Simples? Por que é que só de olhar as caretas daquele ruivo, uma onda agradável lhe percorria o corpo, como se lhe tirasse um peso e lhe fizesse sentir mais leve? E porque é que estava ali sorrindo e satisfeita só porque ele tinha dito que ela era bonita? Não. Não era nada disso, claro que não. Estava nervosa apenas, era a adrenalina! Afinal, ele podia se vingar dela naquele momento!
- Certo. – ele disse mais para si mesmo, pensativo, olhando para o carpete. – Então, Rukia... Por que é que você se importa tanto se eu te acho bonita ou não, hein? – sorriu agora se sentindo mais superior.
E na mesma hora o sorrisinho dela desapareceu, sem mesmo o ruivo ter a chance de apreciá-lo, ou até mesmo notá-lo. Foi a vez dela de corar.
- Hmm... Eu...
“Confusa confusa! A participante está confusa!” – de novo, o alerta!

- Ahh, cala a boca! – Rukia berrou com a voz invisível. – Eu não sei. – não conseguia encará-lo. – Eu, eu... – cerrou os punhos e pensou com força. – Hum... Nenhuma mulher gosta de ser chamada de feia. – levantou as sobrancelhas vitoriosa.
“Bela saída!”
Olharam de novo para o alto, como se pudessem identificar de quem era a voz. Além de detectora de sentimentos era abusada! Tinha dedo de alguém nessa história...
- Hunf! Desgraçada... – Ichigo resmungou baixinho batendo o punho no ar.
- Minha vez de novo! – Rukia remexeu-se animada. – Bem... – diminuiu os olhos para ele assustando-o. – Agora você vai me dizer por que é que você não gosta da Mai... – cruzou os braços à espera.
O coração deu uma estocada violenta no peito. Depois disso começou a bater feito louco. Tentava mentalmente acalmar todo aquele turbilhão em seu peito, mas era
em vão. Era uma das perguntas que mais temia. E sabia que não tinha saída ali naquela prisão de exibição.
“O participante está prestes a ter um ataque cardíaco!” – a vozinha parecia espantada num tom irônico. Com certeza o dono dela não era uma máquina.
- Droga! – Ichigo enterrou a mão nos cabelos e começou a mexê-la nervosamente. Não encarava a capricorniana, mantinha os olhos apertadamente fechados e os dentes trincados. – Você tinha que perguntar isso!
- Só me resta esperar a resposta agora... – Rukia sorria sem dó, fingindo examinar uma unha distraidamente.
- Certo certo. – o ruivo murmurou sem escolhas. Respirou fundo até encher o peito. Quando conseguiu, levantou a cabeça e rugiu: - Eu me recuso a responder!
A pequena de olhos azuis encarou-o estupefata. Como ele podia simplesmente se recusar a responder a melhor das suas perguntas?
- Ei! Você não pode se recusar a responder uma pergunta minha! – advertiu indignadíssima.
- Mas é claro que posso! – ele retrucou naquele tom engraçado de pirraça, o rosto todo crispado. – Não sou obrigado a falar nada pra uma estranha como você!
- Ah! – abriu a boca ofendida.

“Desafio! O participante pede por um desafio!” – a voz misteriosa cantarolou.
- Ótimo então. – a baixinha levantou-se séria. – Se é um desafio que você quer, é um desafio que você vai ter!

*****

- Volte quando quiser Hinamori-kun. – o homem parado no batente da porta sorria tão docemente que a menina teve vontade de voltar naquele mesmo momento.
- O-obrigada, Aizen-sensei... – mas contentou-se em abaixar a cabeça e dizer com o rosto corado.
- Espero te ver amanhã na aula. – ele disse já com um pé dentro de casa.
- C-com certeza verá. – ela sorriu apertando com força os cadernos contra o peito. O espiava com os olhinhos subindo e descendo de volta hesitantes. Fez uma pequena reverência e foi caminhando pelo pequeno jardim que a levaria até o portão aberto da casa. A brisa foi espalhando o cheiro de flores que mal podia identificar... Estava tão absorta naquele outro aroma, naquela imagem que, mesmo estando a apenas alguns passos atrás de si, já não saía de sua mente...
- Hinamori-kun! – a voz invadiu seus ouvidos recém-curados. Parou mas ainda hesitou um pouco para ter certeza de que não era apenas seu pensamento. – Hinamori-kun! – ele insistiu. Era real. Virou-se devagar, tentando não parecer tão trêmula e ansiosa. – Não quer que... Eu a acompanhe até em casa? Já anoiteceu... – ele perguntou agora com o rosto mais sério, as sobrancelhas ligeiramente franzidas, aquela mesma cara que fazia quando pedia à turma que estudasse mais porque as notas não estavam muito boas... Uma expressão gentilmente preocupada.
Sem saber que era possível, o coração disparou ainda mais. Um sorrisinho involuntário estampou-se em seus lábios e antes que pudesse pensar nas conseqüências estava dizendo:
- Se não for muito incômodo, eu gostaria, sensei... – nem queria pensar no quanto suas bochechas estavam vermelhas.

*****


Caminhava pela sala amarelada com os dedos em volta do queixo, pensativa. Aquilo estava fazendo o ruivo surtar!

Ela estava demorando demais elaborando um desafio, não queria nem ouvir o que seu cérebro tinha a dizer sobre aquilo!
- Tempo esgotado, Rukia! – disse sem conseguir esconder o medo. – Já estou esperando há vinte anos, anda com isso logo! Ou você está fazendo hora para acabar a tarefa e eu não poder me vingar de você, hein? Hein? Vamos, admita!
- Ahh! – ela soltou um grunhido irritado. – Tá bom, ta bom, você venceu. Não sou boa com esses joguinhos imbecis. Aonde é que eu estive quando brincaram disso no colegial, meu Deus? – perguntava-se enquanto se dirigia àquela caixinha menor, onde poderia sortear um desafio e deixar a criatividade guardada seja lá onde ela estivesse.
- Certamente estava num curso de como ser a pessoa mais irritante com menos tamanho ou algo assim. – o espetadinho debochou sentindo o sangue correr menos tensamente.
- Há, há, há! Seu senso de humor me engasga de rir! – ela fingiu uma risada e em seguida lançou um olhar congelado ao seu parceiro de jogo. Pegou enfim a pequena caixa e enfiou a mão lá dentro, remexendo-a até encontrar um papelzinho que sua intuição mandasse retirar. – Queria saber onde você estava quando seus amigos foram ao cabeleireiro. Essa questão é melhor que a anterior. – tirou finalmente o papel. Desdobrou-o cuidadosamente e fez uma pausa para lê-lo. Pôde ouvir o ruivo resmungar alguma coisa que não compreendeu. Menos ainda quando conseguiu absorver o que estava escrito... Não... Não podia ser...
- Ru-Rukia? O que aconteceu? – Ichigo imediatamente parou de arengar sobre sua situação capilar quando percebeu a expressão dela. – Seus olhos ficaram maiores que sua cabeça!
Nem teve forças para replicar aquela alfinetada idiota. Só ficou ali, encarando o papel como se ele de repente tivesse criado vida.
- I-Ichigo... – ela subiu os olhos do papel para ele quase roboticamente. – Eu te desafio a... Roubar um beijo meu.
Arregalou os olhos quase os tornando maiores que sua cabeça também. Agora podia entender a reação dela.

Agora podia dar razão ao seu coração totalmente sem freio no peito. Agora não podia dar razão de jeito nenhum àquele jogo estúpido, ao Celeste-sama estúpido e a esse lance estúpido de almas gêmeas!
- Co-como assim!? – gaguejou atordoado. Tinha entendido muito bem, mas de algum modo precisava ter certeza.
- Se não o fizer vamos ficar presos aqui! – ela explicou com a voz chegando aos agudos. Gotinhas de suor começavam a se formar em sua nuca, tamanho o nervosismo que sentia. O ar parecia estar dando adeus e sumindo para bem longe onde seus pulmões não poderiam mais alcançar. –Argh! Você tinha que não responder a porcaria da pergunta?! Deus, isso é tão injusto! – bateu o pé e olhou para o teto amarelo vazio. Não encontraria respostas ali. Até aquela voz intrometida tinha emudecido.
Ficaram algum tempo calados em seus pensamentos, consultando seus sentimentos, olhando mais fundo dentro de si. Aquilo não podia ter cabimento! Eles mal se conheciam! Eles mal podiam estabelecer uma conversa normal, parecia impossível que fossem carinhosos um com o outro... Como poderiam forçar-se a fazer uma coisa tão... Tão...?! E tão de repente?
Mas não tinha jeito, não é? Entraram nessa porque quiseram. Esperou tanto... Tinham que agüentar as conseqüências. Mesmo que fossem tão absurdas, ficariam entre eles e nada de mal poderia acontecer...
E afinal... Aqueles lábios finos e delicados que tanto queria ver sorrir estavam destinados a ele, não estavam...?
- Okay então! – Ichigo levantou-se de súbito com os punhos cerrados, com o peito cheio de uma vontade resignada. – Vamos fazer isso logo e acabar com essa palhaçada.
Foi se aproximando dela com o coração o fazendo ter certeza de que, naqueles vinte passos de distância a que ela se encontrava, estava enfrentando terremotos e furacões que o queriam derrubar de qualquer maneira. Nunca precisou fazer tanta força para levantar e firmar os pés no chão continuamente... Uma tarefa tão simples que chamava comumente de caminhar... Parecia agora uma missão impossível.

E ela estava ali parada, estática. Encarando aquele rosto que agora estava tão vermelho quanto Marte pintado na parede. Contraindo-se toda. Tremendo. Com o coração na garganta, as sobrancelhas apertadas, os olhos acrescidos. Parecia estar presenciando um monstro que vinha para estraçalhar-lhe. E ele estava a dez passos, oito, sete... Instintivamente recuou com dois atrás. E ele avançou, faltava muito pouco. Um quase podia ouvir o ritmo cardíaco do outro. E ela continuou recuando, agora levando as mãos que ainda seguravam aquele maldito papel na frente do peito, uma apertando a outra.
Quando deram por si, estavam naquele joguinho de avança e recua interminável. A cada dois passos que ele avançava na direção dela, ela fazia questão de recuar três. O medo e a coragem. Quem seria quem?
Até que, irritando-se, ele aumentou o tamanho da passada. E ela, para seu total espanto, começou a correr.
- Ei! – com os olhos quase soltos de suas órbitas ele a observava. – Rukia! O que está fazendo? – sem saber por que, estava correndo atrás dela.
- Eu não posso fazer isso! – respondeu sentindo-se ridícula, uma tola, mas não podia evitar. Era um passo grande demais para que seu ritmo permitisse.
- Não seja idiota! – ele berrou resmungão. – Como se eu quisesse tanto assim te beijar! – contrariamente ao que dizia, ia correndo cada vez mais velozmente atrás dela.
- Então não corra atrás de mim! – apertou os olhos e continuou correndo, agora dobrando o canto da sala, começando um círculo.
- Mas é a tarefa, droga! Precisamos fazer isso! Pare agora! Pare, Rukia! – estava apavorado com a rapidez daquela coisinha tão pequena. Parecia que o coelho de sua camiseta a estava dando uma super agilidade. Ou era ele mesmo que estava nervoso demais para usar a sua total...
- Seu desafio é roubar o beijo, Ichigo! – ela gritou sentindo-se esquentar. – E eu não vou facilitar!
Continuou correndo, correndo. Passou pelas constelações da parede, começando a ofegar e sentir calor. Estava quase a alcançando...

Ela tropeçou numa almofada, sua chance, pensou. Mas desistiu de se sentir vitorioso quando viu a mesma almofada beijando sua face.
- Ahh! – quase caiu pra trás tamanha a força que a dita cuja fora arremessada em seu nariz. – Sua idiota, que truque sujo!
- Hahaha! – ela riu do efeito que havia provocado e da cara miserável dele. – Bobão! – mostrou-lhe a língua e continuou correndo.
Ela tinha rido... Rido de verdade! Curtamente, mas de verdade!
Pareciam agora crianças brincando de pega-pega... Parecia mesmo uma menininha de doze anos levando aquilo tudo muito a sério. As mechas de cabelo soltas voando levemente ao redor do rosto e a saia se movimentando nas pernas... O rosto infantil numa careta pela primeira vez não irônica, mas divertida... E o rubor nas bochechas tornando-as mais salientes, iluminando o rosto puro...
Não se sabe dizer se sorriu. Mas de repente o peito encheu-se de mais oxigênio e as pernas ganharam a agilidade maior que tanto queria, os dedos pareciam mexer-se involuntariamente para alcançá-la... Uma sensação irracional tão calmante e excitante ao mesmo tempo... Tão misteriosa... Como se as estrelas e planetas naquela parede não estivessem apenas pintados... Como se realmente estivessem exercendo alguma força sobre eles...
Agora já tinham dado uma volta completa, estavam próximos às caixas novamente.
- Há, agora eu te pego! – como se tivesse se esquecido do objetivo daquela corrida, comemorava estar tão perto dela. Estendeu a mão para agarrar o ombro da menina que continuava fazendo esforço embora a derrota já fosse quase certa. – Peguei! – segurou então finalmente o ombro dela forçando-a a virar-se.
- Nãão! – ela gritou desequilibrando-se e apoiando-se nas caixas atrás de si. – Droga... – ofegava com o rosto graciosamente rosado. Alguns poucos fios de seu cabelo grudados ao rosto por causa do suor. – Você... Me alcançou... – foi dizendo perdendo a noção e o controle do que aconteceria enquanto tentava respirar melhor ali, entre as caixas e seu possível par.

- Rukia... – estava mais corado que ela, tanto pelo exercício quanto pelo sangue que corria mais que os dois juntos correram por aquela sala. – Eu... Eu tenho que... – ofegava também, a respiração ventilando o rosto da pequena. – Eu... – encarava-a naqueles imensos olhos azuis e começava de novo com aquela sensação de total confusão.
Como se finalmente se lembrasse do que aconteceria, os olhos cresceram e a respiração entrou em guerra com a do ruivo. Agitou-se tentando fugir novamente, mas ele segurou seu braço contra a pilha de caixas.
- Rukia eu... Nós temos... – murmurou baixinho descendo com dificuldade os olhos dos dela para a pequena boca entreaberta. Sentiu a resistência do bracinho fino dela. Tentava fugir de novo, tinha uma expressão meio congelada no rosto, assustada. Segurou-a mais firmemente. Era a obrigação? Era a resignação? Era a vontade de acabar logo com aquela tarefa? Era a vontade escondida de beijar aquele sorriso? Ou eram aquelas estrelas, aquele céu mágico controlando-o sem que pudesse desviar?
Não sabia responder. Só sabia que não queria deixá-la ir de novo. Segurou seu outro braço e aproximou o rosto devagar, concentrando os olhos em seu foco. Ela fazia força, mas continuava parada. Também encarava os lábios que se aproximavam dos seus. Não conseguia fechar os olhos. Não conseguia dizer por que sentia tanto medo, por que as pernas fraquejavam tanto por causa daquele ar quente que soprava quase dentro de sua boca...
“Fim do desafio! Fim do desafio! Voltemos às perguntas!” – de repente, naquele silêncio, a voz sumida voltou empurrando os dois para longe um do outro.
- Ahn? – o ruivo ainda estava abobado, olhando agora para o vazio. – Mas... Mas a tarefa não...
Espremeu-se por entre o pequeno espaço que havia entre Ichigo e as caixas e conseguiu livrar-se daquele beco sem saída. Nunca pensou que fosse encontrar tanto ar numa sala fechada.

- Vamos, Ichigo, faça sua próxima pergunta! – foi voltando para a roda de almofadas e sentando-se sobre as pernas. – Você perde tempo demais!
Ainda ficou parado ali algum tempo, tentando entender o que havia se passado. Ela estava ali segundos atrás, diante dos seus olhos, o cheiro doce o intoxicando, os lábios rosados o abduzindo... E agora, num piscar de olhos, tinha voado como um anjo traiçoeiro... A culpa era sua ou da simples brisa que podia tirá-la dali? Ou quem sabe assim mesmo a culpa fosse sua, que tinha permitido que a brisa a levasse?
- Er... Hum... – estava totalmente aparvalhado, bagunçando os cabelos. – Certo... – foi aproximando-se devagar e voltando a sentar-se de frente para ela. Ele não tinha cumprido a tarefa afinal! Que porcaria Celeste-sama estava tramando? – Rukia, você... – hesitou por um momento, voltando a coordenar o cérebro. - Por que... Por que você é tão estranha? – perguntou a primeira coisa que lhe veio à mente. Realmente gostaria de saber como alguém podia ser tão segura e ao mesmo tempo parecer com uma criança assustada, como podia ser por vezes tão fria e com um simples riso parecer mil vezes mais doce... Como podia ter mexido com ele daquele jeito tão irritante e estranho...
- O quê?! – mas ela não interpretou dessa maneira. Aliás, dava para interpretar? – Eu não sei, eu não sou estranha! – fechou a cara novamente, voltando a ser o que era antes. – E você? Por que é tão grosseiro?
- E-eu não sou grosseiro! – alarmou-se. – Você me entendeu mal, eu...
- Por acaso seus pais lhe treinaram para brigar com todo mundo e fazer essa cara de azedo o tempo todo? – tentou imitar a costumeira careta de rabugento dele de modo irônico e engraçado, fazendo inclusive os olhos ficarem vesgos.
- Não! – berrou agora ficando com raiva de novo. Voltando também ao que era antes. – E por que é que você ta fazendo essa careta estranha?
- Porque estou te imitando seu burro! – cruzou os braços e espichou o queixo. – Você não se olha no espelho não?

- Me olho sim! Mas por que você tava envesgando os olhos?! – trovejou irado.
- Porque você é vesgo, oras!
- Eu não sou vesgo! – sentiu-se insultado. – Sua... Sua formiga!
- Ei! Por que formiga? – contraiu o rosto.
- Porque é minúscula, chata e cabeçuda!
Trincou os dentes irritada.
- Há! Eu sabia! Você odeia os animais! Foi por isso que quase atropelou aquele gatinho hoje?
- Claro que não! Eu quase atropelei o bicho por que você ficou falando no meu ouvido! E você é o que? Trabalha no Greenpeace por acaso? Só porque veste uma camiseta de coelho já ta se achando a protetora dos animais!
- O que Greenpeace tem a ver, seu idiota? E o que você tem contra esse coelho afinal?!
- Nada. Eu só acho que você é muito velha pra usar roupas desse tipo... Já parece uma criancinha...
- Ah, eu pareço uma criancinha? E você que parece um velho? E quem você pensa que é pra dar palpite nas minhas roupas?
- Alguém que por acaso está saindo com você e não quer passar como pedófilo! E por que é que você saiu da porcaria da cidade que você nasceu pra vir atormentar minha vida? Te expulsaram de lá, foi?
- Claro que não, imbecil! Eu vim para ser mais independente, ao contrário do bebê chorão aqui! – apontou acusadoramente para ele.
- Eu não sou bebê chorão! Por que é que está me chamando assim?
- Ohh, eu sou muito dependente, tadinho de mim, não sei me virar sozinho... Uma das coisas que gostaria de aprender é a virar homem e não depender dos outros... Mimimi! – forjou uma vozinha chorosa imitando o canceriano a partir do que leu na ficha dele, alguns dias atrás, quando tudo começou. - Quem será que mencionou coisas assim, hein? – pôs os dedos no queixo fingindo pensar profundamente.
- Grr... – ele comprimiu os lábios furioso. – E por que é que você parece uma amarga mal amada que não acredita em nada nem em ninguém e acha que o destino só coloca as pessoas juntas por interesses, hein?
Depois de perguntar como um jorro incontrolável arregalou os olhos espantado consigo mesmo. Não devia ter feito aquela pergunta idiota.

Soou como se... Como se fosse uma personagem melosa de um shoujo idiota daqueles que sua irmã adorava.
Não. Como Shakespeare. É. Melhor pensar assim.
Após se auto-afirmar percebeu que ela não retrucara com nenhuma resposta malcriada. Ficara quieta, o rosto plácido, quase como se aquela gritaria toda fosse fruto de sua imaginação.
- Estava... Na minha vez de perguntar... – desviou os olhos do dele. O tom havia mudado radicalmente. Agora estava tão calmo que assustava mais que aquele exaltado. Parecia triste.
- Sim... – a voz dele então mudou também. – Respondendo sua pergunta, fui eu quem mencionou aquilo sobre dependência... – admitiu abaixando o rosto, sentindo-se pouco orgulhoso da afirmação. – Agora é sua vez.
Suspirou e levantou os olhos devagar para ele. Tinha uma melancolia líquida naquele azul.
- A experiência que eu tive me levou a crer nisso. – respondeu enfim.
- Mas... Não acha que... Não acha que é cedo demais para tirar essas conclusões? – perguntou com a voz não muito alta nem muito clara e bastante hesitante, mas no fundo, encorajadora.
“Fim da tarefa! Fim da tarefa! Parabéns aos participantes tão honestos!” . – a voz do além proferiu sua última frase.
Ficaram novamente olhando para o nada, interrompidos. Até ouvirem passos aproximando-se e a porta abrindo-se, revelando o homem de chinelos de madeira, roupa verde, leque e chapéu.
- E então, crianças? Se divertiram? – exibiu um sorrisinho quando fechou o leque.
Entreolharam-se ressentidos um com o outro e ao mesmo tempo cúmplices. Permaneceram calados.
- Ótimo. – o loiro assentiu com a cabeça. – Percebo que agora sabem muito mais um sobre o outro, não? – quase ria, foi a impressão que seus lábios deram.
Entreolharam-se novamente sem saber o que dizer. Como alunos pegos de surpresa pelo professor numa pergunta que não faziam idéia de como responder por estarem distraídos com coisas menos importantes durante a aula.

- Bem... Já que rolaram muitos segredos aqui entre vocês e sequer podem abrir a boca, eu os dispenso para casa. – abriu o leque novamente e abanou-se com força, fazendo os cabelos na altura do pescoço esvoaçarem. – Fiquem de olho nas cartas!
Levantaram-se então e foram dirigindo-se às escadas com o mestre logo atrás. Subiram lado a lado, sérios e pensativos.
- Parece que... Só perdemos nosso tempo, não é? – ela murmurou para o jovem.
Como era irritante! Nunca iam dar certo, mesmo!
- Não venha me acusar disso! – devolveu.
- Não estou acusando. – disse. – Nós dois somos uns tolos!
Ela não sentiu aquele momento? Nem um pouco do que se passou nas respirações unidas, nos rostos tão próximos, no seu toque?
Ele havia mesmo construído uma barreira naquele coração... Queria saber como... Queria saber por quê.
“Mas... Não acha que... Não acha que é cedo demais para tirar essas conclusões?”
A frase começou a ecoar de repente em sua cabeça com uma imagem trocada... Com a imagem daquele Ichigo que conheceu tão de perto... E que pôde perceber, tinha olhos realmente doces e solitários... Parecia uma resposta para sua última afirmação que deixara no ar quando faltavam poucos degraus para que saíssem do subterrâneo. Uma resposta que a contrariava... Uma resposta que, petulantemente a fazia pensar no que não devia.
- Até mais então, meus jovens! – Celeste-sama acenava alegremente quando os dois já estavam fora da loja, debaixo daquele céu escuro pontilhado. – Foi um prazer recebê-los.
- Até! – Rukia acenou juntamente de Ichigo.
Entraram no carro. O ruivo ligou-o e manobrou-o pondo-se a caminho da estrada. Olhou para ela quando já estava dirigindo. Com o cinto de segurança posto, alisava a saia em cima das pernas, parecendo distraída.
- Ué? Não vai me vigiar dirigindo? – perguntou estranhando.
- Não precisa. – respondeu olhando de volta para ele. – Aprovo totalmente seu modo de dirigir. – balançou a cabeça confirmando a frase e voltou a olhar para a saia, tirando um fio de cabelo.

Franziu as sobrancelhas de volta à estrada e conteve um risinho incrédulo. Não foi daquela vez, mas ainda ia descobrir por que ela era assim tão... Estranha.

Continua...


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