Céu escrita por Liminne


Capítulo 52
Capítulo 42 - Abalo à confiança [quebrando o elo]




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Ainda tremendo incontrolavelmente, Ichigo acomodou a prima em seu quarto. Tinha medo de que alguém chegasse ali e pudesse vê-la antes que ela explicasse tudo, então nem pensou duas vezes em levá-la para cima. Colocou as malas que ela carregava num canto, pediu que ela se sentasse em sua cama e ficasse à vontade e foi buscar um pouco de chá. Tanto para recebê-la quando para acalmar a si mesmo.

- Bem... – ele deu o chá a ela, quase derramando tudo por causa da instabilidade das mãos. – Acho que agora podemos conversar. – respirou fundo tentando não entrar em pânico. Mas um mau pressentimento estava latejando em seu peito.

- Er... – ela ficou meio sem graça, mas continuava sorrindo com o copo na mão. – Eu preciso te explicar o que aconteceu. – sinalizou com a cabeça para a barriga. – Eu... Engravidei.

- É, claro! – ele não conseguiu disfarçar o tom áspero de seu nervosismo. – Isso é bem óbvio!

Ela não se deixou abalar pela impaciência dele. Suspirou e continuou sorrindo.

- Da última vez que nos vimos foi em fevereiro, certo? – ela o olhava parecendo bem descontraída para aquela situação. – Então por isso você deve estar morrendo de medo assim. – encolheu um risinho nos lábios. – Mas sabe Itsugo... Não dá pra engravidar com... Bem... Aquilo. – soltou o riso deixando o canceriano furioso e quase roxo de vergonha.

- Nell! Sua... – ele cerrou os dentes e o punho para ela. Mas a verdade é que sentiu um pequeno alívio. É. Pequeno. Seu coração ainda era sensível e o mau pressentimento não havia ido embora. – Então me diz logo o que aconteceu de verdade. E porque você veio de mala e cuia! – continuava com aquela expressão irritada e embaraçada. Mal conseguia olhar naqueles olhos divertidos.

- Eu engravidei em março, quando eu voltei pra casa. – ela disse, agora ficando mais séria e perdendo os olhos nas mãos. – Antes de eu vir nas férias de inverno pra cá, eu estava envolvida com um cara... Mas nosso relacionamento era meio estranho sabe? Eu fugia dele. E ele gostava claramente de mim, mas não admitia de jeito nenhum. Só ficava tentando parecer melhor que eu. Competia comigo o tempo todo. Queria sair por cima de qualquer maneira... – naquele momento ela pareceu até um pouco triste. – E então em fevereiro eu pedi para minha mãe para vir pra cá um pouco. Estava querendo fugir dele, entender o que eu mesma estava sentindo com aquilo. Eu não queria gostar dele, mas... Acho que aconteceu. – ela ergueu o rosto novamente para ele num novo sorrisinho infantil. – E aí acabou que deu nisso! – pôs a mão na barriga.

O ruivo ficou alguns segundos paralisado de choque.

Ela era mesmo da sua família? Como ela podia ser assim tão imprudente? Impulsiva? Inconseqüente? Não... Nenhuma dessas palavras era o bastante.

- SUA MALUCA! – ele conseguiu gritar depois de um tempo. – Você não tem um pingo de juízo?!

- Hahahaha! – ao invés de levar a briga a sério, como boa sagitariana, ela desatou a rir do escândalo do primo. – Você que é certinho demais, Itsugo!

Ele segurou-se para não dar outro grito.

- Okay... – ele inspirou fundo tentando se acalmar. Mas as palavras saíam duras e pesadas com sua expiração. – Agora você vai me dizer o porquê das malas.

Ela encolheu os ombros e lançou para ele seu olhar mais doce e conquistador.

- É que... Eu vou precisar de um grande favor do meu priminho favorito...

Era dali que vinha aquele sentimento ruim que ele estava sentindo.

- Que favor? – ele perguntou devagar e cautelosamente, como se pudesse evitar o perigo daquele jeito.

- É que... – ela olhou para as malas como se elas pudessem ajudá-la. – O pai do meu filho... Bem... Ele meio que... Er... Não quis assumir a criança.

Não.

- E você sabe... – ela continuou rodando os olhos pra lá e pra cá. – Minha mãe também é mãe solteira... E se tem uma coisa que ela nunca perdoaria na vida, essa coisa seria a filha seguir os mesmos passos que ela.

Não. Não. Não.

- Ela não sabe que eu estou grávida. Ela trabalha muito, só nos vemos de manhã e eu comprei muitas roupas largas e casacos pra esconder a barriga.

Alguém tinha que acordá-lo daquele pesadelo iminente!

- Mas uma hora não vai ser possível esconder. – ela sorria como se estivesse contando o que comeu de sobremesa depois do almoço. – E eu disse pra minha mãe que ia morar com você para procurar uma faculdade por aqui e...

- CHEGA! – Ichigo gritou exasperado. – CHEGA DE ENROLAR, NELIEL! FALE AGORA! O QUE VOCÊ QUER QUE EU FAÇA?!

Ele iria morrer sufocado se não explodisse.

Ela se assustou um pouco. Mas se ele insistia tanto que jogasse a bomba de uma vez, resolveu não mais fazer rodeios:

- Eu quero que você finja que é o pai do meu filho até meu plano para o verdadeiro pai assumi-lo se concretizar. – disse e espichou o queixo para encará-lo com dignidade.

O ruivo que havia se levantado exaltado, voltara a desabar na cama. Não estava acreditando. Suas pernas tremiam. Sua cabeça latejava. Parecia que o quarto estava girando, girando... Parecia que seu mundo estava virando de cabeça pra baixo... E tudo ia desmoronar!

- Itsugo... Eu sei que vai ser meio chato... – ela colocou a mão na perna dele solidariamente. – Mas no final tudo vai ser uma grande pegadinha! A única coisa que você tem que fazer é dizer pro seu pai e pra quem mais perguntar que o bebê que estou esperando é seu. E arcar com a responsabilidade de me hospedar aqui como mãe do seu filho. Mas depois que tudo se resolver e o pai verdadeiro assumir a criança, a gente vai rir da cara de besta dos enganados! – sorriu tentando convencê-lo.

- E... E que plano é esse que você armou para o pai assumir o filho? Me diz que esse plano é infalível. – a voz dele estava fraca. Muito fraca. Como se estivessem lhe sugando a esperança.

- Se eu ignorá-lo, sei que ele vai vir atrás de mim. – ela disse como se aquilo fosse a prova mais concreta imaginável, como se não estivesse entendendo a intensidade do desespero do primo.

Silêncio. A tontura que ele estava sentindo o impedia de pensar em pensar.

- Se minha mãe descobrir que estou nessa situação, ela vai querer que eu tire o bebê. – apertou as mãos em volta da barriga como se fosse um instinto protetor. – ‘Ou tira o bebê ou sai de casa’. Vai ser algo assim. – sorriu palidamente para ele. – E eu não quero isso. Eu fiz o filho e eu vou tê-lo! E se você não quiser me ajudar, eu vou pra fora de casa. Eu faço qualquer coisa, só não abandono o meu bebê. – apertou as sobrancelhas determinada. - E então, Itsugo? – ela inclinou-se e olhou para o rosto perdido dele. – Você pode me ajudar?

Ele demorou a olhar de volta. Mas quando captou aqueles olhos ele podia ver aquela garotinha ingênua e atrevida que ela sempre fora. Ele a considerava demais. E sabia que ela faria de tudo para ajudá-lo também, em qualquer situação que se encontrasse. E o que mais poderia fazer, afinal? Deixar que a mãe dela a expulsasse de casa sem nada, sozinha, com uma barriga daquele tamanho e uma criança inocente por vir?

- É claro que sim, Nell. – ele respondeu. – Eu vou te ajudar.

- Ah! – os olhos castanhos dela brilharam como uma constelação. - Eu te amo Itsugo! Te amo! Te amo! Te amo! – ela o agarrou com ternura e gratidão transbordantes.

 

****

 

Era de tardinha quando Ichigo ouviu os passos lá fora. As vozes. O barulho da porta da frente se abrindo. Seu pai e suas irmãs estavam chegando! De repente ficou surdo por causa das batidas loucas do coração.

Passara o dia todo com Nell no quarto, conversando sobre o bebê. Descobrira que se tratava de uma menina e que a prima ainda não tinha se decidido totalmente sobre o nome. Almoçaram na rua e depois voltaram para casa. E o ruivo não parava de roer as unhas.

Mas tinha chegado. Finalmente tinha chegado a hora da verdade. Ou uma delas.

- Nell. – Ichigo olhou mais sério que nunca para ela. – Vamos.

Ela fez que sim com a cabeça e levantou-se. Ichigo pegou no pulso dela e foi levando-a até a sala.

- Cuidado com esses biquínis, Yuzu! – Isshin falava com a filha loira em tom de advertência exagerada. – Já te falei que com um menor um milimetrozinho sequer que esse você não passa mais dessa porta! – olhou para Karin e apontou o dedo. – E VOCÊ! Cuide da sua irmã por mim! Ela ainda não entende as malícias do mundo!

- Pai, deixa de ser retardado. – ela retrucou sem mudar a expressão.

De repente os três pararam. Ouviram passos na escada.

- Ahhh filhããão! – Isshin foi correndo ao encontro do filho. – Como passou o dia sozinho? A Tsuki-chan veio para cozinhar pra... – deu de cara com Nell. – Você...?!

- Oi tsio! – Nell cumprimentou sorridente. – Há quanto tempo não nos vemos!

Ouvindo aquela voz familiar, as irmãs Kurosaki entreolharam-se arqueando as sobrancelhas. Em seguida correram para ter certeza de quem se tratava.

- Neliel! – exclamaram em uníssono, muito surpresas.

Os olhares caíram todos para a barriga grande da jovem de cabelos verdes.

- Nell-chan, meu bem... – Isshin sorria sem ação. – Você não engoliu uma melancia, né?

Ichigo revirou os olhos e respirou fundo.

- Será que a gente pode sentar na sala para conversar sobre isso? – disse tão sério e tão amargo que fez todos se encolherem um pouco.

- C-claro. – Isshin concordou. – Vamos lá. – o sorriso não tinha um pingo de brilho.

 

****

 

- E então... A Nell engravidou e... E veio pra cá me dizer. – Ichigo terminou de contar a história. Em nenhum momento conseguiu olhar para nenhum dos três nos olhos.

Choque. Todos estavam chocados, congelados. Nem piscavam os olhos. Só olhavam para os culpados, de um para o outro, num silêncio sepulcral.

E aquilo estava matando o ruivo aos poucos. Dolorosamente.

- Não vão dizer nada?! – Ichigo resolveu instigar com o tom mais mal humorado que havia usado nos últimos meses. Mas aquele foi um grito de defesa, de necessidade.

- B-bem... – Isshin forçou-se.

Naquele momento o canceriano tomou consciência do erro que cometeu ao erguer o rosto para puxar uma resposta de alguém. Porque seu olhar acabou dando de cara com o olhar do pai. O que mais temia.

- Eu... – Isshin respirou e segurou-se nas próprias pernas com um sorriso estranho, desacreditado. – Uau! – balançou a cabeça. – Por essa eu realmente não esperava.

O coração de Ichigo ficou do tamanho de uma sementinha. Por mais frágil e patético que parecesse, ele sentiu uma vontade imensa de chorar. Então ia ser assim? A decepção ia ficar estampada assim na cara daquele velho barbudo ridículo? Ele não ia nem fazer uma piadinha?!

Os olhos castanhos melancólicos voltaram a perder-se no chão.

- Então, nós temos que conversar com a sua mãe, né? – Isshin dirigiu os olhos opacos para Nell, contente de ter conseguido dizer uma frase madura e com sentido.

- N-não! – ela balançou as mãos desesperada. – Não faça isso, tsio Isshin! Por favor! Ela acha que eu vim pra cá ver uma faculdade. Eu tenho disfarçado a gravidez o tempo todo. Eu estou com medo da reação dela...

- Eu quero um tempinho para me acostumar a isso. – Ichigo interveio em socorro da prima. – A responsabilidade é minha, pai. – encarou mais uma vez o homem tentando parecer o mais sério e firme possível. - Então... Então a gente vai falar com a sua mãe quando você estiver pronta. – disse para a sagitariana. – Enquanto isso vamos cuidar do que devemos cuidar.

Isshin pensou um pouco, estupefato. Depois balançou a cabeça concordando. Pelo menos o filho sabia como tomar uma postura. Mas... No fundo queria mandar a postura dele para o quinto dos infernos! O que adiantava ter postura se não tinha um pingo de juízo? De todas as decepções que o filho podia lhe dar esperou qualquer uma menos aquela. 

Olhou mais uma vez para o rosto do jovem. Aquilo era mentira não era? Ele sempre fora um frouxo, não tinha como engravidar uma mulher. Não tinha como!

Mas Ichigo estava tão triste e decepcionado consigo mesmo... Aquele olhar irritante de resignação. Podia quase tocar a tristeza que estava emitindo com os olhos.

Era isso. Por mais que quisesse, não podia se enganar. Ele era pai. Talvez não o melhor pai do mundo. Mas jamais ia abandonar um filho. Jamais ia rejeitar seu garoto por maior que fosse a besteira que ele fizesse. Tinha que aceitar e encarar os fatos. Sabia que aqueles dois viviam se agarrando pelos cantos quando Nell aparecia de visita. O filho era um idiota, um bebezão, tímido e um emo. Mas ainda era homem. Não adiantava nada mentir para si mesmo.

- Então! – Isshin levantou-se num pulo do sofá tentando inspirar energia. Mas seus movimentos pareciam muito falsos, assim como o tom de voz. – Temos que arrumar um canto para você, Nell-chan. – foi caminhando até ela com um sorrisinho. – E pra você, meu netinho!
- É netinha. – Nell sorriu de volta.

- Ah, mais uma menina pra regular o tamanho do biquíni! – ele fingiu-se de desanimado.

- Papai! – Yuzu resmungou sentindo a alfinetada.

- Venham dar um oi pra sobrinha de vocês, suas mal educadas! – o homem chamou as filhas que ainda estavam grudadas no sofá.

As duas entreolharam-se mais uma vez e foram sem jeito até Nell. Acabaram também tocando sua barriga e brincando com o bebê. Apesar de tudo ter sido um choque, e o irmão ter surpreendentemente se mostrado um mau exemplo, não ia ser ruim ter uma criancinha Kurosaki correndo por aí. No fim todos fizeram festinha para a menininha que viria por aí e deram os parabéns aos ‘futuros pais’.

 

****

 

Já era tarde da noite e o ruivo recém saído do banho subia para o quarto, com uma toalha no pescoço e vestido com seus pijamas. 

- Ichigo. – porém foi abordado no meio do caminho pela voz do pai.

Tentou não parecer tão abalado.

- O que é? – virou-se para ele simulando indiferença.

O homem o alcançou na escada e olhou para ele.

- Como você está se sentindo? – perguntou tão sério que o fez ter vontade de sair correndo.

- Estou... Estou bem. – disse. Não havia pensado na possibilidade daquela pergunta.

Silêncio.

- Ficou decepcionado, pai? – ele resolveu perguntar. Assim se defenderia dele.

- Ichigo! – ele ralhou. – Eu vou ser avô! Eu sempre quis ser avô! – ele sorriu todo bobo.

O canceriano sabia que aquele sorriso era verdadeiro.

- Então está tudo bem. – Ichigo disse fazendo menção de continuar o caminho para o quarto. – Eu estou bem, você está feliz... Boa noite.

Mas Isshin não deixou que o filho se fosse. Segurou-o pelo ombro, obrigando-o a recuar.

- Filho... E a Tsuki-chan? – perguntou com as sobrancelhas levemente abaixadas e os olhos tão líquidos que o ruivo temeu que ele fosse chorar.

Mas tinha um temor pior que aquele: que ele mesmo chorasse afetado por aquela pergunta maldita.

- A Tsuki... – sentiu o choro subindo pela garganta. Mas o engoliu com força, mesmo que aquilo só aumentasse a sensação fria e fervente no seu peito. – A Tsuki nunca foi minha.

A mão de Isshin no ombro do filho perdeu a força. Ele abaixou a cabeça.

- Você tem razão Ichigo... – levantou o rosto mais uma vez e aquele líquido que havia em seu olhar parecia ter se misturado com alguma coisa mais quente. – Eu estou mesmo decepcionado.

O mundo de Ichigo definitivamente tinha virado de cabeça pra baixo. Segurou-se no corrimão para não cair de cabeça. Mas era questão de tempo para que a gravidade o puxasse para baixo. Estava tudo acabado.

- Boa noite. – Isshin disse e subiu os próximos degraus na frente do filho.

O ruivo só conseguiu desgrudar do corrimão quando ouviu a porta lá do fundo do corredor batendo. E subiu o restante da escada com a visão embaçada, sem entender bem porque aquilo só estava acontecendo agora.

Quando entrou em seu quarto, Nell estava acomodada em sua cama. Suas irmãs tinham arrumado para ele dormir no chão.

- Itsugo... Se fizer questão da sua cama a gente pode dormir juntos. – a garota de cabelos verdes disse assim que ele deu as caras.

Não estava para as investidas dela. Nem de brincadeira.

- Dispenso. – disse indo para sua caminha no chão.

- A mal humorada devia ser eu já que estou grávida! – ela riu sem se sentir muito atingida. – Mas você não muda mesmo, seu cara de bunda!

Ele deu um meio sorriso para ela e acomodou-se.

- Ei, Itsugo! – ela foi para a beiradinha da cama para mexer com ele. – Amanhã podemos sair para comprar roupinhas pra bebê? Eu não vou fazer você gastar, eu economizei meu dinheiro, então não se preocupe!

- Tudo bem. Pode ser. – ele virou-se de costas pra ela.

Ele estava triste?

- Itsugo... – a voz dela ficou mais melosa.

- Que é? – ele resmungou.

- Olha pra mim... – parecia estar prestes a chorar.

Ele virou-se.

- Muito obrigada por tudo. – ela sorriu com um brilho contagiante nos olhos. – Vou ficar te devendo essa. Pode cobrar quando quiser.

Ele não conseguiu ficar tão carrancudo. Ela parecia mais bonita agora que estava grávida.

- Certo. Vou cobrar. – sorriu de novo para ela. – Agora vamos dormir para ter disposição para as compras de amanhã, okay?

- Okay! – ela riu toda feliz. – Bons sonhos, Itsugo!
- Bons sonhos Nell... Bons sonhos priminha sem nome.

 

****

 

No dia seguinte, Rukia encarou Tóquio e respirou fundo. Por algum motivo misterioso, já se sentia melhor. Sentia-se em terra firme. Não teria que lidar com aquele sentimento na sua frente de novo. Mas... E o peito?

Ela sabia exatamente o que fazer. Seu coração galopava agitado. Tentava fazer com que ele voltasse ao normal. Mas no fundo não sabia se queria abandonar aquela sensação. Ela agora lhe dava segurança.

Chegou à república. Recebeu as boas-vindas de Shunsui e Nanao e entrou no elevador. Girou a maçaneta da porta das meninas. Não encontrou ninguém.

- Elas não podiam adivinhar que eu chegaria hoje. – disse para si mesma como se estivesse se consolando.

Largou então as malas no quarto e desceu o elevador. Saiu da república. O destino sabia o que fazia, afinal. Poderia ver o quanto antes aquele rosto para apagar qualquer insegurança de seu campo de visão. É. Era só ver aquela careta mais uma vez, sentir aquele aroma cítrico e tocar aquele fluxo de cumplicidade que corria entre os dois. Sentir-se completa de novo. Era só disso que precisava.

O seu maior erro foi não ter prestado a mínima atenção no Céu enquanto caminhava...

Algum tempo depois chegou naquela rua. Mais um pouco e avistou aquela casa com a clínica na frente. Sorriu quase sem perceber.

Quando ia se aproximar da porta, sem ligar se teria que representar alguma personagem, de repente a viu abrir.

E dela saíram o ruivo e uma linda mulher de cabelos verdes presos num rabo-de-cavalo, ar jovial, com o corpo todo bem avantajado num vestidinho azul claro de alcinhas estampado com florzinhas cor-de-rosa nas pontas. Mas o que mais chamou a atenção da capricorniana foi o modo como ela estava agarrada no braço de Ichigo e... O tamanho da barriga dela!

O ruivo então olhou para frente e deu de cara com aqueles olhos enormes azuis. Ela parecia ter sido pintada ali naquele momento. Parecia imóvel. Repentina. E mais linda do que nunca.

O tempo parecia ter sido congelado por alguns segundos para os dois. Ficaram se olhando como se fossem bizarros aos olhos um do outro. Como se aquele momento fosse de vidro. Como se não fosse possível ela ter brotado ali do nada. Como se não tivesse lhe ocorrido que ia se deparar com uma situação dessas. Só podiam ouvir as batidas descompassadas e totalmente loucas do coração um do outro naquele silêncio petrificado.

- Oi! – Nell cumprimentou Rukia com um sorriso grande e simpático.

Quebrou o vidro em mil pedaços.

- Ru-Rukia... – Ichigo murmurou quase inaudivelmente o nome que rodava mil vezes por segundo em sua cabeça naquele instante. – O-o que... O que você...? – a tentativa de pergunta saiu sufocada, mas ela pôde entender.

Pelo choque no rosto dele, tinha realmente alguma coisa. Ele não parecia [i] feliz [/i] em vê-la.

Aí ela começou a sentir as mudanças no Céu.

- E-eu vim... Eu vim para... – ‘Eu vim para te ver’. Como poderia dizer isso naquela hora?

- Ahh! – Nell largou o braço de Ichigo e estendeu a mão. – Você deve estar tímida com a minha presença. Me desculpa a falta de educação. – riu. – Meu nome é Neliel, prazer!

Rukia apertou a mão dela. Neliel... Neliel! Então era a prima de Ichigo! Era isso! Era só isso!

- Ukitake Rukia. – a baixinha se apresentou. – O prazer é meu. – até conseguiu sorrir um pouco.

Mas Ichigo sentia muito mais calor do que o verão provocava. Suava, respirava com dificuldade, tinha vontade de se agarrar em alguma coisa para não cair.

Neliel estudou Rukia por uns segundos. Era tão pequenininha aquela mão. Ela era tão bonita, tão delicada e com olhos tão grandes e expressivos. Observou o cabelo negro dividido em duas trancinhas e as bochechas tão branquinhas e fofas. Estava vestida com uma saia vermelha de duas camadas estampada com coraçõezinhos brancos, combinando com a faixa que tinha amarrada na cintura da tomara-que-caia branca. Os pezinhos nas sapatilhas eram minúsculos. O corpinho era tão frágil, ela parecia uma boneca cuidadosamente moldada.

Já dava para imaginar quem seria.

- Desculpe Rukia-chan... – disse com um olhar verdadeiramente chateado. – Mas estamos de saída agora. – riu para aquele Ichigo paralisado. – Nós vamos comprar roupinhas para o nosso bebê agora! – os olhos faiscaram de animação.

O quê? [i] Nosso [/i] bebê?

Bebê de Neliel e de... E de Ichigo?

Olhou com os olhos surpreendentemente muito maiores para o ruivo, mas ele desviou o rosto um segundo depois. Ela percebeu que ele puxava o ar até com a boca. Estava difícil respirar.

- ... Mas você pode entrar e ficar à vontade. A Karin-chan e a Yuzu-chan, não sei qual das duas está procurando, estão lá dentro. Ei, Itsugo! – cutucou o primo. – Diz pra ela que ela pode ficar à vontade! Que garoto mais mal educado! – revirou os olhos conspirando com Rukia.

A pequena tinha sorte de saber como representar. Mas mesmo assim, nunca pensou que teria tanta dificuldade para abrir um sorriso.

- Obrigada. – ela disse. – Podem ir sossegados eu... Eu vou entrar logo.

- Então ta. – Nell sorriu luminosamente. – Tchau, Rukia-chan! Nos vemos por aí! – e foi arrastando Ichigo.

Ele olhou para trás. Viu aquela figura perfeita, a sua alma gêmea, parada enquanto ele andava. A aura melancólica que a envolvia. As dúvidas pairando sobre ela. A fé e a esperança acumuladas com tanta dificuldade evaporando-se com o calor do Sol.

Sua boca muda e incompetente não pôde dizer nada. Seus olhos covardes não puderam se justificar. E agora a estava assistindo se desfocar à medida que avançava. Se desfocar até desaparecer... Como se tudo não tivesse passado de uma ilusão.

 

****

 

Acabou. Tudo acabou. Foi andando devagar de volta à república. Em pleno verão sentiu um frio incrível. Como se um pedaço tivesse sido arrancado de si. Como se a luz calorosa que iluminava seu coração tivesse se apagado. Sentia-se desprotegida no meio de toda aquela gente que passava pela rua. Era como se estivesse caminhando no ar. Sem chão. Sem teto. Sem paredes. A qualquer hora poderia se desequilibrar, cair. Não tinha onde se segurar mais. Não tinha onde se apoiar. Não sentia mais a segurança embaixo dos pés. E ao olhar pra cima e ver aquele céu azul tão brilhante, só conseguia praguejar. Cínico. Falso. Mentiroso. Estava rindo da sua cara agora, não era?

Cada batida do seu coração fazia seu corpo todo doer. Conforme ia andando, deixava tantas coisas para trás. Tantos tesouros que colecionara. Descobrira que nenhum deles era verdadeiro. Nenhum deles tinha valor. A fé. A esperança. O calor. A confiança. Os elos. O amor. Tudo não passara de um brilho falso que sempre atraía os fracos e idiotas. E ela fora uma fraca. Uma idiota. Nunca se perdoaria por ter caído naquela armadilha. Ela sempre soube que era uma armadilha. Aquele brilho a cegou como fazia com todos. Como foi que se deslumbrou? Quando foi? Como foi que trocou o juízo por todas aquelas enganações?

Foi só dar as costas por algumas semanas. Foi só dar as costas para que aparecesse a prima grávida, agarrada ao seu braço. Bastou chegar de surpresa para ver naqueles olhos a culpa e o desespero de ser flagrado. Aquela garota nem sabia quem ela era! Como se ela nunca tivesse existido. Como se todas aquelas palavras e olhares tivessem sido a mais pura falsidade.

Na porta da república, olhou para o bracelete. Celeste-sama tinha errado. Quem ele pensava que era afinal? Era bem a cara dele mesmo brincar com o sentimento e as ilusões alheias. Por que foi que não desconfiou?

Seu objetivo do começo era o certo. Agora aquela nuvem tinha saído de seus olhos e ela podia enxergar.

Entrou no elevador e passou a mão nos olhos úmidos. Não ia deixar nenhuma lágrima sair dali. Não mesmo. Odiava o fracasso. Odiava ficar caída no chão. E estivera todo esse tempo bancando a deslumbrada. Isso já não era um fracasso? Então havia acabado ali.

Reconstituiu a parede de gelo em seu coração e seguiu em frente. Ninguém mais a veria derreter. Ninguém mais.

 

****

 

Estavam agora na praça de alimentação do shopping. As várias sacolas estavam embaixo da mesa onde Nell devorava um sorvete gigante.

- Tem certeza que não quer, Itsugo? – ela ofereceu a colher toda babada que tinha acabado de enfiar na boca.

Ele fez que não com a cabeça.

- Não sabe o que ta perdendo! – ela disse com a boca cheia depois de mais uma colherada.

- Tsc. Você não muda mesmo. – Ichigo ficou irritado com o sorvete escorrendo pelo queixo dela e limpou-o com um guardanapo.

- Isso é porque meu nariz não começou a escorrer com o gelado! – ela riu mostrando a língua pra ele.

- Ah! – ele revirou os olhos e cruzou os braços.

- Itsugo... – ela espremeu os olhos para fitá-lo. – Você parece triste hoje. Está viajando aí com essa cara de dor de barriga.

Ele olhou irritado pra ela.

- Eu não dormi direito, só isso. – disse desviando o olhar.

- Mentira! Você roncou à beça de noite.

- NÃO ME CONFUNDA COM VOCÊ! – ele gritou.

Ela ficou rindo.

- É sério, Itsugo... Tem alguma coisa te perturbando? Algo que eu possa ajudar? – pensou um pouco. – Ou sou eu que estou te trazendo problemas?! – arregalou os olhos apavorada com a idéia.

Ele olhou para ela. Abriu a boca. Quase deixou sair. Mas segurou.

- É só... A faculdade. As férias não foram suficientes para descansar... – mentiu enquanto mexia no guardanapo.

Ela ficou olhando para ele com as sobrancelhas apertadas tristemente.

- Ah, Itsugo... Ao invés de ficar preocupado com isso curta seus últimos dias de férias. – sorriu toda alegre. – Vamos, pede um sorvetão desses pra você! Vai te animar rapidinho!
Ele suspirou.

- Obrigado Nell. Mas eu só quero voltar pra casa.

- Tudo bem. – ela devorou em dois minutos o resto do sorvete. – Agora a gente pode... Cof! Cof! Cof! – engasgou-se.

- Nell! Não precisava fazer isso! – ele foi até ela e começou a bater de leve nas suas costas.

- Arrgh! Gelado! Gelado! – ela começou a gritar em meios às tossidas.

Criança! Estava atraindo todos os olhares. Ela não mudava mesmo!

Não podia jogar sua frustração em cima dela. A amava. Só podia culpar a si mesmo. O covarde de si mesmo.

 

****

 

A semana passou e a volta à faculdade chegou. Os opostos teriam que se encarar de novo. Era inevitável. Ainda estavam debaixo do mesmo Céu.

Rukia chegou mais cedo dessa vez e encontrou a sala com poucas pessoas. Dentre elas o ruivo. Mas não se sentou perto dele.

Ele engoliu em seco e afundou a cabeça nas mãos.

A aula foi passando e Ichigo não notou nem qual dos professores estava na sala. Só alternava respirar e observar a mulher do outro lado da sala. A pequenina de cabelos presos, de blusa verde listrada e saia preta. Aquela de olhos grandes e atentos.

Por outro lado, Rukia parecia mais dedicada que nunca. Fazia anotações freneticamente. Não olhou sequer uma vez para o lado. E na hora do intervalo ficou para tirar dúvidas com o professor.

O canceriano ficou na porta esperando pacientemente que ela terminasse.

- Obrigada professor. – Rukia agradeceu e fechou o caderno. Colocou-o em sua mesa e o ruivo ouviu o barulho das sapatilhas dela batendo no chão cada vez mais próximo.

Ela o viu encostado na parede quando alcançou o corredor. Mas tratou de desviar o mais rápido que pôde os olhos e continuou seguindo em frente.

Ichigo não teve escolha que não segui-la.

- E-e en-então? – ele tentou, desesperado. Sabia que ia gaguejar cada vez mais, mas precisava falar com ela. Nunca precisara de algo com tanta urgência. – O que vai querer pro almoço hoje?

Ela olhou-o com uma frieza indescritível e depois virou o rosto.

- Eu... Eu te fiz uma pergunta. – ele insistiu idiotamente. Qualquer coisa. Só precisava que ela dissesse qualquer coisa.

Ela parou. E o coração dele exultou de alegria.

- Eu quero pro almoço... Humm... Deixe-me ver... Que tal ficar sozinha? – levantou as sobrancelhas com uma cara irônica e continuou andando, dessa vez mais rápido.

- Rukia! – ele não ia suportar aquilo. Agarrou o braço dela.

Ela olhou para trás furiosa. O gelo dos olhos dela estava queimando. E aquele gesto matou a fala do ruivo.

Mas ele não precisava falar. Seus olhos melosos e abandonados gritavam por ele.

- Você... – ele fez o maior esforço para dizer algo, por mais idiota que fosse. Não podia desistir ali. – Você vai almoçar comigo hoje, não vai? – apertava a mão em torno do braço dela. Mas mesmo que a estivesse deixando vermelha com a força, ele era a fragilidade encarnada naquele momento. Mesmo que ali não houvesse sombra de lágrimas, ele estava claramente chorando. Estava implorando. Como uma criancinha carente. Como sempre.

E mesmo que ela não quisesse, mesmo que ela lutasse contra com todas as suas forças, aquele olhar tinha passagem direta por dentro do gelo. E atingia sempre seu coração.

- Não Ichigo... – ela disse temendo derreter na mão dele. – Eu não vou.

Ele continuou sugando-a com os olhos.

- Rukia... – disse baixinho. – Rukia nós... Nós ainda... – não sabia direito onde queria chegar. Mas ele era assim. Sempre se deixava liderar pelo coração.

Ela sacudiu o braço e ele soltou-a. Ela virou de frente para ele e encarou-o.

- Está tudo bem, Ichigo. – ela falou. – Nós ainda vamos continuar. – levantou o braço onde se encontrava o bracelete para ele. – Vou dar o melhor de mim para que a gente acabe com isso logo. Não quero atrapalhar a sua vida. E não quero que você atrapalhe a minha.

Aquilo o despedaçou. Nunca poderia dizer em quantos pedaços. Nem sabia mais se eram pedaços. Eram minúsculos.

- Rukia! – agora ele sentiu que podia chorar. Tentou controlar-se. – Você não sabe o que aconteceu! Você não sabe! – começou a se exaltar.

Ela riu com escárnio.

- Eu sei sim, Ichigo. Estava bem óbvio. – suspirou mantendo sua pose indiferente. – Você vai ter uma família agora. E devia cuidar dela. Foi o que você mais prezou sempre. – fez uma pausa. – Eu não sou uma louca ciumenta. Não vou dar ataque nenhum. Não precisa ter medo. Nós não éramos nada mesmo. – balançou os ombros. – Vamos continuar o programa do Infernal-sama, mas eu sei agora das suas prioridades. E é isso. Não precisa ficar com essa cara patética apavorada.

Os olhos dele tremeram insistentes em fitá-la. Os punhos dele estavam cerrados do lado do corpo. Ele abria e fechava a boca como se algo quisesse sair, mas acabasse por sempre perder a força. Ela entrou em desespero mesmo que não demonstrasse. E aquele sentimento confortante e traiçoeiro conseguiu se infiltrar de novo em seu coração.

- Você... Tem alguma coisa para me dizer, Ichigo? – a voz ficou subitamente mais suave.

O que estava acontecendo? Estava sucumbindo de novo? Porque estava olhando naqueles olhos? Aquilo era mais uma armadilha!

- Eu... – ele tentou. Fez um esforço gigantesco. A cabeça até doeu. Mas nada saía daquela boca. Nada.

Afinal, o que ele queria que saísse? Qualquer coisa que ele dissesse pareceria tão falso.

Nell disse ‘Nosso bebê’. E estava agarrada ao braço dele. E Rukia sabia que ela havia sido a única mulher na vida dele. Naquele momento a confiança tinha sido abalada. E agora ela não acreditaria em nada do que dissesse.

É. Ela nunca acreditou mesmo. Suas ações foram provando pouco a pouco para aquela mulher tão difícil o quanto ela podia se entregar, confiar. E foram as suas próprias ações que destruíram aquela entrega e aquela confiança. O seu silêncio. Seus olhos desesperados. Sua passividade. Seu medo. Sua bondade e ao mesmo tempo maldade. Esqueceu-se de si mesmo. Mas esqueceu-se que com ele não havia só ele. Havia ela. Faziam parte do mesmo elo. E ele deixou que ela se machucasse.

- Eu sabia que não. – ela disse comprimindo os lábios e meneando a cabeça. Por dentro gritava para o coração parar de doer tanto. Nunca odiou tanto o silêncio em toda a sua vida. – A gente se esbarra, Ichigo. – e saiu andando o mais depressa que pôde.

A esperança ainda estava teimosa em tê-la de volta. Mas ela não queria mais. Só a machucava. Só a enganava. Só a maltratava.

Ichigo voltou para a sala de aula. Pegou suas coisas e foi embora para casa.

 

Continua...

 


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