Olhos De Sangue escrita por Monique Góes


Capítulo 37
Capítulo 36 - Sacrifício


Notas iniciais do capítulo

Sim, capítulo duplo em um dia!
Chorei horrores para fazer este capítulo, mas, no fim, eu gostaria que vocês gostassem... Mas acho que é mais fácil vocês quererem minha cabeça após terminarem de ler mais do que tudo...
Pois bem, leiam o capítulo escutando as seguintes músicas, à escolha de vocês:
My Immortal - Evanescence
Forever Yours - Nightwish
Guren - The GazettE
Last Song - Gackt
Espero que gostem.



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          Cheiro de chocolate.

          Pela primeira vez eu o achava enjoativo.

          Porém, tal pensamento foi desviado de minha mente por outra coisa. Uma coisa insuportável. Dor. Uma dor que revirava minhas entranhas, a dor dilacerava-me por dentro, a ponto de que eu não mais sentisse nada de minha cintura para baixo. Conseguia sentir, estava agonizando, minha vontade era de gritar, de por toda a dor que sentia para fora. Mesmo com meus olhos fechadas, a dor transformava a escuridão em vermelho.

          - Deuses, esse ferimento foi muito feio. – Alma murmurou, em algum lugar extremamente próximo de mim, e comecei a sentir uma ardência começar a aumentar dentre a dor. Mas era uma ardência boa. Apaziguava a dor que eu sentia. – É praticamente um milagre que ele tenha sobrevivido!  

         Percebi que minha cabeça estava apoiada em algo. Talvez o colo de alguém, mas como eu não ousava a abrir os olhos, não tinha certeza. Estava alarmado do modo que conseguia com outra coisa, minha atenção forçando-se a desviar-se de minha dor dilacerante – a qual eu tinha certeza de que já estava começando a sentir minhas pernas. – em direção à Aura de chocolate a qual descontrolava-se, mas ao mesmo tempo parecia haver um mínimo controle nela. Hideo... O que você fez?! Por favor, não tenha feito alguma besteira, por favor...

         Sentia algo quente cobrindo meu queixo, minha boca preenchida pelo gosto salgado e amargo de sangue. A selvageria roçando-se cada vez mais contra minha mente de modo alarmante, dando-me mais certeza de que Hideo fizera alguma besteira, e agora ela estava descontrolada.

         - Se acalme!

         - Já chega, volte!

         Eu já tinha uma vaga ideia do que estava ocorrendo.

         - Como você percebeu que ele ainda estava vivo? – Raquel perguntou, e percebi que provavelmente minha cabeça estava apoiada em seu colo. Em outros momentos, eu provavelmente ficaria constrangido, mas sequer me importei agora. Essa parecia a menor das coisas comparadas ao que ocorria ao meu redor.

         - Acabei percebendo que seu coração ainda batia, então mandei Larry pegá-lo antes que aquela luta o matasse de vez. – Alma explicou. – Mas é difícil curar esse ferimento, sendo ele do tipo não regenerativo, e ao fato de que sua pele, músculos, vísceras e coluna foram completamente danificados... – Um suspiro pesado escapou de seus pulmões. – A coluna vertebral foi rompida, mas já consegui regenerá-la, mas está difícil fazer isso com apenas minha força. Nesses casos, eu manipulo a Aura da pessoa para que ela se cure por si mesma. Mas ainda assim, a Aura do Yudai é deveras grande por motivos óbvios. Para mim, é simplesmente complicado controlar tanto poder!

         Raquel exclamou algo, mas a ardência em meu abdômen aumentou a ponto que me obrigasse a gemer de dor e minhas mãos fecharam-se com força, fincando-se na neve. Aquilo doía ainda mais, estava insuportável, mas eu tinha de me manter firme, meu corpo gritando contra a dor.

         - Ele vai sentir uma dor insuportável quando acordar, já que estou regenerando os órgãos e os músculos, mas vai demorar. – avisou. – Talvez sua coluna nunca mais seja a mesma.

         - Mas você não a regenerou? – Raquel perguntou.

         - Claro que sim.

         Minha mente pareceu ser repuxada ainda mais pela selvageria que começava a apossar-se daquele lado que era e ao mesmo tempo não era meu. Hideo, Hideo, o que você fez?! O que você está fazendo?! Minha vontade era de levantar num salto e ir socorrê-lo imediatamente, mas simplesmente não estava em condições. Experimentei tentar movimentar os dedos de meus pés, somente para ter certeza, e consegui senti-los. A ardência em meu abdômen aumentou, e em vez de apazigua-la, apenas intensificou a dor. Um grunhido dolorido escapou de meus lábios ao mesmo tempo em que escutava o vento assobiar furiosamente.

         Entreabri meus olhos com esforço, querendo mantê-los fechados com todas as minhas forças, mas forcei-os a encarar o céu escuro acima de mim. Confirmei que realmente estava com minha cabeça pousada no colo de Raquel e que Alma estava do meu outro lado, as mãos estendidas sobre meu abdômen, o suor escorrendo-lhe pelo rosto devido ao esforço. As duas olharam para mim no exato momento em que abri meus olhos.

         - Hid... Hideo... – comecei a falar com dificuldade. – O que ele...

         - Fique calmo aí, eu... – Alma começou, mas a impedi de continuar.

         Ignorando as palavras de Alma, sentei-me com esforço, quase me arrependendo logo depois. O mundo girou, minha visão encheu-se de pontos vermelhos, tornando-se ligeiramente escurecida e enevoada. Eu sentia que queria voltar para o torpor da inconsciência, mas não permiti-me a tal coisa. Algo me dizia que ainda não poderia me render aquela sensação. Pelo menos não antes de fazer uma coisa. Senti o sangue escorrendo por meu abdômen com tal abundância que eu sabia que ficaria assustado.

         - Espera! Eu ainda nem terminei de curar os órgãos!

         Forcei minhas pernas a se flexionarem para que eu pudesse então levantar, mas Raquel segurou meus ombros, impedindo-me de levantar, como se quisesse que eu voltasse a pousar minha cabeça em seu colo para que pudesse terminar de ser curado. Na verdade, eu sabia que era isso o que ela queria. Era o que eu também queria. Mas não poderia me render à vontade de pensar primeiro em mim, enquanto as coisas ainda estavam fora de controle. Conseguia escutar Hideo falando com alguém, e aquilo, para mim, era alarmante. Eu sabia que, se não agisse logo, algo iria ocorrer. Algo péssimo.

         - Espere, você tem... – Raquel começou.

         Não sei o que deu em mim naquele momento, mas agarrei-a pelo pulso direito, trazendo-a em direção ao meu corpo. E depois me permiti a fazer algo que, embora não quisesse aceitar, sabia que no fundo era o que eu queria. Meus lábios procuraram, certeiros, os dela. Com certeza não era o certo para se fazer aquele momento, e nem era o momento certo, mas assim como a sensação quanto ao torpor, algo dizia-me que era melhor fazer aquilo agora, obviamente naquele momento.

         Quando me separei, vi o misto de surpresa, vergonha e tristeza gravado em seu rosto e olhar, o meu sangue manchando ligeiramente seus lábios. Ela possivelmente entendera o que eu estava pressentindo o que estava prestes a acontecer. Com um suspiro, mais para me dar coragem, levantei, quase voltando a me sentar devido a dor, mas como tudo mais, obriguei-me a seguir em frente, meus passos incertos e doloridos, e acabei vislumbrando a cena perante mim.

         Meu irmão, semi Desperto, implorando para ser morto. Braços e pernas Despertados, estranhamente canídeos, o pelo dourado cobrindo-os, juntamente com ossos visíveis em seu sobre o pelo, seu rosto pálido coberto de sangue, a franja grudando-lhe na testa, vermelha pelo sangue, as tatuagens cobrindo o rosto e pescoço, as únicas partes humanas que estavam visíveis. Os olhos assustadoramente negros, eu via partes de sua pele se descascando. De suas costas saíam seis filamentos de músculos negros com uma espécie de lâminas de ossos na ponta de cada um, três de cada lado de suas costas, sendo o superior o ligeiramente curto, o inferior roçando levemente no chão. Sua Aura estava tão elevada que a neve recusava-se a manter-se no chão, formando uma tenra névoa ao seu redor.

          Com cada passo sendo doloroso, fui em direção à pessoa com quem Hideo falava, Larry. Era obviamente uma escolha inteligente. Ele poderia muito bem esticar somente seu braço em direção a Hideo, sem ter de aproximar-se por completo, assim, impedindo que Hideo se descontrolasse e o matasse. Larry, claramente contrariado, começou a erguer seu braço em direção a Hideo, mirando, e seu braço começou a se esticar. Porém, segurei-o pelo pulso, impedindo-o de seguir em frente, e escutei exclamações pelo fato de estar vivo.

          - Parece que agora é o oposto daquela vez, não é, Hideo? – perguntei, cuspindo sangue, referindo-me a vez que eu Despertara há cinco anos.

          Estranho... Parecia tão distante... Agora Hideo encontrava-se em apuros e eu não sabia muito o que fazer... Nunca o ajudara significativamente, mas agora precisava. Hideo já me salvara de coisas horríveis, enquanto eu jamais havia feito algo do tipo. Mas agora era quase uma necessidade. Eu precisava salvar Hideo, não poderia deixá-lo Despertar. Ele me impedira de me tornar mais um alvo da Ordem como um Despertado, portanto, eu deveria fazer o mesmo por ele, nem mesmo que... Que fosse pela minha vida. Sabia que tinha de fazer aquilo.

          - Guh... Yudai! – Hideo exclamou.

          Soltei o pulso de Larry, empurrando-o para trás, e dei um passo em direção a Hideo, e mais outro. Porém, ele percebeu minhas intenções e gritou:

          - Pare! Fique onde está! – berrou, e comecei a sentir seu medo e sua preocupação em minha mente. – Eu... Eu não vou conseguir me controlar se você se aproximar!  

          Se a intenção dele era me parar, o efeito de suas palavras foram o inverso. Aproximei-me com mais vontade e afinco, sentindo, porém, a dor detestável de meu ferimento. Eu iria ajudá-lo, querendo ou não querendo. No fundo, talvez, fosse isso, eu era o único que realmente poderia ajudá-lo naquela situação.

          - Yu, para! – gritou, e percebi algo que me deixou chocado. Ele... Ele estava chorando? Sim, haviam lágrimas escorrendo por seu rosto.

          Para! Eu... Eu não quero te machucar ainda mais, você só está nesse estado por minha culpa!

          Respirei fundo, e continuei, quebrando o espaço que havia entre nós. Hideo estava a apenas alguns passos de distância. Eu não iria parar, por mais que ele pedisse. Mesmo que ele estivesse chorando para que eu não me aproximasse, eu iria fazer isso.

          - Quando eu Despertei, implorei para que você me matasse, mas você não fez isso. – comecei a falar. – Mas você não fez o que eu pedi, então, acho que também posso fazer isso.

          - D-Daquela vez foi diferente. – soluçou. – Saia daqui, agora! V-você está cheirando demais a sangue! Eu não vou conseguir me controla...   

          Hideo não conseguiu terminar a frase. Eu já estava próximo o suficiente dele para que faltasse pouco para tocá-lo, mas claramente, seu corpo não obedeceu a seus pedidos. As lâminas de suas costas moveram-se sozinhas, e quando percebi, uma atravessou minha coxa, outra adentrou o ferimento ainda aberto de meu abdômen e uma terceira atravessou meu peito. Antes que eu conseguisse me conter, gritei diante a dor insuportável e cuspi ainda mais sangue, enquanto escutava iguais gritos dos outros que estavam assistindo a cena. Quanto sangue eu possuía em meu corpo? Por que... Eu já perdera... Bastante. Havia algo errado com aquelas lâminas. Eram quase como ferro em brasa, que fora colocado dentro de uma lareira em chamas. Queimava-me por dentro.

          - S-sai! Sai daqui! – Hideo gritou depois do choque que tivera consigo mesmo por ter me atacado.      

          Grunhi, e então respondi:  

          - Não.

          Agarrei seus ombros, e contrariando minhas próprias expectativas, icei-me ainda mais para perto de Hideo, forçando-me a aproximar-me mais, fazendo aquelas lâminas escorregarem dolorosamente por meu corpo, até que, com um som nauseantemente molhado, saíram por minhas costas. A dor era quase anestesiante, era tanta que eu praticamente não sentia mais nada, minha visão ficando cada vez mais entorpecida. Estava bêbado de dor, e sentia a dor, culpa, raiva, desespero e horror de Hideo em minha mente devido ao que ambos estávamos fazendo. Eu por ser teimoso e não acatar ao que ele dizia, ele porque, apesar de tentar esconder aquilo desesperadamente de mim devido a vergonha que as sensações do Despertar estavam lhe causando, sentia-se bem com aquilo.

          Respirei fundo, impedido um pouco pela lâmina que atravessava meu peito, então abracei seus ombros, os quais já segurava, e olhando em seus olhos, falei:

           - Vamos, volte. Você consegue.

           Hideo parecia estar chocado e raivoso demais para conseguir dizer alguma coisa, as lágrimas ainda escorrendo por seu rosto. Conseguia, assim como tudo, que ele estava assim por estar me machucando desse modo. Eu conhecia Hideo, eu sabia como ele era melhor do que ninguém. Talvez ele fosse a pessoa que mais se preocupasse comigo, portanto, o fato de estar me machucando, para ele, era imperdoável. Ele resfolegava, tentando se obrigar a não fazer algo pior, claramente ignorando o que eu dizia.

           - Vamos lá, junte sua Aura com a minha, como você fez há cinco anos. – Continuei, esboçando um fraco sorriso, contrariando toda a dor que eu sentia. – Você sabe que, juntos, nós vamos conseguir.

           - Não! Se afaste de mim! – Hideo gritou. – Use sua força para se curar, assim...!

           Aquilo caiu como um golpe para mim, muito pior do que a dor que eu sentia diante tudo. Eu recebera ferimentos graves demais, e se eu continuasse querendo fazer o que intencionava, eu sabia... Eu sabia que não haveriam muitas chances. Fechei os olhos, resignado, e quando os abri, continuei:

           - Não. – falei, determinado, e comecei a elevar minha Aura. – Como... Como se você não soubesse Hideo. Eu não sou do tipo regenerativo, um ferimento desses é demais para mim.

           Ele trincou seus dentes pontiagudos, e vi o fio de sangue escorrendo pelo canto de sua boca, e ele encolheu-se quase que imperceptivelmente, então, fechei os olhos, sentindo a ardência começar a se passar por meu corpo.

           - Eu... Eu acho que nunca fiz nada significativo para te ajudar.  – murmurei, sentindo os ferimentos doerem, minha carne contraindo-se contra as lâminas de Hideo, sentindo meu corpo aos poucos se sentir sobrecarregado com aqueles ferimentos. Mas o pior estava por vir, então, preparei-me, e segui em frente. – Então, eu quero que, ao menos agora, você deixe com que eu faça algo.    

           Abri os olhos, elevando em um solavanco minha Aura para dez por cento, elevando-a cada vez mais e mais. A neve ao nosso redor começou a girar como um imenso e confuso redemoinho, enquanto eu procurava de algum modo parear minha Aura com a Aura de Hideo, procurando-a para que então ele pudesse finalmente voltar à sua forma humana. 

           Minha cabeça doeu, meu corpo estava cada vez mais pesado. Eu estava o sobrecarregando com aquela carga, mas não me importei. Somente segui em frente. Apesar da Aura, minha visão estava cada vez mais escurecida, mas eu me forçava a procurar a Aura de Hideo.

           - Vamos Hideo, me ajude! – gritei para ele. – Junte sua Aura com a minha!

           Hideo soltou um grunhido, e comecei a sentir como se sua Aura se juntando com a minha, até que parecia que elas estavam praticamente se roçando, então aproveitei o que poderia ser minha única chance. Praticamente lancei minha Aura contra a dele, assimilando-as, para que eu pudesse então trazê-lo de volta.

           Mas não era como eu pensava. No exato momento em que minha Aura e a de Hideo se juntarem, me senti quase como se estivesse sendo levado por uma imensa corredeira. Por um segundo, me vi completamente perdido, e quando percebi, Hideo estava levando minha Aura juntamente com a sua. Trinquei os dentes, forçando-me para baixo, impedindo que um desastre, que seria nós dois Despertarmos, ocorresse. Mas era difícil. Assim como a Aura de Hideo era como se fosse uma corredeira, trazê-la de volta era quase como nadar com todas as minhas forças contra ela, ainda carregando uma rocha em minhas costas. Arrastando-me pelo fundo, indo contra a correnteza fincando meus dedos pelo cascalho do fundo do rio, cravando-me na lama, afogando-me no processo.

           Minha cabeça pendeu para o ombro de Hideo. Podia sentir os dedos frios roçando em meus ombros, convidando-me a fechar os olhos, ser levado pelo doce embalo da escuridão, onde aquela dor não mais existiria. Que eu deixasse tudo de lado e finalmente pudesse descansar.

           Para mim, que me arrastava com aquele enorme peso nas costas, era tentador demais. Convidava para que eu deixasse a enorme rocha cair e ser levada pela correnteza, para que nadasse até a superfície e finalmente respirasse. Meu coração pulsava extremamente rápido em meu peito, enquanto, pouco a pouco, penosamente, eu trazia Hideo de volta para o que ele era. Sentia-me desgastando aos poucos, todas as dores de meu corpo se fazendo presentes.

           - N-não morra agora! – Hideo gritou.

           Entreabri os olhos fracamente, e vi os diversos lampejos vermelhos descendo por meu cabelo.            

           - Você... Você passou cinco anos procurando pela Raquel, você há encontrou há pouco tempo! – continuou, as lágrimas quentes escorrendo-lhe pelo rosto, pingando de seu queixo para meu rosto. – Você... Você tem que viver...!

           Quase pude ver as cenas diante meus olhos, mas não tinham nada a ver com o que Hideo dissera. Eu... Eu estava vendo nosso pai, nossa mãe, Yume, Eleanor, com tio Damien e tia Lara, juntamente com Alec quando éramos crianças. Eu estava me lembrando. A nossa vó, costurando perto da lareira da fazenda do nosso avô, enquanto ele contava as suas lendas preferidas para quem quisesse ouvir. Minha mãe queimando a comida, o papai e Hideo escondendo a coisa queimada com dobraduras de guardanapo, enquanto Yume ria indiscretamente da cena, sabendo que eles estariam ferrados se a mamãe os pegasse. Uma tia que morava no norte vindo nos visitar, todos dizendo que achavam que ela tinha três filhos, e não dois filhos e uma filha, porém, a dita menina dizendo “mas tio, eu sou um garoto”... Qual era o seu nome...? Eu lembro que dos três, ele era o único loiro de olhos castanhos... Lembrava que eu rira muito naquele dia... Seu nome era... Nicholas? Sim, parecia que era esse seu nome. Memórias de meu tempo de humano... Eu sabia que, apesar de todas as minhas doenças, eu fora realmente feliz.

           O dia em que a Ordem nos levara, a espera dolorosamente silenciosa pela cirurgia, a dor da transformação. Quando Lúcio nos acolhera, quando eu fugi, sendo seguido por Hideo, encontrando Sophia. Sua morte, o Despertar de Lúcio...

           Eu continuava a me arrastar contra a correnteza, quase sem forças, clamando por ar, mas eu precisava continuar seguindo em frente. Meus dedos estavam machucados pelo cascalho, sangravam, a correnteza empenhando-se a todo custo, levar-me com ela, esmagar-me com sua intensidade.

           Meu silencioso aniversário de 15 anos. Nosso aniversário de 15 anos. O dia em que eu encontrei Raquel, quando encontrei Hideo, com aquela coisa negra subindo por ele, a caçada ao Despertado em que Anita nos contara que a Ordem era mais podre do que pensávamos. A ida para a Terra, a vida escolar forçada. A luta com Lionel, o que ele dissera, quando fui pego por Futoji, o ataque de Nicholas. O reencontro com Rusé... Tudo passava-se por minha mente de modo que eu não conseguia entender. Era ao mesmo tempo, incrivelmente vagaroso e incrivelmente vago. Eu sentia que aquilo era algum tipo de sinal, mas não conseguia compreende-lo...

            O treino, quando matei Nicholas. Como me tornei número 1, o que ocorrera naquela caverna, o reencontro com Raquel... Sim... Agora eu percebia...

            Minha visão estava escurecida, mal conseguia mais discernir Hideo a minha frente, apesar de senti-lo, assim como seus pensamentos. Eu já sabia o que iria ocorrer, mas eu não sentia medo.

             Não mais.

             - Sabe Hideo... Há algumas pessoas que entregaram suas vidas para mim... – um sorriso apareceu em meus lábios. Um sorriso sem medo ou culpa diante meus atos, tendo me lembrado de tudo o que ocorrera durante todo o tempo de minha vida. – Agora... Estou passando a vida deles para você...

            - Yudai! – Hideo gritou desesperado.

            -... E junto com eles, a minha.

            - Yudai!

            Quase conseguia ver uma cena à minha frente. Eu estava deitado em algum lugar. A moça daquela visão com meu pai estava olhando-me de cima, mas não como se ela fosse superior ou coisa parecida. Não... Não era ela. Seus olhos eram dourados, e seu cabelo formava cachos delicados, ao contrário da garota da visão. Ela trazia um sorriso em seu rosto, e quase conseguia sentir a doçura e o carinho que ela trazia em seu olhar. Quem era ela? Que memória era aquela? Eu não lembrava-me dela de jeito nenhum...

            Ela estendeu a mão e apertou meu nariz delicadamente, mais numa brincadeira. Eu ri, e percebi que era apenas um bebê, que estava em um berço.

            “----.” Falou um nome, o qual não consegui entender.

            A correnteza parou, parando assim com meu esforço. Percebi então que o que eu trazia em minhas costas não era uma rocha. Era o que me prendia aqui, o que não me permitia deixar este lugar. Aquilo fora retirado, mas não havia mais jeito... Meu corpo ficou a deriva, sendo levado pelas águas calmas.

            Eu havia me afogado.

            O corpo de Hideo começou a vergar para trás, levando-me juntamente com ele. Quase não via mais nada, quase não sentia mais nada, mas não sentia mais as lâminas prendendo meu corpo ao corpo de Hideo, não sentia mais sua Aura descontrolada. Não sentia mais.

            O chão coberto pela neve branca tingida de vermelho foi a última coisa que vi, antes de tudo escurecer.

            Meu tempo aqui havia acabado.      


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Notas finais do capítulo

Sim. É isso aí, uma coisa que pensei desde o começo.
Yudai está morto.
Nessa cena, eu havia cogitado primeiramente, Hideo morrer. Mas depois não. Minha decisão mudou quando eu ainda tinha 12 anos, eu estava lendo uma fic, e li um comentário como "Claro né? O personagem principal nunca morre".
Isso fez com que eu quisesse desafiar as coisas. Mudar o clichê. Por que não? Não podemos tornar os protagonistas deuses imortais, então achei interessante a perspectiva de o Yudai morrer e outra pessoa virar o protagonista.
Espero que vocês aceitem Hideo daqui em diante.
O livro Meia Alma será narrado por ele.
Críticas? Querem me matar chorar comigo? Por favor, deixem tudo nos reviews.