POV Narrador

 Annie não tinha mais cabeça para nada. Assim que terminou o treinamento trancou-se em seu chalé e ficou a encarar o teto negro pensativa.

 Pensava no passado - aquele que tanto lhe assombrava. Remexia-se na cama tentando inutilmente parar de pensar naquilo, voltar à velha fachada arrogante que escondia aquela menininha fraca e assustada que sempre foi, mas isto já não era possível. Uma vez infectada pelas lembraças, já não havia volta

 (Flashback on)

 Era apenas uma menina, oito anos, talvez. Seus cabelos negros estavam presos em um rabo de cavalo frouxo e seus olhos estavam vermelhos, provavelmente havia chorado. Chorar era algo comum na vida da garota, tanto que era sempre zombada pelo irmão gemeo, Markus. 

 Markus era todo o contrário de Annie. Forte, mimado, maldoso. Apesar de serem gemeos, tinham uma diferença: os olhos. Os olhos dela eram prateados, os dele, bicolores azul e prata.

 Alice, a mãe dos gemeos, era uma mulher bela, no entanto era dona de uma arrogancia insuportavel. Como se já não bastasse, só voltava para casa de madrugada e, na maioria das vezes, bêbada.

 O quarto da garota ficava no minúsculo sótão da casa, havia apenas uma cama velha, um espelho e um pequeno báu de roupas. Para não ser importunada pelo irmão era preciso trancar a pequena entrada com um pedaço de madeira e, mesmo assim, ainda tinha que aguentar as pedras sendo lançadas na janela; a garota não sabia se ficava brava ou se rezava pro vidro não quebrar.

  Numa manhã fria de domingo a morena foi tomar o café, preparada para ouvir a mãe gritando com alguém no telefone ou até mesmo com eles, mas não a encontrou. No começo desconfiou, até mesmo Markus estava quieto. Perguntou o que havia acontecido e ele respondeu num fio de voz "Mamãe ainda não chegou". Desesperou-se. A mãe nunca ficava fora depois de cinco da manhã. Correu até o quarto da mulher, rondou a casa inteira, mas não a encontrou. Temia pelo pior.

  Ouviu o som de passos do lado de fora da casa e animou-se. Os irmãos correram até a porta, destrancaram-a e abriram. Dois homens uniformizados os encarava de forma fria, um era alto, o outro era baixo e gordo. Perguntaram se havia alguém de maior na casa, a resposta veio do menino.

  -Não.

  Os homens se entreolharam.

  -Venham conosco. - O alto disse, dando passagem.

  -Não. - Rosnou o menino enquanto apertava a mão da irmã com força.

  -Onde está mamãe? - Sussurou a menina.

  -Argh, andem logo. Peguem suas coisas e venham! - Resmungou o gordo.

  As lagrimas rolavam pela face pálida da menina enquanto o irmão ficava vermelho de raiva.

  -Não! Saiam, saiam, deixem-nos em paz! - Gritou enquanto fechava a porta rápidamente, trancando-a. Deixou-se deslizar pela madeira até chegar ao chão, encolhendo-se e fechando os olhos com força, sem soltar a mão da irmã. Do lado de fora alguém batia na porta e pedia para abrirem-a enquanto um outro resmungava coisas como "que perda de tempo" e "crianças idiotas".

  -M-mark...? - Soluçava assustada.

  -Cale a boca. - Baixinho.

  -O que...

  -Cale a boca! - Gritou, fazendo-a se calar. Sentou-se ao lado dele, em silencio, começando a suspeitar do que havia acontecido.

   Depois de lagrimas, soluços e relutancias em arrumarem suas coisas e entrar no carro por ambas as partes, o garoto murmurou baixinho no ouvido da irmã "Ficaremos sempre juntos. Eu juro, não deixarei ninguém te machucar", tendo como resposta "Protegeremos um ao outro, para sempre. Eu te amo".

 (Flashback off)

 Remexeu-se mais uma vez na cama, enterrando o rosto no travesseiro e levantando-o novamente frustada quando notou que estava começando a se sufocar. Voltou a fitar o teto enquanto as lembranças atacavam-a.