Antes da Tempestade escrita por Goldfield


Capítulo 3
III




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III

         - Comporte-se, querida. Eu voltarei logo.

         - “Logo” quando?

         Sherry não conseguia mais acreditar nas palavras da mãe, ou então julgava interpretá-las bem diferente do que deveria. Afinal, toda vez que ela deixava a casa, após somente poucas horas de estada, costumava retornar somente dois ou três dias depois. Na escola, os colegas da menina costumavam ver com ótimos olhos tal ausência, alegando que Sherry se tornara independente mais cedo e podia fazer o que quisesse – chegando ao ponto de até mesmo invejá-la. Mas, vivendo aquele dia-a-dia, a garota de doze anos na verdade se sentia constantemente sozinha, bastante afetada pela contínua falta dos pais.

         A mãe Annette, já vestindo o jaleco de laboratório, direcionou um olhar de reprimenda à filha. Esta se preparou para ouvir um longo sermão sobre a importância do trabalho que os pais faziam na usina química da Umbrella e “blá blá blá” – mas a cientista estava tão atrasada para o expediente que até mesmo poupou Sherry do discurso. Apanhou as chaves do carro e, lançando um último olhar à filha enquanto abria a porta da residência, respondeu:

         - Depois conversamos. Seja uma boa garota, fazendo o dever de casa e o jantar. Seu pai pode voltar mais cedo hoje, ele vai querer comer. E não se esqueça de vestir-se para dormir.

         - OK... – a menina assentiu com enfado. – Boa tarde, mamãe.

         - Boa tarde, Sherry.

         A garota permaneceu junto à porta ainda por alguns instantes, só subindo a escada rumo ao seu quarto quando ouviu o motor do carro da família se distanciando. Adentrando o cômodo, encarou os trajes dispostos sobre a cama e deu um demorado suspiro...

         Que mãe ainda obrigava uma adolescente a dormir com um uniforme de marinheiro?

*  *  *

         Fato ignorado tanto pela mãe quanto pela filha, era que a morada dos Birkin vinha sendo vigiada há algum tempo por um indivíduo misterioso. Posicionado no topo do prédio de apartamentos logo em frente à casa, o homem, de vestimenta tática preta e uma arma contida no coldre à sua cintura, camuflava-se junto ao desgastado parapeito da cobertura, mantendo um binóculo constantemente direcionado à residência. Foi olhando através dele que acompanhou a trajetória do automóvel guiado por Annette até dobrar uma esquina, quase simultaneamente anotando algo num pequeno caderninho que mantinha dobrado sobre uma coxa. Logo depois, apanhou o rádio que fazia parte de seu moderno equipamento e reportou:

         - Rainha saindo. Rotina diária levemente alterada. Princesa sozinha em casa. Câmbio.

         - Entendido, “Sr. Morte”. Siga com a vigilância.

         - Certo. Câmbio, desligo.

         Encerrando a comunicação, o espião tornou a apanhar o binóculo.

*  *  *

         A valise do tenente Goldfield estava agora aberta sobre a mesinha da sala do apartamento – os papéis espalhados pelo móvel, pelos sofás e até mesmo pelo chão. Rebecca se arriscara a apanhar alguns deles para tentar lê-los; mas, afinal de contas, era uma perita em bioquímica, e não uma advogada. A terminologia legal deu-lhe náuseas logo nos primeiros parágrafos, e as poucas horas de sono contribuíram para aquele mal-estar.

         - Então... – o militar retomou a palavra, depois de alguns minutos de conversa. – A senhorita admite ter mentido em seu relatório? Deixou Billy Coen fugir após os acontecimentos da noite de 23 de julho, dando-o como morto em seu relato oficial dos eventos?

         Chambers hesitou. Apesar de pensar poder confiar naquele homem, não se sentia bem em admitir sua falta de conduta. Mesmo assim, acabou respondendo:

         - S-sim...

         Goldfield franziu as sobrancelhas.

         - A senhorita tem ciência das implicações legais dessa mentira, correto? Deixou um criminoso condenado escapar, fazendo vista grossa e contribuindo para despistá-lo perante as demais autoridades.

         Rebecca tinha ciência das tais “implicações”, mas não dava a mínima. Mesmo se colocasse sua carreira na polícia à frente de fazer o que acreditava ser certo, a unidade S.T.A.R.S. em Raccoon já fora extinta e as circunstâncias em que tal fato se dera haviam manchado sua reputação para sempre. Afinal, o próprio delegado os taxara, junto à opinião pública local, de “arruaceiros” e “drogados”. Perto disso, deixar um prisioneiro fugir – ainda que não houvesse como provar sua dita inocência – era equivalente a roubar a comida de alguém da geladeira sem falar nada.

         - Eu fiz o que fiz por aquilo em que acredito – a jovem replicou, um tanto irritada. – Billy é inocente. Ele me ajudou a escapar viva dos monstros e perigos nas Montanhas Arklay. Não teria conseguido sem ele. Se fosse mesmo um assassino sanguinário, não haveria me auxiliado ou muito menos demonstrado ser a pessoa justa e íntegra que me pareceu ser. Não poderia simplesmente entregá-lo às autoridades depois de tudo que passamos!

         - Sei disso, senhorita Chambers. E eu também acredito na inocência do senhor Coen. Afinal, fui seu defensor. Como expliquei, viajei até aqui buscando seu paradeiro para que ele mesmo ajude a limpar o próprio nome.

         A moça suspirou, passando as mãos pela face. Goldfield não aparentava mais incomodá-la, mas sim a situação.

         - Eu quero ajudar, porém não posso ser de muito proveito... – ela murmurou. – Apenas deixei Billy ir. Ignoro para onde possa ter seguido. Ele estava disposto a desaparecer, viver nas sombras...

         O tenente contraiu os lábios, indagando em seguida:

         - Ele não lhe deixou nenhuma pista de onde poderia ir? Nenhum recado, ou evidência?

         Rebecca parou para refletir por um momento... e lembrou-se que, na verdade, Billy havia lhe deixado sim algo. Levantando-se aturdida, pediu num gesto que o visitante aguardasse enquanto seguia até o quarto. Detendo-se junto ao armário, abriu uma das gavetas e constatou que o artefato ainda se encontrava nela, oculto sob algumas peças de roupa. Pegou-o e retornou à sala.

         - Aqui! – a jovem disse, estendendo o objeto ao militar antes de se sentar novamente.

         Goldfield pegou-o. Tratava-se de uma correntinha contendo um par de placas de metal, conhecidas como dogtags. Bem comuns nas Forças Armadas. Gravados nelas, o nome de “William Coen”, seu número de identificação, tipo sanguíneo... Tateou as inscrições em relevo, intrigado... Poderia haver algo mais ali?

         - Billy me deu isso quando nos despedimos... – explicou Chambers.

         Até que ele finalmente sentiu. No verso de uma das placas... uma espécie de sulco, bem leve, porém perceptível.

         Fitou seu achado.

         Inscrita com um objeto pontudo – provavelmente uma lâmina – na superfície de metal, havia uma série de algarismos enfileirados. A quantidade e disposição dos mesmos remetia claramente a um número de telefone.

         - Coen estava munido de uma faca ou punhal quando se despediram? – questionou o militar.

         - Ele usou uma faca durante toda nossa jornada... – Rebecca replicou, um brilho de esperança em seu olhar por compreender que Goldfield buscava apoio para uma evidência.

         O tenente, para alívio da jovem, sorriu, enquanto dizia, exibindo o verso riscado de uma das dogtags:

         - Geralmente é a mulher quem dá seu número de telefone ao homem após um encontro, mas neste caso a situação se inverteu completamente...

         E, enquanto uma expressão maravilhada se acentuava no semblante de Chambers, o tenente completou:

         - Ele quer que você o contate!

*  *  *

         Annette desejou que o caminho de volta ao laboratório fosse mais simples e rápido. Tinha ciência de que todos os obstáculos e desvios serviam justamente para esconder as instalações – principalmente, no caso, o trajeto secreto que as ligava ao Departamento de Polícia pelos esgotos. O lado ruim era que, da sala do chefe Irons, de onde vinha, até o elevador-plataforma rumo ao subsolo, existia uma distância consideravelmente incômoda. Ao menos os funcionários pelo caminho moviam as plataformas e giravam as válvulas necessárias para si. Se tivesse de fazer tudo sozinha, preferiria se encontrar com o chefe de polícia em pleno parque, à vista de todos, do que encarar aquela maratona fétida e metálica para entregar as mensagens de William.

         Ganhando um novo corredor iluminado por pálidas lâmpadas brancas, a cientista certificou-se, levando as mãos brevemente aos bolsos do jaleco, de que trazia as medalhas necessárias para liberar passagem até o bonde que a conduziria à fábrica abandonada. Uma peça dourada com emblema de águia e uma de prata representando um lobo. Retirara-as de seu lugar na ida, e teria de inseri-las novamente no mecanismo na volta. Procedimento padrão. Ainda que a incomodasse levar aqueles artefatos o caminho todo até o R.P.D., tinha de seguir os protocolos de segurança respaldados pelo marido. Mesmo temendo um dia perder um dos medalhões e descobrir mais tarde que ele tomara parte na excêntrica coleção de arte do chefe Irons...

         A mulher cruzou uma porta enferrujada, ganhando a sala de segurança. Apressando-se por uma plataforma, um dos homens responsáveis pela vigilância nos esgotos veio recebê-la. Enquanto ele se aproximava – um tanto trôpego, talvez devido ao álcool que ela sabia que aqueles pobres coitados consumiam durante e após o expediente – tentou se lembrar do nome dele. Thomas, ou algo assim? Lembrava-se de outro rapaz se referindo a um Tom que amava xadrez, o mesmo que havia alterado as chaves de acesso numa das portas da delegacia para peças do jogo, e a aparência física conferia. A não ser, talvez, a pele excessivamente desprovida de cor...

         Na verdade, quando o homem chegou perto o bastante, Annette achou estar encarando um fantasma – fazendo-a até recuar instintivamente alguns passos.

         - Boa tarde, senhora Birkin – ele saudou-a, abrindo um sorriso que, ao invés de fazê-lo parecer gentil, apenas evidenciou estar doente.

         - Boa tarde... – ela respondeu com um olhar evasivo, tentando sem sucesso ocultar sua preocupação.

         Ainda sorrindo, Thomas levou uma das mãos à parte de trás do pescoço e coçou-o com vontade. Logo em seguida, antes mesmo de tornar a falar, levou as unhas – maiores do que uma boa higiene recomendaria – a um dos cotovelos, esfregando-o até quase verter sangue. Foi a vez de Annette empalidecer. O maldito manifestava todos os sintomas...

         - Está só de passagem? – ele inquiriu, ignorando incomodá-la.

         - Sim, sim – ela replicou firme, apesar do espanto. – William me espera no laboratório. Tudo está em ordem?

         - Creio que sim... Apenas algum movimento suspeito numa das saídas do esgoto noite passada, mas não deve passar de arruaceiros... Sabe como é, hoje em dia essa juventude procura locais isolados para usar drogas!

         - Estou ciente. Tenho uma filha nessa idade e preciso mantê-la afastada dessa gente...

         Ela soou mais irritada do que deveria, e os pés quase dançavam dentro dos sapatos desejando dar o fora dali. Por sorte o tal Tom, mesmo não conhecendo sua real condição, percebeu finalmente que a mulher estava aturdida:

         - Bem, parece estar mesmo com pressa! Nos falaremos mais da próxima vez. Tenha um bom dia!

         - O senhor também...

         Annette deu as costas ao homem e se afastou, andando devagar... por mais que seu cérebro quase berrasse para correr, desaparecendo dali o mais rápido possível. Não podia acreditar. Os jornais e relatórios policiais falavam sobre ataques causados por resquícios da mansão destruída em julho, mas... não esperava que a infecção já houvesse chegado tão perto!

         Ela tinha de avisar William. E também algum outro membro da segurança, para que encerrasse o sofrimento de Thomas com uma bela bala na cabeça... antes que fosse necessária mais munição que o normal.


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