Antes da Tempestade escrita por Goldfield


Capítulo 2
II




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II

         Raccoon City, até o momento, o havia encantado em quase todos os aspectos. A cidadezinha mais parecia uma localidade dos anos 1930 parada no tempo em meio às cadeias de montanhas. A área central, repleta de casarões e prédios de arquitetura antiga, era um charme à parte. Só achara as ruas estreitas demais, o que dificultava a direção – contribuindo para aumentar seu descontentamento com a necessidade. Sabia que sua primeira parada deveria ser o Departamento de Polícia, onde julgava poder encontrar o endereço da pessoa que procurava; mas como chegara a Raccoon bem na hora do almoço, resolveu antes ir a algum lugar para comer. Haviam lhe recomendado um restaurante perto da prefeitura, chamado Grill 13, que diziam servir um salmão excelente. O visitante resolveu conferir...

         O estabelecimento era pacato e agradável, vários freqüentadores trajando terno ou roupas mais formais – o que fez o forasteiro concluir ser ponto de encontro dos funcionários da prefeitura no horário de almoço. O salmão mostrou-se mesmo delicioso, embora o acompanhamento não fosse lá essas coisas. Comeu com calma, aproveitando o momento de descanso antes de iniciar efetivamente a odisséia que o aguardava naquela cidade. Tudo se desenrolou sem problemas... até o momento em que se levantou rumo ao balcão para pagar.

         Aproximando-se do local, encontrou pequena fila, na qual entrou para aguardar sua vez. Já apanhava sua carteira do bolso, quando o olfato captou uma flagrância inesperada, destacando-se sobre o cheiro de fritura que prevalecia no estabelecimento. A sensação agradou-o, não pouco; e notou vir de trás de si. Voltando a cabeça de leve, fitou de soslaio uma jovem de cabelos negros curtos, óculos escuros e blusa vermelha, as calças cobertas por jeans e os pés por sapatilhas. Não era possível observar-lhe os olhos com clareza, mas as lentes semitransparentes e os contornos da face revelavam possuir alguma ascendência oriental. Mesmo sem contemplá-la de frente, viu-se encantado por sua aparência, perguntando-se que função exerceria naquela cidade e quantas cabeças já tirara do lugar com seu perfume. A fila andou alguns passos. E, inesperadamente, a mulher lhe dirigiu a palavra:

         - Novo em Raccoon, oficial?

         Sentiu um calafrio, tanto pelo provocante tom da desconhecida, quanto pelo fato de ela ter se referido a ele como um militar mesmo estando à paisana. Um tanto desconcertado, reuniu coragem para replicar:

         - C-como sabe, senhorita?

         - Não é difícil deduzir pertencer a um grupo fardado... A postura ereta enquanto comia e agora na fila. O cabelo curto, com indícios de ter sido recentemente raspado... A barba bem-aparada tendo indícios de ter sido feita às pressas e a contragosto, dadas as marcas de cortes... Deveria se olhar no espelho com mais freqüência, oficial. Até o jeito como anda revela pertencer a um forte, e não a um tranqüilo restaurante de uma cidadezinha do meio-oeste...

         Ainda observando-a pelo canto do olho, ele pôde notar que sorrira ao terminar a última afirmação.

         - Só errou num ponto... – o ímpeto de discordar foi mais forte que o instinto de manter-se calado. – Não pertenço a um forte, e sim a uma base naval. Marinha.

         - Já sabia disso – o sorriso ampliou-se, vitorioso. – Apenas dei a entender não saber para que confirmasse todas as minhas deduções.

         Quem era aquela moça, afinal? Uma investigadora da polícia? Do FBI? Estariam atrás da mesma pessoa?

         - Quem é você? – indagou ele, temendo o que ouviria como resposta.

         A oriental, por sua vez, aproximou os lábios tentadores de um de seus ouvidos, sussurrando-lhe:

         - Uma amiga. Que agora lhe dará um conselho. Desconheço o motivo de ter vindo a Raccoon, mas cuidado com o que procura. Pode acabar tropeçando em segredos que mais tarde implorará não ter descoberto...

         E, sem aguardar sua vez junto ao caixa, deixou a fila, seu perfume se afastando e parecendo inebriar o militar em dúvidas... até que ela simplesmente saiu do restaurante, a porta de vidro batendo de leve atrás de si.

*  *  *

         O prédio do Departamento de Polícia mais parecia um mausoléu do que qualquer outra coisa. Haviam lhe informado que a construção abrigara outrora uma biblioteca pública, mas estava mais para uma relíquia empoeirada vinda diretamente dos dias em que os tiras ainda se preocupavam com Al Capone e a Lei Seca. O resto da arquitetura antiga da cidade o fascinara, mas aquele local tinha um quê de sinistro e aterrador – sem que conseguisse entender o motivo.

         Cruzando a porta dupla de entrada, o oficial, passando por alguns policiais em serviço, dirigiu-se ao balcão da recepção. Nele encontrou um rapaz negro, usando a habitual farda azul, que aparentava estar um pouco deslocado – como se aquele posto não fosse sua habitual função. Ainda assim, afastando algumas pilhas de papéis que pareciam incomodá-lo, atendeu ao recém-chegado:

         - Boa tarde, senhor. Em que posso ajudá-lo?

         - Sou o tenente Goldfield, Marinha dos Estados Unidos – o militar apresentou-se exibindo um cartão com suas credenciais. – Estou realizando uma investigação para uma corte marcial, e para isso preciso interrogar a senhorita Rebecca Chambers, ex-integrante da equipe Bravo do S.T.A.R.S. aqui de Raccoon. Gostaria que me fornecessem seu endereço e dados pessoais, se for possível.

         O policial arregalou os olhos por um segundo, surpreso diante da razão que trouxera o oficial até ali. Este pensou que, ao menos nas aparências, havia algo mais acontecendo naquela cidade que ainda não tomara conhecimento. Estaria mais desinformado do que deveria?

         - Vou passar-lhe os dados... – o funcionário replicou, encaminhando-se até um computador situado num dos cantos do balcão. – Precisarei somente de uma autorização escrita de seus superiores, que eu acredito que tenha...

- Sim.

- OK. Desculpe a desordem, as coisas andam meio doidas por aqui. O rapaz responsável por esta função foi mordido ontem enquanto vinha para o trabalho e está hospitalizado.

- Mordido? – Goldfield franziu o cenho. – Um cão solto, ou algo assim?

O policial hesitou por um instante, respirando fundo antes de revelar, a informação sendo algo desconfortável a si próprio:

- Não... Foi atacado por um cara. Um mendigo, ou algo assim. O ferimento foi feio. Quase lhe rasgou a artéria aorta.

Instantes mais tarde, depois de ter inserido alguns comandos no computador, a ficha completa de Rebecca Chambers foi liberada numa impressora. O funcionário entregou ao tenente os papéis, ao mesmo tempo em que este último perguntava:

- Qual é seu nome, meu caro?

- Marvin, Marvin Branagh.

- Obrigado pela ajuda, Marvin. Espero que seu amigo receba logo alta para que você possa voltar ao seu posto.

- Eu não sei... Com mendigos mordendo pessoas por aí, talvez eu até prefira ficar com a papelada!

Branagh riu ao término da alegação, no entanto o militar notou grande tensão em seu rosto e fala. Não só ele, mas todos os policiais de Raccoon aparentavam estar assustados como nunca com alguma coisa. E parecia mesmo envolver o tal mendigo...

- Até mais – Goldfield despediu-se, retornando à porta.

Marvin retribuiu com um aceno... o oficial da Marinha preparando-se para mais uma incômoda jornada por ruas estreitas até a residência de Chambers.

*  *  *

         Pior do que uma noite em claro e repor o sono durante o dia, era essa reposição ser interrompida pelo insistente soar da campainha.

         Rebecca forçou-se a abrir os olhos, esfregou o rosto e levantou-se da cama como um zumbi. Atravessou o apartamento tomando cuidado para não tropeçar nos móveis e objetos pelo caminho, o sinal na porta ressoando mais uma vez e fazendo sua cabeça latejar. Deteve-se junto à entrada, por pouco não escorregando no assoalho com os pés descalços, e observou através do olho mágico. Viu um homem que jamais conhecera em sua vida, de cabelos loiros curtos e músculos razoavelmente desenvolvidos. Não fazia idéia de quem poderia ser, mas um assassino da Umbrella dificilmente teria se anunciado daquela maneira. Convinha verificar de quem se tratava.

         - Espere só um minuto! – bradou, dando leve batida na porta. – Vou me trocar e já volto!

         Ainda estava com as roupas com que passara a madrugada: uma camiseta branca sem mangas e uma curta bermuda jeans. Rebecca permitiria que apenas seu namorado a visse daquela maneira – se tivesse um. Acabou vestindo a primeira camisa que encontrou em seu armário: uma preta com a inscrição “My Life Has Been Saved” em letra estilizada; e inseriu as pernas em sua surrada calça verde do S.T.A.R.S., ainda conservando alguns rasgos que a faziam se lembrar dos perigos com que se defrontara meses antes.

         - Estou voltando! – exclamou enquanto retornava à porta, temendo que o visitante já houvesse perdido a paciência.

         Liberou a tranca com a chave e puxou a maçaneta.

         Apesar do aspecto amigável do recém-chegado, a jovem não pôde deixar de sentir certo receio em sua presença. A postura e aparência remetiam claramente a um militar – e em sua atual vida a repentina aparição de um não podia ser vista com bons olhos. Acabou ficando sem reação, permanecendo a fitá-lo calada e torcendo para que ele não percebesse examiná-lo da cabeça aos pés. Tendo notado ou não, o misterioso visitante logo inquiriu, tentando abrir um sorriso que saiu meio desajeitado:

         - Posso entrar?

         Rebecca abriu caminho quase instintivamente – ainda que seus pensamentos não apoiassem por completo a decisão. O estranho ganhou o apartamento, sentando-se num dos sofás sem aguardar o convite da anfitriã. Talvez o houvesse feito mais por nervosismo do que por falta de educação; a moça percebendo que ele também não estava lá muito tranqüilo, embora tentasse ocultar tal fato...

         - O senhor é? – ela indagou, procurando esclarecer tudo aquilo.

         - Desculpe, devia ter me apresentado antes de entrar! – ele realmente estava nervoso, e Rebecca certificou-se disso ao apertar a mão que lhe foi estendida. – Tenente Goldfield. JAG Corps da Marinha.

         Então ele era um JAG. A sigla remetia a “Oficial Geral de Justiça” (Judge Advocate General), ou, em termos mais simples, os oficiais que compunham o braço legal da Marinha, servindo como defensores ou acusadores em tribunais militares. Aquele não era um homem de combate, e sim um burocrata responsável por assuntos judiciais. Embora não sentisse mais sua vida ameaçada, Rebecca, sentando-se numa poltrona de frente para ele, já deduzia o motivo de aquele indivíduo estar ali...

         Acabou empalidecendo sem perceber, como se tivesse visto um fantasma. De certa forma, havia na verdade pensado em um fantasma. Alguém que, ao resto do mundo, deveria estar morto...

         Notando o preocupante estado de nervos da jovem, o oficial tentou quebrar o gelo:

         - Seu sobrenome é Chambers, não é? Algum parentesco com Justice M. Chambers?

         Ainda sem cor, Rebecca voltou a encarar o visitante com um olhar confuso, suas piscadas rápidas revelando não ter compreendido a pergunta.

         - Quem é esse? – replicou sem perceber.

         - Um herói da Marinha na Segunda Guerra Mundial... – Goldfield explicou de forma despretensiosa. – Batalha de Iwo Jima.

         - Não, nenhum parentesco. Se houvesse, com certeza teria ouvido falar dele...

         Era certo que sua família nunca fora muito brilhante. Desde pequena, acabara se tornando a esperança da linhagem, a garotinha superdotada em que todos apostavam suas fichas. Formar-se na universidade quase ainda adolescente mostrara que as esperanças de seus parentes tinham fundamento. Mas agora tudo estava prestes a ser eliminado por ter desafiado uma gigante farmacêutica que praticava atividades escusas...

         - Perdoe a pressa, oficial, mas poderia me explicar a razão de estar aqui? – Rebecca venceu o temor e pisou primeiro naquele território.

         O tenente respondeu de imediato:

         - A senhorita pertencia ao time Bravo da unidade S.T.A.R.S. desta cidade, correto? Na noite do dia 23 de julho, partiu com seus companheiros para as Montanhas Arklay tendo o intuito de investigar uma série de assassinatos estranhos que vinham ocorrendo. Confere?

         - Sim – ela confirmou, resoluta.

         - Certo. Houve um problema com o helicóptero e viram-se obrigados a efetuar um pouso forçado na floresta. Poucos minutos depois de começarem a averiguar os arredores, encontraram um veículo oficial destruído, contendo os cadáveres de dois fuzileiros navais que, segundo documento encontrado no local, transportavam o prisioneiro Billy Coen, condenado à morte em corte marcial por assassinato, para a base em que seria cumprida sua sentença, correto?

         - Correto.

         - Bem, de acordo com seu relatório sobre essa descoberta em particular, redigido após o término da operação, consta que o segundo-tenente Coen também teve seu corpo encontrado horas depois, mutilado por ursos assim como aqueles que o transportavam, certo?

         - Não foram ursos! – Rebecca levantou um pouco a voz, involuntariamente.

         - Qual teria sido então a fonte das lesões encontradas nos cadáveres?

         - O senhor leu meu relatório sobre Coen, mas com certeza ignorou o outro, escrito em conjunto com meus colegas, reportando quais eram as causas dos assassinatos estranhos na região...

         De fato, ele não procurara se informar a respeito. Ouvira boatos estapafúrdios, sobre os S.T.A.R.S. alegarem terem encontrado monstros na missão e depois serem taxados como usuários de drogas por isso. De qualquer modo, esses detalhes não lhe importavam muito. Não viajara até Raccoon para verificar a veracidade das palavras dos policiais sobre aquilo, mas sim desfazer uma dúvida relacionada a um dos “coadjuvantes” dos eventos.

          - Senhorita Chambers, Billy Coen está realmente morto? – Goldfield resolveu ir direto ao ponto.

         Ela tornou a empalidecer, revelando que a questão mexia consigo. O tenente estava no caminho certo. Havia algo de errado ali.

         - Compreenda... – continuou. – É a única sobrevivente da equipe Bravo. E a única pessoa que reportou contato mais direto com o oficial Coen, ou o que sobrou dele. Revelar o que realmente sabe mostra-se vital para minha investigação.

         - Que tipo de investigação?

         - Se o segundo-tenente Coen estiver vivo, pode alterar totalmente o rumo do processo instaurado contra si. A corte marcial voltará a se reunir para decidir seu destino. É a chance que tem para limpar seu nome!

         - Como posso ter certeza de que não o estão caçando apenas para puni-lo pelo que supostamente fez? – Rebecca franziu o cenho.

         - Surgiram suspeitas, embora ainda sem provas, de que Billy foi incriminado por seus colegas de pelotão. Ele pode ter tentado evitar o massacre na África do qual foi acusado, ao invés de realizá-lo. Mas, para que essa hipótese tenha progresso, Coen teria de testemunhar na corte. Novamente.

         Chambers curvou-se para frente, demonstrando interesse pelas informações do militar. Ainda mantendo as sobrancelhas retraídas, inquiriu, determinada:

         - E o que levaria um oficial do JAG a se empenhar tão apaixonadamente nessa causa, viajando até Raccoon City somente para me encontrar?

         Goldfield respirou fundo e revelou:

         - Fui eu quem defendeu Coen no tribunal, pela primeira vez. Acredite, essa causa se tornou parte da minha vida. E quero provar a inocência desse homem.


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