Cotidiano escrita por Marcio Setsuna, Nallylaysu


Capítulo 1
Meu Mundo




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Sarah ainda encarava boquiaberta a página da internet, seus dedos formigavam acima do teclado e ela queria gritar, pular, sair correndo, sorria bobamente para o nada. Respirou fundo e se segurou para se levantar, tropeçando nos próprios pés, ela foi para fora da casa e então saltitou, ainda se contendo.

– CARALHO! EU PASSEI! - ela se percebeu gritando a plenos pulmões na varanda da casa, sem saber o que fazer com toda a energia que fluia no seu corpo, ela escalou o portão de grade de três metros e gritou mais uma vez - EU PASSEI! PASSEI NA PORRA DO TERCEIRO LUGAR!

– Sarah! Não me mata de vergonha, cala a boca! - quem exclamava espantada de dentro de casa era sua irmã mais nova, seu oposto, Anna - São 7 da manhã, tá todo mundo de férias! Dormindo!

Tudo o que a irmãzinha ganhou em troca foi uma risada ligeiramente demente da parte de Sarah, que em uma explosão de felicidade, saiu correndo, num jato em direção a uma casa muito bem conhecida.



– Aí Peste! Eu passei no vestibular! - berrou em frente ao sobradinho azul claro, que tinha uma faixa "aulas de baixo, violão e viola clássica" na fachada - EU PASSEI NO VESTIBULAR!

Um rosto sonolento apareceu na janela de cima, um homem de barba mal feita, cabelo rebelde e longo. Ele olhou pra baixo ainda com a cara amassada de travesseiro, tirou o cabelo dos olhos e em silêncio desceu as escadas. Dava pra ouvir a gritaria do lado de fora: "VOCÊ OUVIU? PASSEI NO VESTIBULAR, PESTE! PASSEI NO VESTIBULAR!", e ainda gritando Sarah, assim que ele saiu de casa, se jogou em cima dele.

– Eu passei, Peste! Passei mesmo! Passei no vestibular! - ela ainda gritava hiperativa, agarrada como se fosse um coala no homem, que já devia ter lá os seus 30 anos.

– Eu entendi... - disse com uma voz baixa que se aproximava ao ronronar de um gato - Tenho ouvido absoluto, posso até dizer quais as notas que você usou pra gritar tanto, agora dá pra ficar quieta?

– NÃO! CARA, EU PASSEI NO MALDITO TERCEIRO LUGAR NUM DOS VESTIBULARES MAIS CONCORRIDOS DE BIOLOGIA DO PAÍS! - ela continuava gritando, fazendo com que Peste tampasse os ouvidos - TERCEIRO LUGAR!

– É, eu entendi, terceiro lugar, realmente impressionante... - ronronou novamente o homem sonolento, se sentando na mesa da cozinha americana - Se você ficar quieta, ganha uma xícara de chá de morango...

– Tá... - sussurrou a garota, subitamente mudando da atitude histérica para uma obediente e quieta, com exceção dos pés que batucavam ritmicamente no chão. Só o chá de morango do Peste podia ter aquele poder de barganha sobre Sarah.



– Acalmou? - Peste tomava goles de uma caneca, com um olhar melancólico sobre a garota a sua frente, que sorriu abertamente, já tomando a sua segunda xícara de chá - Boa garota, agora vamos conversar direito, ok? - Sarah assentiu novamente, recebendo um meio sorriso e um afago na cabeça - Já falou para os seus pais?

– Hum... - pela hesitação o homem já sabia a resposta - Bom... Eles estavam dormindo quando o resultado saiu, então acho que... ainda não contei pra eles?

– Tenho certeza que eles acordaram com o escândalo que você fez, não acha? - ele claramente não conseguia acreditar no que ouviu.

– Tá, eu não tentei acordar eles nem nada, a Anna acordou, mas eu fui embora antes de saber se eles tinham entendido... - o pesar em sua voz era óbvio - Ah, Peste, eles não tão nem aí pra isso, pra eles, quanto mais cedo eu sair de casa, melhor...

– Nós já conversamos sobre isso, Sarah, não é assim - Peste não parecia ele mesmo quando estava sério, mas era a única pessoa a quem Sarah ouvia - Você não está tentando ver o lado deles...

– Eu juro que eu tento, mas... - ela parou por um momento, frustrada - Mas! Agh! Eu não consigo entender o que se passa na cabeça deles! E além disso...

– Ok, ok... - o homem finalmente interrompeu, desistindo do assunto - Mas você tem que se mudar, não é? Como vai se arranjar por lá sem eles?



– Mamãe quer te matar... - essas foram as palavras de recepção de uma não-muito-animada Anna - Sério, você devia pensar um pouco antes de agir, Sarah...

A euforia da visita ao Peste se esvaiu, Sarah quase pôde ver as borboletas de felicidade se debatendo e caindo no chão. A garota simplesmente massageou os olhos, já sabendo o que esperar. Entrou na casa.

– O que você acha que estava fazendo? - a voz de sua mãe era só ligeiramente alterada, mas o tom poderia ter feito um leão bravo recuar - Saiu de casa sem avisar, acordou mais da metade da vizinhança... Faz ideia do quanto as pessoas vão falar? Francamente! Nem posso acreditar que é a minha filha agindo assim...

– Mãe, eu passei no vestibular... - a voz era baixa e sem vida, a garota mantinha uma expressão de indiferença completamente plastificada, o jeito que sua mãe falava desses assuntos a irritava, ela tinha passado no vestibular, tinha todas a razões do mundo pra estar feliz, ela devia se orgulhar! - Saio de casa na semana que vem...

– E como vai se sustentar na cidade grande? - era seu pai falando, antes que a mãe tivesse a oportunidade de continuar. Ele era mais calmo, calculista, mas mesmo assim severo, e aos olhos de Sarah, absolutamente incompreensívo, como se eles tivessem ignorado completamente o primeiro comentário - Faz idéia de como é difícil estar em dia com as contas todos os meses?

– Não, você não faz, afinal não é você que paga as contas dessa casa - a mãe dela afirmou, antes mesmo de Sarah poder responder, aumentando sua irritação. O mesmo tom impositivo. Uma lágrima quente percorreu o rosto da garota. "Ridícula", acusou a si mesma, "tá chorando por quê?". Engoliu em seco.

– Eu trabalho, mãe - afirmou, a voz não mais tão neutra - ajudo nas contas todo maldito mês - o nó na garganta era a única coisa que a impedia de aumentar o volume da voz, mas sentia que iria explodir a qualquer momento - Mais do que isso, eu ainda consigo manter as minhas médias na escola altas e passar em uma ótima faculdade - ela tentava manter, com certa dificuldade, o raciocínio claro, mas por dentro soluçava de frustração - Eu... - o nó se apertou mais e mais, algumas lágrimas inconvenientes pularam pra fora, e foi então que ela se descontrolou completamente - O que mais vocês querem de mim?!

A frase, cheia de frustração, saiu como algo entre um berro e um soluço especialmente escandaloso. Sarah, levantou-se e foi embora de casa mais uma vez, rápido demais para dar aos pais, atordoados, a oportunidade de dizer qualquer coisa, afinal, a porta não precisava ser aberta para sua passagem.



– Pois não? - sentada ao lado da porta havia uma garota soluçando e chorando. Peste mal pôde reconhecer a aluna. Seus olhos pularam levemente das órbitas, ele se agachou e ronronou, preocupado - Sarah?

– Posso ficar aqui... só por enquanto? - a pergunta saiu fraca, e mais chorosa do que Sarah admitiria mais tarde. "Ridícula", pensou consigo mesma de novo, mas o homem a abraçou forte o suficiente para fazê-la parar de soluçar e a levou para dentro.

– Vou te fazer um chá... - foi o ultimo ronronar que ouviu antes de ver tudo se apagar. Já deitada no sofá da sala, caiu num sono profundo, fugindo de suas frustrações em seu próprio mundo dos sonhos.



– Pirralha? - um gemido mal disposto foi a única resposta que Peste conseguiu - Pirralha, acorda... - ela abriu um pequena brecha dos olhos, que logo voltaram a se fechar - Sarah, tem chá de morango...

A reação não foi tão automática quanto de costume, mas as palavras mágicas ainda faziam efeito, e a garota se levantou, vagarosamente, se dando conta do quanto seu corpo pesava e sua cabeça doía. Tentou se levantar, mas cambaleou e logo caiu de volta no sofá. Peste a guiou até a cozinha, praticamente carregando-a. O chá estava servido, tinha bolo de chocolate na mesa e Anna estava lá. Essa ultima parte fez com que Sarah resmungasse, e antes mesmo de entrar no campo de visão da irmã, passasse a andar por si mesma, tentando não se desmoralizar mais do que o necessário.

– O que foi, Anna?! - falou ela, mal-humorada - Veio falar o quanto eu sou um fardo e uma vergonha pra você também? Obrigada, mas eu já ouvi o suficiente por hoje...

– Sarah, até parece que se eu achasse isso eu estaria aqui! - retrucou, nada gentil, porém, com certa razão - Eu tô preocupada com você - Anna soltou uma risadinha cínica - Você pode ser a figura mais bizarra da cidade inteira, só ficando atrás do Peste - houve um pequeno murmúrio de insatisfação do mesmo, que observava a conversa a pouca distância - Mas você é minha irmã, e eu vou te defender de qualquer rumor de merda que essa cidade de fofoqueiros sair espalhando.

Sarah não sabia o que dizer. Era a pura verdade, as duas podiam ser opostos perfeitos, mas eram complementos preciosos. Ela se sentou, cansada, e tomou um gole do chá servido, tentando voltar ao seu normal.

– Mamãe quase quebrou de chorar no banheiro depois que você saiu. É claro que ela não sabe que eu ouvi... - o comentário a fez virar a caneca em suas mãos - Papai foi para o escritório e não saiu até agora. Sabe, eles não são os melhores pais do mundo e tem um jeito bem estranho de demonstrar preocupação, mas vocês são mais parecidos do que admitem ser...

Sarah conversava muito pouco com o pai, mas ela sabia que quando ele não fazia ideia do que fazer e ficava atordoado, triste, preocupado, ele se trancava no escritório e trabalhava até o problema se resolver sozinho, ou até que seu corpo não aguentasse mais. Sua mãe também não era de muita conversa, pelo menos não com ela, e nunca deixava que Anna ou Sarah a vissem chorar. A garota não conseguiu se sentir culpada com a discussão repercutindo em sua cabeça, mas seu corpo pareceu ainda mais pesado e ela quis gritar de novo, quis ter pelo menos mais uma vez o poder da voz. Tomou, numa golada só mais uma caneca de chá de morango. Olhou fixamente o relógio de parede, tanto para desviar o olhar de Anna, quanto para saber quanto tempo dormira. 8 horas se passaram desde a discussão com seus pais.

– Vamos pra casa? - pediu a irmã, perturbada - Eu sei que não vai ser fácil, mas é a minha ultima semana com você...

– Obrigada, An... - o apelido soou ainda mais carinhoso do que de costume, vindo de uma Sarah bem mais compreensiva - Mas eu realmente preciso ficar longe daquela casa, só por hoje... - seu lado racional tinha voltado com a constatação de que ficou ausente por um bom tempo, e conseguiu esboçar um sorriso - Eu juro pra você que volto amanhã, mas eu preciso... Posso ficar, certo, Peste?

O homem olhou para as duas garotas a sua frente e então deu de ombros, saindo da sala.

– Se é assim, amanhã, você tem que ser a primeira pessoa que eu vou ver quando acordar! - Sarah quase conseguiu rir, Anna podia agir como gente grande o quanto quisesse, ela nunca conseguiria parecer menos infantil aos olhos de sua irmã mais velha.

– Ok An, agora vai pra casa... Mamãe já deve tá procurando você...



Aquele telefonema quase fez Sarah infartar. O Peste, ligando pra ela? Ele nunca ligava pra ela. Nunca. A comunicação entre eles era bem mais simples (e barata), trocavam mensagens pelo computador, ou apareciam sem aviso um na casa do outro. As palavras, "Sarah, vem até aqui, é urgente!", pesavam feito chumbo comparada a comunicação simplista de sempre. O que a fez chegar na casa dele em dois minutos, ao invés dos usuais dez.

– Peste?! PESTE?! - Sarah gritou na porta do sobrado, sem resposta. Ela deu um chute na porta, que para a sua surpresa estava aberta, fazendo com que quase caísse. A preocupação já explodindo em seu peito, entrou na casa. Vazia, e escura, as luzes apagadas, as janelas fechadas. Ladrões? Sequestro? Um cara da máfia cobrando dinheiro?!

O estúdio. Ele só podia estar lá, ele sempre estava lá. O galpãozinho no quintal atrás da casa, onde ele guardava os instrumentos e os equipamentos de gravação. Do mesmo jeito que o sobrado, a porta de lá estava destrancada, e ainda entreaberta. Sarah praticamente se jogou pra dentro.

Sentia o tambor em seu peito. Tum toom, tum toom, tum toom. Ela conseguia senti-lo saltando, e ouvir as batidas uma a uma. "Peste?", perguntou, procurando cegamente no breu.

Alguém a puxou para um lado e bateu a porta, bloqueando o restinho de luz que ainda entrava por uma fresta. Contrastando com isso, as luzes do galpão acenderam de uma vez, cegando Sarah por alguns instantes, junto com um grito de "SURPRESA!" composto de várias vozes.

Quando o filtro branco e manchado finalmente se dissolveu, ela pode ver a cena ali montada. Peste, sua irmãzinha, seus amigos do colégio, estavam todos lá, ao redor de uma mesa com doces, salgados, um grande bolo, e algumas caixas de presente no chão.

– Mas que porra...?! - Sarah gaguejou, ainda completamente estupefata.

– Bate aqui, Peste! - a irmã dela disse, cumprimentando o músico - Ela caiu feito um patinho!

– Essa festa é sua, pirralha... - o homem cabeludo, chamado carinhosamente de Peste por Sarah, deu um abraço nela - Fizemos isso pra você ter a melhor lembrança possível, afinal, amanhã é o grande dia, né?

Sarah, com os olhos cheios de lágrimas, escondia o rosto, insistentemente rezando a Deus, ao mundo e a todos os orixás para que parasse com aquela reação patética. Não conseguia responder, só balbuciar algumas sílabas sem sentido, e ficar encabulada, e chorar mais, e sorrir bobamente. Ela foi levada por Peste até a mesa, onde tomou um copo de refrigerante, seguido de alguns salgadinhos, e então se controlou.



A festa foi simples, mas carregada de emoção, fazendo Sarah chorar mais vezes do que gostaria de admitir. Os amigos dela se juntaram para comprar alguns presentes: um pequeno leão de pelúcia, que estranhamente lembrava o Peste, um colar de pedras onde cada uma delas tinha as iniciais de alguém da festa encravadas, e o mais precioso de todos, um violão, azul violeta, do mesmo modelo que Peste tocava, exatamente o que ele a emprestou pra aprender a tocar.

– Aceita tocar uma última música comigo, pirralha? - seu professor perguntou.

– Seria uma honra, Tomas... - Sarah engoliu em seco, agora ela decididamente não podia chorar. Aquele dueto devia ficar marcado como o melhor de todos.


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