Cotidiano escrita por Marcio Setsuna, Nallylaysu


Capítulo 2
Meu Novo Mundo




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/192735/chapter/2

Sarah fingia (muito convincentemente) que sabia exatamente o que estava fazendo, mas, de verdade, estava absolutamente perdida. Essa era sua condição no terminal de ônibus: perdida. Ela havia acabado de chegar de viagem, com todos os seus pertences entulhados em bolsas e malas, e simplesmente não sabia para onde ir.

Isso já era esperado, afinal, Sarah praticamente nunca saíra de sua cidade natal. Agora que ela vivia a coisa toda, parecia bem mais assustador do que imaginara.

Acabou tropeçando, perdendo completamente a pose, e foi então que as coisas desandaram. Ela ia derrubando malas, quase perdendo bolsas, desequilibrada e sobrecarregada. Por sorte conseguiu chegar inteira e com toda a bagagem(nada satisfeita consigo mesma) até um guichê, um balcão de informações.

– Aluna nova na Federal? - a garota das informações, que não devia ser muito mais velha que ela, perguntou, mas já podia ler a resposta na expressão facial de Sarah - Relaxa, deu pra perceber de cara. Sabe, não é muito incomum pessoas perdidas por aqui... - ela apontou para a placa "Informações" acima do guichê - Estamos aqui exatamente pra isso!

Se os olhos de Sarah pudessem brilhar mais do que estavam brilhando naquele momento, eles explodiriam em chamas. Estava claro o quanto ela ficou feliz de saber que se perder não era algo incomum e que ela não era uma perfeita idiota por estar perdida.

– Então QUEQUÊUFAÇO?! - ela meio que balbuciou, meio que atropelou, meio que estourou as palavras na direção da garota das informações, três metades e tudo o mais - Pra onde eu vou?! Como faz? Qual o sentido da vida?

– Calma, respira, concentra! - ao que parece, a garota do guichê já tinha experiência em lidar com pré-universitários desesperados - Primeiro de tudo, qual é o seu nome? - ela pegou uma ficha e começou a preencher com as respostas.

– Sarah Camila Niven.

– Idade?

– 17!

– Sexo? - a garota riu depois da pergunta, mas Sarah, que nunca foi muito boa em lidar com esse tipo de brincadeira (por ter um jeito de moleque, as pessoas confundiam muito quando ela era pequena), levou a sério:

– Feminino! - resmungou.

– OK, desculpa, desculpa.

Mais algumas perguntas e a ficha estava completa. A garota indicou um banco a Sarah e pediu licença, pegando o telefone e discando para um número.

Sarah estava inquieta. Agitava os pés, revirava as bolsas, contava-as, conferia se tinha trazido tudo, enquanto a garota conversava no telefone, com sua ficha na mão. Quando a garota terminou, Sarah estava tão agitada que já saltou do banco antes mesmo dela chamá-la:

– Me dá uma notícia boa, por favor! - balbuciou.

– Eu tenho uma boa novidade! - a garota disse, fazendo um gesto exagerado pra levantar o braço direito - Dividida em três partes! - desceu o braço, mostrando três dedos para Sarah - Primeiro! Eu arranjei um lugar provisório pra você ficar, um hotelzinho onde você pode deixar suas coisas e dormir por alguns dias, nada cinco estrelas, é um quartinho pequeno, mas dá pro gasto! E como eu falei, é provisório, porque aqui na cidade tem repúblicas, os alunos da Federal e das outras costumam dividir apartamentos, mas enfim, você já tem onde ficar.

Os olhos de Sarah brilhavam novamente. Repúblicas! Aquilo lhe soava bem.

– Segundo! - a garota continuou - Consegui duas entrevistas de emprego pra você! - ela entregou um papel a Sarah, com os horários, locais, e como chegar lá a partir do hotel - Duas da tarde num escritório, pra auxiliar administrativa, e cinco horas, num restaurante, pra garçonete!

Os olhos de Sarah se incendiaram, metaforicamente.

– E terceiro! - com gestos grandes e teatrais, ela passou alguns papéis para um homem que acabara de entrar no guichê, pegou uma bolsa de mão roxa, e um molho de chaves - Acabo de entrar em horário de almoço, então eu te levo para comer alguma coisa, e de lá te levo pro seu hotel! O que acha?

Os olhos de Sarah quase se incendiaram literalmente, dessa vez.

– CERTO! - ela respondeu, explodindo de alegria.


~~

Sarah estava feliz. Não só por que havia comido MUITO, mas também porque a garota das informações, que descobrira se chamar Mariana Cipriani (ou Mani, -Mããni, não Mááni- como ela preferia que a chamassem) estava agora no posto mais próximo de uma amiga que alguém podia alcançar em menos de 4 horas de convivência.

– Aí Sarah, preciso ir embora agora, também tenho coisas a fazer - comentou Mani num meio riso - Siga o esqueminha que eu te fiz que vai dar tudo certo... - uma piscadela - Boa sorte, garota!

– Valeu, Mani! - gritou a garota enquanto via a mais nova amiga se afastar. Agora eram só suas malas e ela, em frente a um hotel bem pior do que ela imaginou - Se esforce!

É claro que a declaração foi pra si mesma. Ela entrou no hotel (um ligeiro cheiro de mofo), fez o check-in (quarto 7, final do corredor), pagou a primeira diária (nada excepcional, ela podia se dar ao luxo de ficar mais alguns dias), e largou suas malas num canto próximo à cama. Agora era hora de seguir as direções de Mani rumo a suas entrevistas de emprego.

~~

Já eram 17:00 em seu relógio e Sarah estava bem em frente a um restaurante pequeno, mas bem decorado, que ocupava o primeiro andar de um prédio de 3. Ela se sentia um lixo, depois do primeiro "não" ela resolvera procurar por mais possibilidades de emprego na mesma avenida, antes do último apontamento que Mani arranjara, mas todos eles surgiam com problemas, mencionavam um defeito dela, algo que a desqualificasse. Seu cabelo era exótico demais (em seu tom vermelho alaranjado), ela falava demais, ou não tinha qualificação profissional, até mesmo disseram que não era feminina o suficiente para o emprego!

Sarah bufou, meio frustrada ao se lembrar dessa última tentativa. Definitivamente não devia ter ido atrás de mais nada.

– Vamos lá, Sarah, foi só um mau começo! Dessa vez você com certeza vai conseguir o emprego! - consolou-se ainda em frente à porta - Aqui vou eu! - sorriu calorosamente e entrou de cabeça erguida - Eu vim para a vaga de emprego!

Toda a confiança de Sarah tinha saido em uma voz muito alta, mas ela se envergonhou rapidamente ao perceber que havia uma senhora sentada do lado de trás do balcão, próxima à porta, e que ela provavelmente tinha ouvido seu "monólogo de auto-ajuda" antes de entrar. O restaurante/lanchonete estava relativamente vazio, o clima era meio vintage - Bem vinda, querida! - o sorriso que lhe falava fez Sara se sentir automaticamente a vontade - Sente-se, eu só vou atender um cliente e já venho falar com você...

– Obrigada! - Sarah se sentou numa das cadeiras altas na beirada do balcão. Sem nada pra fazer durante a espera, começou a observar o local. As mesas se destribuíam nas laterais, grudadas às paredes. As cadeiras eram revestidas de um tecido floral bem delicado, se destacando em meio aos móveis de madeira de aparência rústica. Era uma decoração de muito bom gosto. Tudo cheirava bem e a senhora que a atendeu era, como Sarah logo percebeu, a dona do restaurante e muitíssimo carismática.

– Então você é a garota que a Mani indicou - Sara assentiu com a cabeça - Bem, você parece muito bem equilibrada! - era um comentário engraçado de se fazer, talvez até estranho, mas a verdade era que Sarah tinha uma boa postura, e o peso perfeitamente bem destribuído entre os pés, além da cabeça erguida, era simplesmente isso a senhora queria dizer - Tem algum histórico, algum currículo, carta de recomendação, algo do tipo?

– Aqui! - a garota entregou desajeitadamente um envelope em papel pardo, que a senhora analisou cuidadosamente, parecendo muito satisfeita.

– É bom saber que não vou ter que te ensinar a fritar ovos! - a senhora riu de um jeito gostoso e contagiante, e então dobrou e guardou o currículo em seu bolso - É raro encontrar uma garota tão jovem que já tenha tanta experiência com restaurantes! Vou ficar com isso... - e deu um tapinha onde acabara de guardar o papel - Eu sou Rúbia, dona do restaurante e do prédio. E então, Sarah, o que você pode me dizer sobre as suas ultimas experiências?

Sara estava em êxtase! Ela se pôs a metralhar a senhora verbalmente, com todas as suas histórias de trabalho que pôde lembrar, as experiências boas e ruins, incluindo a vez que ela mesma cuidou dos sanduíches do Fredie's (uma lanchonete onde tinha trabalhado na 6ª série) porque o cozinheiro tinha passado mal, e também quando ela brigou com o chefe porque ele insistia que Sarah deveria usar o uniforme feminino (que era muito desconfortável - e em sua opinião - ridículo), por que não? Assim ela já estava evitando brigas futuras, não é mesmo? Rúbia ria de quase todas as histórias e no final a contratou, muito satisfeita.

~~

Depois de colocar o que precisava na escrivaninha do quarto, Sarah desmoronou na cama, finalmente se deixando tomar pela bateria de acontecimentos do dia.

Ela saiu de casa bem cedo, ainda era madrugada, mas mesmo assim seus amigos a acompanharam até a rodoviária, ajudando a carregar malas e bolsas. Peste, os amigos da escola, e claro, Anna (mesmo que de extremo mau-humor por ter acordado cedo), todos estavam lá. Menos seus pais. Eles não acordaram, não fizeram questão de se despedir de Sarah. Ela fingiu não ligar, se recusando a ir até o quarto falar com eles. Agora que parava pra pensar, devia engolir o próprio orgulho vez por outra.

Quando estavam esperando por seu ônibus, todos se despediram dela, um a um. Anna substituiu o mau-humor pelo desespero, e se acabou de chorar nos braços da irmã mais velha. Peste foi muito mais disciplinado, trocaram algumas poucas palavras e um abraço apertado, eles sabiam que não ficariam sem se falar por muito tempo, era algo como uma lei da natureza para os dois: "aprendiz e mestre nunca se perderiam".

Mas Sarah teve certeza de que viu uma lágrima escorrer pelo rosto indiferente.

E agora ela se via com a mesma lágrima solitária em seu rosto, deitada naquela cama do quarto de hotel, terminando o primeiro dia da sua nova vida. E que primeiro dia! Terminar a viagem já conhecendo Mani, aquela garota completamente pirada, que conseguia chamar atenção mesmo tendo altura mediana, cabelos castanho-bem-escuros, e olhos cor de mel, que complementavam muito bem suas feições européias sem se destacar em nada com os outros milhares de descendentes de europeus da região.

A primeira entrevista de emprego, uma catástrofe, Sarah nem queria mais pensar nisso, mas não parava de lembrar das burradas que fez em todas, ou das injustiças contra ela. Só que conhecer outra pessoa salvou seu dia: Rúbia, a senhora dona do restaurante, que a contratou. Devia ter por seus 60 anos, mulata, cabelos grisalhos bem enroladinhos, ela tinha um jeito bem "mãezona", mas também tinha uma presença, um "poder", nas palavras de Sarah, que a fazia ser imponente mesmo sendo mais baixa que a maioria das pessoas.

Enquanto relembrava tudo o que aconteceu, Sarah adormeceu, descansando esgotada, mas mesmo assim, contente, com um pequeno sorriso no rosto.

~~

O restaurante, ficando numa avenida movimentada, abria cedinho, seis da manhã, para servir café da manhã às pessoas que trabalhavam por lá. As aulas de Sarah seriam de manhã, então ela entraria a tarde no serviço, mas como só começariam dali a duas semanas, Rúbia pediu pra que ela começasse de manhã nos primeiros dias.

E lá estava ela, 05:30, sentada em frente ao Recanto da Rúbia, esperando alguém chegar pra abrir a porta de aço (daquelas de correr, que abria pra cima). Esperando, esperando, esperando. Sarah percebeu que tinha adormecido quando levou um cutucão:

– Acorda. Você é a novata? - uma voz masculina, meio inexpressiva, perguntou - Sai da frente pra eu abrir.

Sarah esfregou os olhos e se levantou, encarando de cima (já que era uns bons 10 centímetros mais alta que ele) o garoto mal-educado, branquelo, de cabelos curtos ridículos, e de olhos verdes que pareciam dois montes de musgo, que deixou sua costela dolorida. Ele a encarou de volta, e foi então que perceberam:

– SARAH?

– GABRIEL? - os dois falaram ao mesmo tempo.

~~

– Ei, Tromb’s! - Sarah disfarçou, escreveu mais um pouco no seu caderno, e se virou na direção do sussurro a sua esquerda - Essa é pro de Castro, não esquece do aumento por conta dos riscos - uma garrafa rolou delicadamente entre as duas mesas.

– Castro! - Sarah murmurou, encaixando a garrafa na mochila a sua frente - Sua dose de cafeína diária. Quase fomos pegos dessa vez, os inspetores resolveram revistar todos os armários. Você conhece o esquema! - ela fechou a mochila - Não seja pego e se der azar, você não nos conhece!

– Cara, isso é um assalto! - resmungou o garoto loiro a sua frente sem olhá-la, depois que Sarah falou o preço. Ela riu.

– É o nosso trabalho, velho... - murmurou de volta - Temos os nossos riscos, precisamos ganhar alguma coisa com isso!

– Assalto a mão armada! - ele meio que riu, meio que reclamou. Dava pra sentir seu desgosto com o preço. Algumas notas foram jogadas por debaixo da carteira. Sarah disfarçou, copiou mais algumas linhas do quadro, já com o pé sobre as notas, e então abaixou e as recolheu.

– Entrega feita, Carranca, qual é a próxima?

– Pro Santos, Trombadinha... - Gabriel respondeu - Essa vai ser difícil, ele tá longe.

– Bilhetes dão um jeito nisso!

~~

– Nós quase fomos pegos naquele dia, por sua causa! - exclamou Gabriel enquanto os dois se lembravam de suas histórias favoritas do “tráfico de Coca”.

– Tudo friamente calculado, você que se apavorou feito uma mocinha! - retrucou a garota com um meio sorriso.

– Eu que me apavorei, é? Não foi você que completamente entregou as pontas pro professor?

– Ah Qual é?! Ele é um sonso, nem tinha visto nada!

– Como você tinha tanta certeza?

– Eu sabia, ok?!

Os dois já estavam em pé, quase aos berros na frente da loja ainda fechada, quando ouviram a risadinha enérgica da senhora bem conhecida que assistia a cena. Depois de explicada a história, Rúbia riu com gosto da discussão que presenciara:

– Um pouco de agitação, vai ser divertido! Que maravilha! - a dona do restaurante falou.

Sarah de vez em quando duvidava que Rúbia realmente era velha, pelo jeito que ela agia.

– Que maravilha... - Gabriel repetiu, num tom absurdamente desanimado, enterrando a cabeça numa das mãos.

~~

O primeiro dia de Sarah no restaurante não foi tão ruim como ela imaginava que poderia ser. Tirando os pratos que ela quebrou, os copos que virou, o corte que conseguiu dar na mão de outro garçom, e o saco de moedas que deixou cair e se espalhar, ela foi bem melhor do que o esperado. Sarah realmente não sabia o porquê de ter sido apelidada de "Saratástrofe" por Rúbia, que chegou a ficar roxa de tanto rir.

~~

Por volta das quatro da tarde, horário de movimento lentíssimo (Sarah estava deitada em duas cadeiras, quase babando), um homem cabeludo, com uma camiseta de banda de heavy metal, entrou no restaurante:

– Tia Rú! - ele falou animado, mas com um quê de tristeza - Cara, obrigado mesmo por todos esses anos! Foi show, de verdade! - disse, entregando um chaveiro com duas chaves nele.

Vendo a cara de "mas oi?" de Sarah, Rúbia explicou que ela era dona do prédio todo, não só do restaurante. Os apartamentos dos dois andares de cima eram alugados a alunos das faculdades que precisavam de algum lugar pra ficar, principalmente quem trabalhava no Recanto mesmo. Gabriel e o homem cabeludo (Jonathan) dividiam o mesmo apartamento, mas agora que Jonathan terminara o curso, estava se mudando de volta pra cidade natal.

– Muita sorte e muito sucesso pra vocês aí, viu? - os olhos do homem estavam úmidos - Tia Rú, Gabriel, galera, falou!

Enquanto Jonathan terminava de se despedir, uma ideia estalou na cabeça de Sarah. Ela precisava de um lugar permamente pra ficar. Uma vaga pra apartamento acabara de abrir, logo em cima de onde trabalhava.

– Tia Rú? - Sarah a chamou, subitamente tímida - Posso falar com você?


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!