Pele E Alma escrita por Lipe


Capítulo 4
Lembramos


Notas iniciais do capítulo

Nostalgias



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A noite chegara depressa. Depois do almoço eu havia subido as escadas e desde então, permanecido no quarto, fazendo aquilo que eu melhor sei fazer enquanto espero o sono do Mogli: nada. Por mais que eu não incomodasse fisicamente, havia algo na minha consciência que me impedia de ficar perambulando pela casa, observando o comportamento íntimo das pessoas – ok, às vezes eu quebrava isso quando se tratava do que é “meu”, mas eu tentava obedecer as regras o máximo que conseguia – e suas conversas.

Por exemplo, Mick passara grande parte da tarde conversando com Núbia, provavelmente contando tudo sobre “o Carlos”. Espero que ele tenha inventado alguma história porque não é muito corriqueiro namorar um fantasma. Ela o acharia lunático demais, ou até mesmo louco e, convenhamos, qualquer um assim o veria.

Bom, a questão é que eu os deixei livres para conversar, sobre o que quisessem, sem que eu estivesse presente. Eu saberia tudo depois, de qualquer forma. Ele sempre me conta e eu sou paciente para esperar pelos seus relatos. Depois que a gente morre, esperar e ser paciente são as duas únicas opções que temos. Um dia vocês saberão como é...

Mogli veio se deitar muito antes do horário que estava acostumado, não parecia nada bem. Seus parentes, inclusive, foram embora mais cedo, pois ele havia sentido um forte mal-estar, se desequilibrado na escada e por pouco não caíra. Deixaram recomendações de repouso, receitas de chás, e decidiram partir, para evitar incômodos e barulhos de conversas.

Eu me doía em impotência e preocupações, pois nada poderia fazer enquanto ele estivesse acordado e, infelizmente, seu sono estava bastante leve, como se desse leves solavancos. Eu só conseguia me “equalizar” quando ele “sintonizava” determinada “freqüência”. Para piorar, seus pais visitavam-no de intervalo em intervalo - era quando o barulho de porta o despertava.

A noite ia adiantada e eu fazia vigília nos pés da cama, atento a qualquer movimento ou respiração descompassada. Ele fez mais: bastante lúcido, sorriu e sussurrou:

– Desculpe-me estar assim, não consigo dormir, apesar do sono e das saudades que sinto de você.

Respondi, em silêncio “tudo bem, meu amor, estarei aqui”.

– Estou bem, me sinto muito bem. Só acho um pouco frustrante passar a noite de “um ano de namoro” distante do nosso parceiro. Desculpe-me não conseguir dormir.

Nossa! Eu me sentia como se houvesse me transformado num (ex) quadro de vidro despedaçado em milhares pelo chão. Como é que eu poderia ter me esquecido desta data tão importante? Quer dizer, o tempo corria de forma tão diferente dentro desta “realidade” que ficava difícil me localizar. Mas esta data, esta data era uma exceção. Eu poderia ter feito um parâmetro, algo do gênero... Poderia ter feito tudo, menos esquecer esta data. Senti-me, mais do que nunca, um inútil. Não havia tempo para crises, meu Mogli continuava a falar:

– Sabe, eu fecho meus olhos e nosso primeiro encontro me vem tão nítido na memória.

No mesmo instante me peguei revirando o cérebro, buscando no fundo das gavetas uma espécie de caixa com rococós dourados e dizeres em itálico "o melhor dia da minha vida". Abri-a como quem anseia pela caixa "oposta a de Pandora", e me permiti beber destas boas lembranças...


Flash Back


– Oi, eu sou Carlos - disse a ele.

– Oi, Carlos, sou Mick e este é meu sonho!

Sorrimos.

– Eu sei, desculpe-me estar aqui, como um intruso.

– Como assim, um intruso?! Você é projeção da minha mente. Bom, pra falar a verdade, só não sei de onde conheço seu rosto, não me parece familiar...

– Você tem razão quando diz que esse é seu sonho, a sua projeção... Agora se eu sou seu– sorri malicioso – ah! Isso depende... De suas respostas.

Ele estava sentado no galho de uma árvore gigantesca, uma árvore que eu não pude identificar a espécie, de tantos frutos diversos que possuía. As folhas eram livros, dentre os quais eu me recordo de alguns exemplares de Stephenie Meyer, Rick Riordan, Anne Frank, Oscar Wilde e J. K. Rowling.

O tempo se parecia com o verão indiano em meio a um inverno rigoroso. Sob o gramado, repousava uma fina camada de neve, mas a sensação térmica era bastante agradável. O sol brilhava radiante no horizonte dividindo seu protagonismo com a lua que, a pino, bem próxima de nossas cabeças iluminava a face de Mick de um jeito tão especial, ressaltando sua tez sem imperfeições.

Ele estava com os pés descalços. Vestia jeans e camiseta branca, de um tecido que parecia que a qualquer momento iria se dissolver em contato com o ar, de tão fino, tão etéreo.

– Respostas? – perguntou-me.

– Sim, respostas.

Em minha voz, eu destilava todo o tom de sedução do qual eu poderia recorrer, sempre malicioso. Continuei:

– Eu vou ser direto e espero que você não se assuste. Eu já lhe conheço suficientemente bem pra saber que você é muito corajoso...

Sorrimos

– Hei intruso, como assim “me conhece”? – forjou na voz um tom áspero de raiva, mas o sorriso em seu rosto falseou sua intenção de me intimidar.

– Você é péssimo ator, também. Lembro-me de você ensaiando em seu quarto para a apresentação de final de ano na escola. Digamos que há muito Julieta não tem um Romeu tão... “Sem palavras”.

Ele entreabriu os lábios, um pouco transtornado e inibido com minhas insinuações, mas hesitou. Eu prossegui:

– Desculpe-me a brincadeira, evidentemente, estou tentando bancar o chato e te tirar um pouco do sério.

– Percebi – ele retrucou, sorrindo, tergiversando –. Este, de longe, é o sonho mais estranho que eu já tive.

– Bem, então é um sonho muito real... Quer dizer, eu me pegaria citando Raul Seixas neste exato momento, mas, deixemos isso para outra hora. Tenho algo um pouco fora do comum para lhe contar, talvez um segredo, tome-o como quiser, e falar do “maluco beleza” estragaria toda essa situação que eu imagino há algum tempo.

Mais uma vez ele sorriu, meu coração saltou.

–Espero que você seja corajoso para agüentar isso... Enfim, sou um fantasma.

Num pulo, ele desceu da árvore e se aproximou. Tocou minha face com a ponta do dedo indicador, depois a alisou com as duas mãos, curioso. Eu por dentro inflamava, mas permaneci totalmente imóvel, acompanhando-o apenas com meus olhos que se moviam a cada movimento dele. Tudo me era tão novo também.

– Bizarro. Você parece tão real – disse-me -. Isso muda completamente a minha concepção de fantasmas... Seu tom bronzeado, seus olhos verdes, seus músculos – ele afagava meu peito pressionando-o ligeiramente, com cautela. - O que eu quero dizer é que você não é nada assustador com essa roupa “jaqueta de jogador de futebol americano”, pelo contrário... – estas últimas palavras foram quase inaudíveis.

– Desculpe-me se estraguei suas fantasias, mas é a verdade: sou um fantasma e o pior, um fantasma apaixonado! – Vomitei gargalhadas quando disse o “apaixonado”, ele fez cara de interrogação, ainda bem -. Bom, acreditas em mim, que sou um fantasma?

– Isso continua me parecendo bastante confuso, a começar pelo fato de estarmos num sonho. Por que não me apareces quando eu estiver acordado? Assim veremos se eu sou realmente corajoso e se o que você me diz é verdade.

– É simples: porque eu não consigo. Houve um tempo em que só pensava em assombrar você e sua família. Eu estava completamente perdido em sombras, confuso com a morte dos meus pais e a minha própria num acidente de carro. Precisava descontar em alguém, sentia-me mais aliviado fazendo isso. Diversos episódios “sobrenaturais” aconteceram aqui em casa e seria perfeito se eu conseguisse me personificar para assustá-los; seria tão mais fácil, mas eu não consigo, não dá. Ainda assim, consegui perturbá-los, levitando chaves do carro, movendo cortinas, fazendo barulhos assustadores, ou agindo em pesadelos, a ponto de sua mãe chamar um padre para vir benzer a casa e a família, como um todo. Já adianto que não resolveu nada, apenas serviu para que eu percebesse que vocês estavam me levando realmente a sério e que, em breve, eu triunfaria e teria a casa, que um dia foi meu, livre de intrusos. De alguma forma estou preso a este lugar, há uma barreira que me impede de sair pelas ruas e vagar sem rumo. Já que eu teria de ficar pra sempre aqui, pensei que fosse melhor permanecer só. No entanto, ainda não consegui descobrir como, um sentimento de luz grandioso começou a surgir dentro do meu espírito de sombras, e eu já não me sentia bem vendo vocês tristes.

A expressão de Mick era indescritível. Seu rosto parecia se contorcer de agonia pelas lembranças de medo que vinham à tona, ao mesmo tempo em que seus olhos me transmitiam compaixão. Já me sentia um completo irresponsável por despejar em cima dele tanta informação de uma só vez.

– Hei, acalme-se, não quero vê-lo triste – disse eu, tentando consertar as coisas. - Eu já estou bem e garanto que não farei mal algum a você ou a sua família.

– É que tudo isso, a morte dos seus pais, a sua morte, nossa, deve ter sido uma barra, é tão triste... Por que você não tentou se aproximar de mim antes? Eu poderia tê-lo ajudado, de alguma forma.

– Há algum tempo venho ensaiando este nosso encontro, mas me faltava coragem, aliás, ainda falta, mas algo forte me impulsionou e cá estou. Este foi o momento certo para encontrá-lo, se eu tivesse vindo atrás de você antes, talvez não soubesse me expressar com as palavras certas, as palavras que eu sinto que devem ser ditas agora.

– E o que você quer me dizer? – Disse tomando-me pela mão - Prometo-lhe a minha amizade fiel, você pode confiar em mim.

Hesitei por um instante, surpreso com as mãos dele nas minhas, com o toque de sua pele. A sensação é a de que eu não conseguia mais respirar, que o ar me faltava e que, sim, eu iria morrer, pela segunda vez, entalado com essa bolha de palavras na garganta.

– Hum... É que... Bem... – Enrolei, olhando para o chão.

Suas pequenas mãos pressionaram com mais força meus dedos e seus olhos buscavam os meus de modo que quando os encontraram não consegui desprendê-los.

– Eu me apaixonei por você – Sussurrei -. Não consigo para de te olhar, de te buscar em qualquer canto da casa. Quando você se afasta minha mente se perde no tempo, se afoga em lembranças ruins, de dor, mágoa e sombras. Amar você me traz a certeza de que há um lugar bom lá na frente. Pode soar como um clichê mas, sim, você é aquela luz no fim do túnel eu quase estou alcançando, tocando, beijando... Minhas mãos tocavam-no a face, e meus lábios romperam a distância que os separavam dos dele - não pude evitar.

Como se estivesse despertando, ele se afastou de mim. Um átimo. Sua expressão era monocórdica , me transmitindo um único significado legível: o doce sonho que eu esperava cultivar se converteria num belo (o mais belo de todos) pesadelo.






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Notas finais do capítulo

Gente, o capítulo ficaria muito extenso se eu continuasse o flash back. Então optei por concluí-lo no próximo capítulo e aproveitei o fio para deixá-los(as) curiosos(as). Espero que vocês sejam pacientes e adorem esta história que já está caminhando para o fim. Até a próxima!



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