Utopia escrita por tsubasataty


Capítulo 26
Capítulo 25




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Parei em frente à confeitaria e encarei a porta. Só depois de fechar os olhos e respirar fundo foi que entrei. Alguns clientes estavam circulando pelo lugar. Não havia muitos, mas eu quase esbarrei em um senhor com uma caixa de doces na mão quando eu ia até o caixa. Peguei o crachá com minha identificação e troquei de lugar com a Marília, que era quem administrava o caixa de manhã. Ainda não tinha conseguido encontrar a dona Vera e me ocupei então com meu trabalho, já que era para isso que eu estava ali.

Logo que a fila de pessoas que vinham pagar cessou, aproveitei essa chance para olhar em volta e ver se a encontrava. Vasculhei a sessão de salgados, quitandas e a entrada. Minha visão parou ali. Um homem de pele muito clara, que em contraste usava um terno tão escuro quanto seus olhos, me encarava. Ele não se mexeu, mesmo percebendo que eu o observava. Procurei no fundo da minha memória para ver se conhecia aquele rosto só que não adiantou nada. Era a primeira vez que nos víamos.

Abri a boca para perguntar o que ele queria, porém minha voz foi apagada assim que escutei a voz de dona Vera próxima de mim. Por reflexo, virei o rosto na direção do som e a encontrei atendendo uma mulher na sessão dos bolos. Ela parecia estar com dificuldade em pesar alguma coisa então decidi ir até ela para ajudá-la. Enquanto avançava pela confeitaria, olhei outra vez para a entrada. O homem tinha desaparecido.

-Precisa de ajuda, dona Vera?

Ela olhou confusa para a balança.

-Não sei como pesar esse bolo.

Mostrei a ela a tabela de preços do quilo dos bolos e onde digitar e imprimir o valor total do produto. Dona Vera repetiu o que eu disse e quando o ticket foi impresso, o entreguei à mulher que comprara o doce. Ela agradeceu e se afastou, indo se encontrar com uma criança que segurava um prato de salgados nas mãos.

-Obrigada, querida - dona Vera disse, se virando para mim - Ultimamente ando esquecendo de algumas coisas, acho que minha memória está ficando fraca mesmo.

Esforcei-me para sorrir. Então ela ainda não tinha se recuperado totalmente de ontem.

-Hum... dona Vera, você se lembra de mim? - perguntei com a voz embargada.

Vi seus olhos lerem meu nome no crachá pendurado em volta de meu pescoço.

-Camila... já ouvi esse nome antes, mas não me lembro onde. Me desculpe.

-Não, tudo bem. Espero que consiga suas lembranças de volta.

Me virei para esconder a expressão de pena e tristeza que avançou sobre meu rosto e retornei para o caixa. Passei o resto do dia torcendo para que ela se lembrasse de tudo. Dona Vera ainda andava e conversava descontraidamente como antes, porém, uma parte dela tinha sido apagada, assim como suas memórias.

Logo que faltavam poucos minutos para a loja fechar e o dia afora começava a escurecer, todas as minhas esperanças haviam praticamente sumido e só o que eu queria agora era ir embora. Eu estava atendendo ao último cliente quando ele apareceu novamente. Desta vez, o homem estava com uma roupa esportiva azul - como se quisesse se camuflar entre as paredes -, e não ficou parado na entrada. Ele veio apressado até onde eu estava que eu quase levei um susto quando o vi de repente. O homem colocou as mãos sobre o balcão e, assim que leu o nome que constava em meu crachá, um sorriso de satisfação quase maligno ocupou seu rosto.

-Camila Rezende, finalmente te encontrei.

Avancei um passo para trás.

-Quem é você? – perguntei, rezando para que não tivesse nada a ver com o que eu estava imaginando.

Para meu desespero, ele resumiu tudo em uma única palavra:

-Advogado.

-O que tá acontecendo aqui? - Karen perguntou, já estando ao meu lado.

-Sinto muito, senhora, mas esta garota precisa vir comigo. Receio que ela não possa mais ficar vagando sozinha por aí.

-Não! - o interrompi em pânico - Eu não preciso de você. Me deixa em paz!

Nem esperei a resposta dele e corri rumo a entrada da confeitaria. Ele tentou me segurar pelo braço, mas eu me esquivei dele e continuei correndo. Todo meu corpo suava frio e meus pés pareciam pesados como ferro. O que eu mais temia estava bem diante de mim, querendo tirar o resto de felicidade que ainda me restava; era um pesadelo impossível de acordar. Escutei passos atrás de mim, e mesmo assim, me recusei a olhar para trás. Eu estava a menos de um metro da porta quando alguém apareceu bem na minha frente e cobriu minha rota de fuga. Parei subitamente. Eu conhecia aquele rosto. –Não... - levei minhas mãos à boca e só então vi como elas estavam tremendo.

Uma mão áspera me segurou pelo braço.

-Nem pense em fugir - o advogado disse arfando.

-Solte ela, Murilo. Ela não vai fugir, não é, Camila?

-Doutor Antônio... - eu estava quase me desfazendo em lágrimas. Não queria que eles me levassem embora - O que você tá fazendo aqui?

Ele andou alguns passos até ficar diante de mim. Nesse momento, a mão que apertava meu braço se soltou. Eu estava livre, contudo, não conseguia me mexer.

-Eu estava te procurando.

Lancei um olhar de súplica para ele. Não diga isso com essa voz tão serena e gentil, doutor. Isso machuca demais.

-Por que você fugiu?

Aquelas palavras me atingiram com amargura.

-Não é da sua conta - respondi secamente.

Ele não ficou nem um pouco abalado. Doutor Antônio colocou a mão no bolso e tirou um pequeno papel dobrado.

-Já que você não quer me escutar, leia pelo menos isso, por favor.

Ele estendeu a mão e eu, mesmo um pouco hesitante, peguei o papel.

-O que é?

Uma cópia do testamento de seus pais.

Arregalei os olhos, aturdida.

Que tipo de pessoa escreve um testamento e depois se suicida?! Essa pergunta não saiu da minha cabeça.

Ainda com as mãos trêmulas, me concentrei no papel e vi que a caligrafia e as assinaturas eram mesmo deles. Não era um texto enorme, pois, naquelas poucas linhas, eles não falaram deles, nem se despediram; eram apenas palavras sem emoção. O que dizia era que a casa já estava vendida antes de os dois morrerem e que o dinheiro estava já depositado no banco, sendo que, como eu ainda não tinha 18 anos, só era permitido eu tirar certa quantia por mês. Não mencionaram nenhum parente, entretanto, o que mais me chocou foi a última parte do testamento: o valor do carro - que também tinha sido vendido - seria usado para pagar a cirurgia que removeria esse tumor de mim.

Eu me livraria do câncer.

Eram palavras belas demais para serem verdadeiras.

-Essa cirurgia... vai tirar todo o tumor ou eu ainda vou ter câncer?

-Se não o deixarmos avançar e fazer a cirurgia logo, as chances são maiores que 90%.

-E morar sozinha? Não tem nada aqui explicando sobre isso.

Antônio lançou um olhar para o advogado ao meu lado e prosseguiu:

-Talvez.

Cerrei os punhos.

-Parem de mentir para mim! - gritei.

Amassei o papel com as mãos e vendo uma passagem segura até a rua, usei de todas as minhas forças para sair dali. Murilo e o próprio Antônio tentaram me impedir, só que eu me desviei deles e corri. Sabia que iria sentir aquela dor de sempre e que minha respiração podia falhar do nada, mas essas foram as escolhas que eu fiz; não iria permitir que eles me tirassem isso.


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