Bons Motivos para Cometer Um assassinato escrita por Sixpence Angel


Capítulo 10
Capítulo 10: A Mais Simples das Fórmulas




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Na ansiedade de que tudo desse certo e de voltar rapidamente pra casa, me encostei a um dos muros laterais da medíocre construçãozinha para fumar um cigarro.

Aquela terrível fumaça que me acompanhava desde os vinte e três! Ao lado dela vivi alguns dos melhores e piores momentos de minha vida, impulsionado pelas modinhas da cidade grande. Impressiona-me a quantidade de cigarros que eu fumava quando comecei! Mas na época em que essa história, não fazia muito tempo que incessantes crises de tosse me afetavam a garganta, por isso meu médico havia me dado um ultimato: ou parava ou acabava contraindo algo bem pior do que uma asma; por isso fui obrigado a diminuir bruscamente a quantidade de cigarros.

Me assustei ao ver ao ver a cabeleira castanha de Marie sacurdir-se furiosamente pra fora de uma janela próxima a mim (que eu ainda não havia notado).

- Então é daqui que vem a fumaça! - exclamou ela - Pode parar só um pouquinho? Está empesteando a cozinha!

- Já pensou em fechar a janela? - bufei.

- A cozinha ficará muito abafada se eu fechar a janela - replicou - Oh! Veja só com quem estou falando! Jamais soube como é limpar uma cozinha...

- Sei perfeitamente como é - repondi-lhe - Eu fui recrutado para trabalhar na cozinha durante a guerra.

- Na cozinha?! - gargalhou - Enquanto os outros estavam em campo de batalha você estava na cozinha!

- Ao menos eu servi à Pátria! - exclamei, indignado - E dei graças a Deus por não ter ido ao campo de batalha!

- Então não é um patriota? Devia envergonhar-se - disse ela, tomando uma expressão grave - Aposto que é comunista! Deviam acusá-lo por comunismo.

- Eu já fui injustamente acusado de ser comunista.

- Como se safou do exílio? - perguntou, interessada.

- Duas palavras: bons advogados.

- Esse governo me enoja! - brandou - Está bem, mas agora apague esse cigarro ou vá fumar em outro lugar - e que não seja aqui dentro!

Ignorei-a e continuei a fumar meu cigarro; ação que foi prontamente respondida com um copo de água gelada direto em minha face. Pelo susto, me entalei com a fumaça.

- Ai de você se eu tivesse em mãos um balde de água! Afinal, você não quis parar por bem... - disse enquanto estapeava-me as costas.

- P-pare! - exclamei entre tosses - Está tentando me matar também?!

Quando consegui parar de tossir, ouvi a voz de Mrs. Teapie vindo de outro cômodo.

- O que está acontecendo aí? - perguntou - É aquele pobretão do Joe que anda à te atazanar de novo?

- Oh, não, mamãe! Eu estava regando algumas flores - respondeu Marie - Dá pra acreditar que há umas lindas crescendo ao pé da janela? Não sei de que espécie são, mas elas têm pétalas amarelas e miolinho vermelho...

- Está bem, mas tenha certeza que não são ervas daninha ou qualquer outra planta que vá estragar a parede - dá muito trabalho consertá-las!

- Sim, mamãe.

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Na época de 1920, a juventude fazia mil loucuras para ter o mínimo de reconhecimento. Uns queriam se meter no ramo musical (o jazz movia motanhas! Era uma língua universal), outros no esportivo, mas o cinema era indiscutivelmente adorado. Não havia uma só criatura que não usasse o tempo livre para se meter numa sala de cinema, independendo da classe (cá entre nós, eu gostava muito dos filmes do bom Orson Welles[1], mas na década de 20 ele ainda nem sonhava em fazer cinema). Os filmes vaudeville[2] e romances eram reverenciados pelo público.

Eu tinha um pouco de conhecimento sobre o ramo cinematográfico e tenho de admitir que John me ensinou tudo o que eu sabia. Houve épocas em que eu ia e vinha pelos sets de filmagem e, falando relativamente, poucos tinham acesso a esse mundo, senão, todo o encanto e glamour se perderia.

Quase todos os dias formavam-se grandes filas em cada estúdio, uma para a figuração e outra para testes. Em geral, a de figurantes era a maior e cheia de rostos desconhecidos; aventureiros. Na de testes, havia gente desconhecida e uns e outros que já haviam participado em papéis pequenos nos filmes, mas todos eram convidados por produtores, diretores ou caça-talentos. Às vezes eu passava o dia nos sets e quando voltava ainda havia gente nas filas.

O resto era gente apressada andando dum lado pro outro. Fios e mais fios, câmeras, máquinas mirabolantes (hoje, nem tão) e a voz estridente de um diretor estressado enchendo os sets.

Dos jovens aspirantes a atores e atrizes, da figuração ou não, a maior parte não levava à sério, mas haviam uns que se dedicavam de corpo e alma a atuação. Esse era o caso de Annie Lorring.

Naquela tarde, a pobre saira cedinho (sim, depois da pequena discussão com Marie) para ir até Hollywood, em Los Angeles e acabara por torcer o pé quando descia do bonde. Logo que chegara foi "rebocada" por Marie até que se acomodasse no sofá.

Marie apressou-se em procurar o kit de primeiros socorros. Tratei de puxar assunto com Annie, já que ficar sozinho o dia todo já estava me deixando deprimido. Perguntei-a sobre o teste e ela respondeu melancolicamente que não havia passado.

- Ei! - exclamou ela - Como sabia que eu ia fazer um teste?

Antes que eu começasse a balbuciar palavras desconexas, ela continuou:

- Aposto que aquela danadinha foi chorar as mágoas com você, não foi? - riu-se ela.

Acabei por concordar com a história, afinal, não era nada bonito vangloriar-se de ficar ouvindo discussões atrás de portas.

- Pobrezinha... - supirou Annie, abandonando o tom zombeteiro - A única vez que a vi tentando se afastar foi quando trabalhou como camareira num lugarzinho de nome engraçado (um teatro, eu acho)...

Por fim, acabei compreendendo que as duas mais pareciam irmãs que se admiravam tanto à ponto de brigar do que duas rivais.

Eu tinha por Annie uma tenra afeição. Em tudo me lembrava um pássaro de voz chilreante e movimentos espoletas e fazia-me também recordar de uma priminha que tinha a mesma idade dela. Os olhos dela eram de um verde vivo que brilhava mais ainda quando falava de cinemas, estúdios, filmes e outras coisinhas que faziam parte de seus sonhos e seus cabelos castanhos, embora não passassem dos ombros, eram considerados para a moda da época. Da roupa que usava no dia, só o que recordo é o chapéu azul, que era o que provavelmente procuravam pela manhã.

Do jeito brusco de sempre, Marie entrou na sala segurando uma caixinha branca de cruz vermelha desgastada. Executou eficientemente o curativo e retirou-se tão muda quanto entrara.

Annie ficou à me olhar com curiosidade.

- Sabe de uma coisa? - pergunto-me - Você me parece familiar... Já nos conhecemos antes?

- Não creio... cabelos e olhos negros, magrelo alto; um rosto bastante comum, sabe? Não sou nenhum... John Ashton - respondi lembrando-me vagamente de meu velho "amigo".

- Oh, sim! Ele é bonito, mas o senhor também não é de se jogar fora!

Eu teria ficado desconsertado com a obsevação se os berros chorosos de Henry não tivesse tirado nossa atenção. Não precisei pensar muito para descobrir que ele discutia com sua ex-mulher.

- Então, é sempre assim, não?

- Sim - sua voz agora perdia a musicalidade - Seria melhor, para ambos, que se separassem...

Ficamos em silêncio, enquanto frases como: "Sei que não gosta da vida que levo..." chegavam à sala dolorosamente...

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Perdi parte do meu apetite durante o jantar. Meu estômago embrulhou ao ver uma corpulenta e desconhecida figura adentrar a sala pela porta da rua, sem nos dirigir ao menos um simples murmúrio de "boa noite": deduzi automaticamente que era Marcus Teapie.

Era um sujeito realmente asqueroso, de corpo e de alma, talvez o mais que eu tenha conhecido. Sua presença incomodavá-nos. Talvez eu até lhe atribuísse uma imagem respeitável, de militar ou chefe de família, isso se ele não estivesse completamente embriagado e se eu não soubesse de sua conduta - mas havia algo além disso - algo que não era possível definir, talvez fosse um conjunto de expressão, postura e espiríto que aumentasse a sensação de que ele era irritante. Fato é que esse último estava presente: mesmo sem abrir a boca, ele despertava o pior de nós.

De bigodes empoados, roupas caras e olhos vermelhos em decorrência da bebida, ele aprumou-se no sofá e ordenou à Mrs. Teapie que lhe trouxesse o jantar.

Admito que não me lembro de muita coisa daquela noite, nem de como se sucederam os fatos da mesma. Eu estava demasiadamente ocupado em analizar a criatura que jazia no sofá, portanto não notei nada mais so meu redor.

De fato as ideias me afloravam melhor em vê-lo de perto. Nos livros, era bem mais fácil idealizar um assassinato, pois eu criava meus personagens e sabia deles o necessário, como suas angústias e passados. Ficar perto de meu alvo me possibilitava fazer um quadro melhor disso.

- Gente estúpida! - murmurou ele, com palavras contorcidas - Deviam ajoelhar-se diante de minha bondade. Sei perfeitamente como me livrar de cada um de vocês.

Sei que em determinado momento, ele estendeu um dos braços e ligou o rádio à todo volume, como se não houvesse mais ninguém na sala além dele.

A voz tremida de Mrs. Teapie tentou ultrapassar o volume em um apelo de paz.

- Querido, venha jantar conosco - ela voltou os olhos para Vitor - Faça-me um favor, Vitor? Vá lá em cima e pegue uma cadeira para...

- Não preciso de cadeira alguma! - grunhiu Marcus - Tenho por vocês nojo. Vou rir quando estiverem debaixo da ponte!

- Fala como se tivesse grana para morar em outro lugar - murmurou Scott.

- E eu tenho, meu caro! Eu tenho! - exclamou debochadamente - Diferente de você, que agora terá mais duas bocas para alimentar, afinal, os Wilson não vão querer deixar a filha ser mãe solteira.

- Cale sua boca, velho gagá! - berrou Scott, levantando-se da mesa bruscamente - Você não tem nem sequer o direito de falar de Cheryl!

De imediato, deixou-se cair novamente na cadeira e pos pra fora toda a raiva que sentia em forma de lágrimas e Henry apressou-se em oferecer a ele um copo d'água. A princípio eu nem imaginava quem eram os Wilson ou Cheryl, mas depois acabei ligando uma coisa à outra e descobrindo que os Wilson eram dois senhores que moravam ao lado e Cheryl a garota de quem Scott gostava (ou ao menos foi isso que dava à entender).

Imaginei que Marie já teria partido para uma discussão há muito tempo, no entanto, continuava sentada à mesa, com uma expressão indefinível, como se houvesse algo invisível em seu prato de comida que estivesse incomodando-a.

- Querido, por favor, pare com isso! - suplicou Mrs. Teapie - Isso não é assunto para se falar durante o jantar - ou em momento algum!

Ele disse algumas palavras que eu não entendi e logo em seguida levantou uma das mãos para agredí-la. Nessa hora, Marie ergueu-se da mesa e partiu pra cima dele. Agora a mão que se direcionava à Mrs. Teapie, descia impiedosamente no rosto delicado de Marie, deixando-o rubro e fazendo-a desequilibrar-se.

Não aguentei ver a cena e deixá-lo impune. Foi-me a gota d'água. Parti pra cima dele, segurando-o pelo colarinho, de punhos cerrados que tencionavam atingir-lo da forma mais forte possível.

- Não faça isso!

A voz era de Mrs. Cynthia Teapie. Ela segurava a minha mão estendida com as trêmulas dela, usando de toda sua pouca força para impedir que eu ferisse seu marido.

Soltei-o, não porque achasse o ato imprudente (e não o seria!), mas por pena da senhora gorducha que tremia da cabeça aos pés.

Marcus foi pateticamente levado ao andar superior por Henry e Vitor, enquanto eu acomodava Marie no sofá e pedia à Mrs. Teapie que pegasse um copo d'água para acalmá-la.

Marie entrara numa espécie de estado de choque. Chorava em silêncio com a cabeça acomodada em meu ombro, sem dizer nada.

- Isso sempre acontece? - perguntei-a, depois que ficou mais calma.

- Se ele me bate? - sussurou - Às vezes.

- Nada mais?

Ela me olhou com os olhos de uma criança que não compreendia minhas palavras.

- Nada mais - respondeu por fim.

Mais uma vez ficamos em silêncio.

- No que está pensando? - perguntou ela, depois de conseguir parar de chorar.

Disviei os olhos de um ponto imaginário na parede para admirá-la os olhos.

- Se quiser matá-lo, mate-o - respondi.

- O que quer dizer com isso?

- Já pensou que se você disparsse um tiro nele, diante dessas pessoas, em um momento de exaltação como esse (que me parecem não ser raros), ninguém ia denuciar você?

Ela me olhou com curiosidade.

- Ainda não entendeu? Eles te amam e odeiam demais aquele cara para te denunciar, querida - disse-lhe - Não é difícil abafar o som do tiro (podemos usar o rádio) e é fácil esconder o cadáver...

- Como pode ser tão frio para pensar em alguma coisa assim, num momento desses? - balbuciou, voltando a chorar.

Pelo tom que usou, hesitei em achar que ela fosse conseguir fazer o que eu lhe disse. Não faltava à Marie coragem e podia até dispensar a culpa, mas alguma coisa me dizia que era apenas, assim como eu, uma boa pilantra e não uma assassina de sangue frio.

Mas eu sabia perfeitamente o que fazer...

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Continua...

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[1]Orson Welles foi um ator e cineasta, famoso pelo inovador Cidadão Kane, considerados por muitos o melhor filme de todos os tempos. Alguns de seus outros filmes foram A Marca da Maldade, A Dama de Xangai, entre outros.

[2]Vaudeville era um gênero de comédia parecido com o do circo, com números de fugas, corridas e gags(uma bastante conhecida era a que um dos atores tentava acertar a maçã na cabeça do outro com uma flecha). Buster Keaton e Charlie Chaplin foram dois gênios do vaudeville.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado do capítulo e me perdoem se pesei um pouco a mão no humor (bendito será o dia em que eu conseguir acertar a dose!). É bom frisar que as chances de que eu não termine essa fic são muuito pequenas.

Só dois pequenos esclarecimentos antes de terminar: se a continuidade entre as cenas desse capítulo ficou estranha, é porque eu tive que fazer cada parte separadamente (juntos não estava saindo nada, de maneira alguma T.T) e se estranharem alguma diferença nos capítulos anteriores é porque eu estou tentando corrigir erros de português e digitação, além de tirar tudo o que vá me atrapalhar ou me incomodar daqui pra frente.



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