I'm Not Ok escrita por Bones


Capítulo 3
Capítulo 3 - Vivo


Notas iniciais do capítulo

Só uma coisa: adoro irmãos chantagistas!
Boa leitura, queridos!



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Capítulo 3 – Vivo

Geralmente, quando meus dias começavam com surras, eles terminavam da mesma forma. Os dias que eu considerava bons eram simplesmente os que ninguém me notava. Bom, provavelmente aquele soco tinha afrouxado um pouco alguns parafusos na minha cabeça, porque eu tinha achado aquele dia realmente bom. Promissor. Interessante.

Não era todo o dia que eu saia assim, procurando briga, salvando novatos e conversando com desconhecidos sobre as bandas que eu gosto. Confesso que até me sentia mais... vivo. Aquele garoto estranho fez com que eu me sentisse bem de uma forma que há tempos eu não lembrava de estar. Como era mesmo o nome dele? Iero? Com certeza era algo do gênero.

Caminhei mais alguns quarteirões, ainda pensando em formas daquele dia ficar mais estranho do que já estava. Logo estava em frente a minha casa, onde com certeza não encontraria mamãe e papai, mas sim um Mikey rabugento e doente me enchendo de perguntas sobre o olho roxo. Quando não é uma coisa é outra! Mas com Mikey eu sempre conseguia conversar, ao contrário dos meus pais. Eles sempre foram muito bons para nós, bons demais até, e pode parecer papo de matir pseudo-altruísta, mas preferia inventar uma desculpa para alguns hematomas do que ficar preocupando a cabeça deles com bobagens do meu cotidiano. Eu já estava no penúltimo ano, de qualquer forma. Seria o resto deste ano, mais um, e liberdade daquele inferno para mim!

Apanhei as chaves na minha mochila, destranquei a porta e tentei entrar sem fazer barulhos. “Quieto como um camundongo” era o que eu mentalizava, na esperança dos meus pensamentos abafarem meus passos. Gostava muito do Mikey, mas tinha horas que ele e todas aquelas perguntas absurdamente precisas me enchiam o saco, de verdade. A única coisa que eu queria era tomar um banho morno e me afogar feliz no meu travesseiro, sem possibilidades de ser acordado antes das seis e meia da manhã do dia seguinte.

Com meu par de tênis em mãos e o pé direito já posto no primeiro degrau da escada, imaginei que estivesse a salvo de qualquer contratempo em meus planos de atingir a absoluta felicidade.

- Gerard? O que faz aqui a essa hora?

Com o susto derrubei a mochila, o par de tênis, e todo o resto que eu tinha perto de mim no chão. Inclusive eu.

- O que você pretende chegando assim de mansinho, Mikey? Me matar do coração, é? – sentei-me do modo que pude na escada, uma mão no peito e a outra no joelho. Tentava a todo custo me recompor rápido para poder sair dali igualmente rápido.

- Desculpe, é que eu fui à cozinha pegar água. Remédios, sabe? – ele ajeitou os óculos de aro grosso que lhe escorregavam pela ponte do nariz e me mostrou a cartelinha de remédios coloridos que ele carregava. Tentei observa-lo por entre os cabelos. Não queria perguntas sobre o estrago no meu rosto. Eu sabia que a história seria longa, e a minha preguiça era maior que a minha vontade de contar quaisquer “novidades” para Mikey.

- Ahm... – fui me levantando e pegando minhas coisas jogadas na escada, ainda de cabeça baixa. – Bom, espero que melhore logo! Você vai ver, assim que os remédios fizerem efeito você vai se sentir novo em folha! – já estava começando a subir a escada novamente quando ouço um muxoxo atrás de mim.

Ótimo, era tudo o que eu queria. Discutir a relação.

- Que foi? – respondi em um tom choroso, de costas para ele.

- Você não me respondeu porque chegou tão cedo. Ainda são nove e meia! – caramba, ele parecia minha mulher! E se um dia eu me casasse, minha esposa teria que ser o total oposto do meu irmão. Pré-requisito.

- Vai dizer que não está feliz porque eu voltei? – perguntei, com ar de falsa ofensa.

- Fala logo. Eu estou debilitado, não tenho tempo nem ânimo para jogar conversa fora. – sabia exatamente com que cara ele estava, aquele ar superior na voz dele entregava todo o jogo. – Enfim, de qualquer forma, se não contar para mim, vai ter que contar sozinho para a mamãe e para o papai. – ele grifou a palavra sozinho.

Grandessíssimo chantagista aquele meu irmãozinho.

Virei-me para ele, ainda a contragosto, passando a mão pelos cabelos e jogando-os para trás, de modo que meu rosto – e meus olhos – ficassem completamente visíveis.

Observei Mikey em sua reação enlouquecida de sempre passar por mim apressado subindo as escadas de dois em dois degraus, e logo voltando com o tão conhecido kit de primeiros socorros em mãos. Me puxou pela mão e me empurrou no sofá da sala, onde eu me joguei agradecido pela superfície macia, logo cruzando as pernas folgadamente sobre a mesinha de centro. Mikey sentou-se ao meu lado, observando bem o estado do meu olho. Eu estava achando bem engraçado, para falar a verdade. Tinha inchado bastante no caminho de volta para casa e agora eu não conseguia mais abri-lo.

Como Mikey estava do meu lado esquerdo, e um de seus braços me impelia a ficar com a cabeça deitada sobre o encosto do sofá, não pude ver muito bem o que ele fazia, até começar a sentir.

- Mas que porra, Mikey! O que você está fazendo? – eu gritava, mas não tentava sair do lugar, preferia não me arriscar. A dor era grande.

- Se continuar assim, vou arrancar seu olho. E olha que eu estou pertinho... – o maldito me ameaçou, levantando o bisturi próximo ao meu olho direito. Preciso dizer que senti minha alma sair do corpo e voltar?

Esperei ainda mais um pouco na mesma posição, sentindo o sangue escorrer pelo meu rosto dos cortes que Mikey havia feito. Ele limpou meu rosto, fez alguns curativos e sentenciou:

- Tente abrir o olho agora.

E eu consegui abri-lo.

- Caramba, Mikey, onde aprendeu isso? – eu tinha um enfermeiro em casa e nem sabia! Formidável!

- Em uma palestra uma vez. Lembra? Aquela sobre enfermagem que você dormiu. – ele falou, em tom reprovador, cruzando os braços na altura do peito. Se eu dormi, obviamente que eu não me lembrava de nada. – De qualquer forma, seu olho estava muito roxo e inchado, e tudo isso era causado pelo sangue acumulado debaixo da pele. A única coisa que eu tive que fazer foi proporcionar uma abertura pela qual o sangue pudesse sair.

Eu adorava quando ele falava aquelas coisas como se fossem as informações mais óbvias do mundo. Se ele soubesse como eu me divertia com aquilo! Parecia até gente grande!

- Bom... obrigado. Espero não ter que pagar pela cirurgia! – sorri para ele, que estava sentado de frente para mim e ao lado das minhas pernas na mesinha de centro.

- Ah, mas vai me pagar sim. E com respostas. – ele me olhou acusador, mas logo sua pose se desfez em um sonoro espirro.

- Saúde. – eu disse, segurando o riso.

- Obrigado. – ele respondeu fanho, pegando um lenço no bolso do pijama e assuando o nariz. – Mas me diga... como isso aí aconteceu?

- A história é mesmo longa, vai querer que eu te conte tudo? – grunhi de desgosto, me largando novamente no sofá. E os meus planos para a absoluta felicidade, como ficam?

- É melhor contar pra mim do que para a mamãe e o...

- Ta bom, eu já te entendi!

E assim eu contei tudo o que tinha acontecido. O que eu tinha visto, o que eu tinha sentido, o soco, como conheci o Iero, como conseguimos dispensas graças a ele e como ele tinha um bom gosto musical. Era estranho falar dele daquela forma para Mikey. Parecia que éramos realmente amigos de longa data, mas passamos menos de quarenta minutos de um único dia de nossas vidas juntos. Não éramos amigos na realidade. Apenas pessoas que se esbarraram por acaso. E se toda a minha lógica, misturada com um pouco do meu pessimismo, estivessem certos, amanhã ele nem se lembraria de mim.

Mas, mais estranho que falar do novato que eu havia conhecido naquela manhã para o meu irmão chantagista, era o fato dele não ter me interrompido com nenhuma pergunta em um longo discurso de quase cinco minutos.

E Mikey sempre me interrompia. Independente da ocasião. Sempre.

- E... foi isso. – eu disse por fim, esperando alguma reação dele que não fosse um espirro ou um acesso de tosse.

Ele me olhou com aquele ar superior que diz claramente “Não se mova, estou te analisando agora!” e ajeitou os óculos no rosto antes de se pronunciar:

- Bom, pelo menos o hematoma não foi em vão. – ele disse, simplista, juntando o kit de primeiros socorros para guardá-lo e uma pequena sacola com as gazes que ele iria jogar fora.

- Só isso? – perguntei descrente. Estava fácil demais, devia ser algum tipo de armadilha. – Nenhum sermão, mamãe?

- Não sei... você ajudou alguém, e finalmente enfrentou aqueles retardados como eu venho falando para você fazer desde que isso começou. Não acho que precise dar sermão algum, estou satisfeito só com esse estrago na sua cara. – e sorriu sacana para mim antes de ir embora.

- Pare de usar minhas ironias contra mim! – falei alto, mas ele já devia estar em outro cômodo e acabei sem nenhuma resposta.

Aproveitei o momento e subi para meu quarto. Entrei nele e fechei a porta atrás de mim. Infelizmente, todo aquele papo com o Mikey havia tirado toda a minha vontade de permanecer no ócio. Algo dentro de mim queria se sentir vivo como estivera há poucas horas atrás. E, bom, parecia algo inocente para mim: uma pequena mudança em minha rotina. Por que não satisfazer essa vontade?

Logo, depois de um longo banho e belas e confortáveis roupas limpas, desci as escadas e avistei um bolo de cobertas amontoadas sobre o sofá da sala assistindo a um documentário na TV que supus ser meu irmão.

- Mikey, acho que vou sair. Quer que eu traga algo para você ou prefere esquentar alguma coisa da geladeira mesmo? – já estava com as chaves em mãos, sentado no chão, tentando a todo custo enfiar os pés nos tênis sem desamarrá-los. Preguiça é algo triste, não?

- Miojo. – ouvi baixo, entre um assuar de nariz e outro.

- Ok, trago miojo para você.

E dizendo isso saí direto para o supermercado, com meu lindo olho roxo (porém menos inchado), com a emoção de quem vai a um safári.

Era realmente difícil eu sair sozinho, então digamos que eu estivesse me divertindo um pouco mais do que as pessoas comuns quando andam normalmente na rua sem companhia. Bom, na realidade, nem sempre as coisas foram dessa forma. Quando eu era um pouco mais novo, andava pela rua o dia todo, e não interessava se tinha alguém comigo ou não, eu só não conseguia ficar em casa. Estava sempre com o molho de chaves em mãos, pronto para sair. Bom, isso tudo devia fazer parte da minha antiga personalidade, não sei. Eu sentia falta dela... Sentia que ela estava enterrada em algum lugar dentro de mim que eu não podia alcançar. Mas talvez eu estivesse melhor simplesmente como estava. Quem tem muita personalidade no fim sempre acaba se ferrando.

E durante minha divertida ida ao supermercado, vejo uma figura conhecida ao longe. Alto, os cabelos desgrenhados apontando para todos os lados e nas mãos levava duas ou três embalagens de lenços de papel. Ele estava uma cara péssima.

- Ray? – perguntei meio incerto, segurando o riso assim que pude vê-lo melhor. Se antes eu achava que Mikey estava péssimo, é porque eu realmente não tinha visto a cara do Ray antes.

- Fala aí, cara. – ele me cumprimentou sem o menor ânimo, dando um fraco soco em meu ombro. Logo notei a mesma expressão de espanto que Mikey havia feito, só que agora em sua face. – Mas que treco horrível é esse na sua cara?

- Você fala como se não tivesse nada de errado com a sua cara, não é? – sorri irônico, cruzando os braços.

- Palhaço. – dessa vez ele me socou mais forte, me deixando feito bobo massageando o local do golpe. – Como você conseguiu o olho roxo? Aquele pessoal ainda não te deixou em paz?

O tom que ele usava comigo era preocupado. Infelizmente eu sabia que se eu e ele não nos conhecêssemos há tanto tempo, provavelmente ele também me bateria. Sim, eu já vira Ray andando com os mesmos três caras que bateram em mim e no pirralho hoje de manhã. Aquilo não me deixava nem um pouco satisfeito, era difícil pra mim ver uma pessoa legal se perdendo assim. Mas como bem diz a minha mãe, “Cada um que saiba de si”.

- Bom, digamos que eu procurei por isso. – disse simples, suspirando pesado. Ele ainda me olhava intrigado. – Vem, vamos lá pra casa, a história é longa.

E caminhando com ele de volta à minha casa, recontei toda a história que tinha dito a Mikey um pouco antes, tentando não pular nenhum detalhe. Às vezes, quando eu contava algo a ele primeiro, e depois ao Mikey – ou vise e versa – eles ficavam discutindo as informações como duas menininhas fofoqueiras: “Ah, mas não foi isso o que o Gerard me contou!”, “O Gerard me disse outra coisa.”, “Então o Gerard te disse errado, porque o que aconteceu na verdade...”.

A culpa sempre é do Gerard.

Entramos em casa e logo eu ouvi um grunhido vindo do sofá. Aquele monte de cobertas monstruoso e disforme ainda estava no mesmo lugar que eu havia visto antes de sair.

- Trouxe meu miojo? – ouvi a voz abafada de Mikey.

- Trouxe, e trouxe o Ray também. – gritei em resposta ainda no hall, tirando os sapatos e notando que Ray fazia o mesmo.

- Ah, que saco... – resmungou, colocando a cabeça para fora das cobertas rindo um pouco. Só de olhar para ele todo coberto daquele jeito eu já começava a suar. Ele e o Ray também, que usava um moletom fechado até o pescoço. – Bom, o herói já te contou como o dia dele foi incrível sem nós?

Não falei? Ia começar cedo dessa vez.

- Já. – Ray disse sem muito ânimo, mas pude sentir um quê de ironia em sua voz. – Ele é muito valente, muito poderoso, bate em todos os vilões e salva todas as mocinhas! – ele se jogou no sofá ao lado do meu irmão, e lá ficaram os dois, me encarando com sorrisos idênticos e sacanas.

- Ah, parem com isso, palhaços! – resmunguei, rindo um pouco de toda aquela cena, me sentando em uma poltrona próxima a eles.

- Amanhã eu quero conhecer esse tal de Iero. Ele parece ser um cara bacana. – Ray disse, aleatoriamente. – E gosta de músicas legais.

- Não sei nem em que sala ele está. Talvez a gente nem se esbarre. – eu disse, tentando não criar expectativas.

Não queria realmente que eles o conhecessem. Nem eu entendia direito o porquê, mas também não o queria perto de mim. Eu estava bem como eu estava, do jeito que eu estava. Era uma situação cômoda e confortável. Se eu já estava meio conflitante sobre a minha vida e se eu realmente a estava vivendo plenamente só de ter conversado com ele uma única vez... O que seria depois?

A verdade era que eu estava com medo. Medo de mudar. Medo de voltar a ser como eu era: verdadeiro, original e saco de pancadas. Eu só não queria confusão. E algo me dizia que o Iero era a própria confusão.


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Notas finais do capítulo

Admito que ri escrevendo esse capítulo. Adorei fazer o Mikey desse jeito, e mostrar como Gerard interage com outras pessoas fora da escola. Notaram que ele muda um pouco?
Bom, ele está confuso por causa do Frank... o que vai acontecer agora? Será que ele vai evitar o Frank?
Eu odiaria se isso acontecesse, mas pode acontecer, não sei...
Só lendo o próximo capítulo para saber, hein?