K - - - escrita por petit_desir


Capítulo 1
Primeira visão: Você luta para MORRER!




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Naquele momento, apenas o silêncio. O frívolo silêncio. O que ele poderia esperar a mais do que isto? Solidão, escuridão, podridão. Era tudo que ele sempre havia recebido, desde que se lembrava. Agora, lá estava ele, deitado no chão, olhando o vão, procurando uma oração. Ele não sabia mais rezar. Quanto tempo levou para que ele percebesse isso?

O gotejado parecia jamais acabar. Uma a mais. E mais uma. E mais uma... Até quando? E mais uma. Ele se revirou dentro da camisa de força e depois deu um suspiro cheio de desânimo e dor.

Estava amanhecendo, então... Ele novamente olhou para o teto, procurando as frestas que sempre via nele. Com sorte, alguns raios de sol passariam por ele hoje, invés de aumentar o gotejado com a chuva forte, que sempre fazia. Ele olhou mais uma vez para o teto, com uma nítida esperança e... A chuva começou a ressoar através das paredes, logo, a gotejar pelas mesmas frestas que ele olhava antes com tanta veemência. Fechou os olhos, em um choro desesperado. Procurou novamente uma oração e nada.

Já adormecido, ratos andavam por seu corpo, mordendo suas roupas, rasgando-as e comendo-as, sem que K. percebesse. Ele acordava certas vezes, durante o dia e havia um prato com comida bem diante de si. Não poderia comer, com as mãos atadas. Mas, se esforçava ao máximo para alcançar com a ponta da língu... O rato foi mais rápido. Ele suspirou e chorou.

Lá fora o mesmo som, sempre. Era como o “desmoronar do mundo”. Era isso que lembra K., o desmoronar do mundo.

Antes, havia aqui mais duas garotas. Jekaterina e Li. As duas foram antes que K., os berros delas jamais saíram de sua cabeça. O desespero deles... Eram como se rasgassem seus tímpanos. Seria horror? Dor? K. não conseguia sequer imaginar o que aconteceria com ele, daqui alguns dias.

A água escorria pelas paredes, o cheiro de podre e de fezes empesteava o local. O mofo e os fungos sujavam as roupas de K. Ele já não queria mais abrir os olhos. Ele tentava pedir que viessem logo. Que acabassem com isto logo. Por que tanta demora?

Mais uma noite se passou. E mais um dia e de repente, dois meses haviam se passado. De repente, K. estava magricela e com aparência anêmica - Os ratos sempre ganhavam dele, na hora de comer. Os olhos saltavam das órbitas, esbulhados; contornado com as imensas olheiras causadas pela falta de sono. Sua boca estava em carne viva, graças às rachaduras que ele mesmo fizera ao mordê-la. A língua poderia cair a qualquer momento – ele havia feito uma fracassada tentativa de suicídio. Tinha esperanças que ele morreria afogado com o próprio sangue. Os seus cabelos estavam sebosos e mal-cheirosos como o resto do corpo. Ele tossia compulsivamente, como se houvesse algo em seu pulmão entalado. K. tinha azias como o próprio hálito. Era algo como podre, ele identificava, como quando você ia para o interior e via uma vaca apodrecendo em um brejo. Ele vomitava às vezes, por causa disso. Ele vomitava por causa dos pensamentos, pelas sensações. Os dentes amarelos o irritavam, quando ele conseguia se enxergar em uma janela, que ficava na parede lateral esquerda. Totalmente preta, totalmente vazia. Nada mais que o reflexo de uma alma perdida. K. poderia estar ficando louco, mas, ele morreria mesmo. Sua vaidade havia sido tirada dele, pouco à pouco. Ele havia adquirido nojo de si mesmo, de sua condição, do modo no qual vivia. K. tentava não chorar, mas, fatalmente caia em desespero, quando sentia os ratos andando sobre si, as baratas rastejando, os mosquitos causando-lhe feridas. Até quando duraria isso?

O gelo derretia pelas frestas e as gotas sempre caiam sobre seu corpo, tornando-o mais gelado. Ele não sabia se sobreviveria ao inverno e até esperava que não. Não se importava mais agora. Seus olhos às vezes tentavam enxergar naquela escuridão, mas percebeu que ele teria que ficar cego para poder realmente ver. Será que isso realmente fazia sentido dentro de sua cabeça?

Mais algum tempo se passou. Então, certa noite, enquanto K. conseguia dormir, alguém entrou naquele quarto escuro. Os seus passos eram pesados e parecia que se expandiam cada vez que ele se aproximava. Cada vez mais alto. Passos pesados, passos de homem. O sobretudo se arrastava pelo chão e K. apenas conseguia abrir um dos olhos. Mesmo a pouca luminosidade, machucava suas pupilas.

O homem mais parecia do que um vulto. Seria ele que tomaria a vida de K.? Seria ele que acabaria com este sofrimento ou o aumentaria? K. não sabia mais o que pensar! Tudo havia tomado um rumo tão distante daquilo que havia planejado, que tanto fazia agora. Uma única coisa era certa: a dor.

- Dor? E o que você sabe sobre a dor?

A voz era alta, cortante. Feriou os ouvidos de K.. Ele tentou mexer os braços, em um reflexo. Não adiantou... Ele tinha medo de que seus músculos haviam sido atrofiados por baixo daquela camisa de força. Ele sentiu medo, mais do que nunca... Mas, mesmo assim procurou o dono daquela voz com o olhar. Quis perguntar quem ele era, o que ele era... E como ele sabia o que ele havia pensando? Será que seu rosto havia se tornado tão expressivo assim? Nunca o fora antes. Nunca conseguiu transmitir nenhum sentimento pelo seu rosto, antes, exceto a indiferença ou alienação. Ele tentou olhar aquele homem, mas, só enxergou até seus joelhos, que se escondiam por baixo de uma capa da cor preta. Os coturnos de exército eram velhos e pareciam bem gastos. Será que ele havia lutado em alguma das guerras? Não tinha certeza... Quantas haviam acontecido? Uma das coisas mais surpreendentes que haviam acontecido, durante todo esse período, era que ele havia perdido a noção de várias coisas.

Não sabia mais o que acontecia no mundo de fora.

Fechou os olhos, então, aceitando seu destino. Uma brisa fria tomou seu corpo e ele gemeu de dor. Seu rosto estava molhado tanto pelo suor, quanto pela urina. Isso havia se tornado um inferno. Mais que um inferno, talvez. Ele ficou nesse silêncio durante alguns minutos e quase quis implorar para que esse homem, esse homem bem a sua frente, lhe tirasse aquilo que ele já havia perdido.

- Você me lembra o Raphaël. Mas, ele lutou para estar vivo. Você luta para morrer.

K. então reabriu os olhos. Quem era Rafael? Jamais havia ouvido esse nome, exceto quando lia a Bíblia e isso já fazia muito tempo, tanto, que agora não se lembrava mais como rezar. Rafael, ele nem se lembrava de quem se tratava este. Do que ele significava, de quem era, do que havia feito. K. sentiu-se pior do que antes, mas, não falou nada. Fechou os olhos e tudo se tornou escuridão, novamente. O que ele queria de K.?

- Vou fazer o que fiz com Raphaël. Ele lutou para estar vivo e eu lhe dei a morte. Você luta para morrer e eu lhe darei a vida.

Aquela voz havia se tornado mais assustadora. Mais macabra. K quis chorar, mas, não sabia se conseguiria. Então, ele sentiu as mãos daquele homem sobre seu corpo, pressionando a camisa, até que ouviu o rasgo do tecido. Novamente abriu um dos olhos e finalmente o viu: o demônio. Ele tentou berrar, mas, sua voz falhou.

Era branco, como porcelana. Tinha olhos puxados, egípcios, e olheiras por baixo deles. Roxas, fundas. O cabelo ralo, liso... Parecido com o corte militar. As maçãs do rosto eram saltadas, deixando mais a vista a magreza de seu corpo, escondido pelas camadas de roupa. Suas mãos... Foi o que mais assustou K. seus dedos pareciam duas aranhas, grandes e brancas. As unhas refletiam como vidro polido. Ele tentou se afastar, mas, ele estava imobilizado pelos dois joelhos daquele homem. Gemeu de medo, quando viu o homem se aproximar. Os lábios frívolos e gelados tocaram seu pescoço e ele começou a chorar.

A picada que sentiu se resumiu em toda dor que vinha sentido há dias. Era forte e ele havia perfurado sua pele. K. não via mais nada, além da escuridão, que não possuía resposta alguma.

Quando ele se deu conta, seus dentes já estavam ficados na carne branca daquele homem, que ainda estava sobre ele. Ele tinha o rosto de êxtase, como se estivesse bêbado. O sangue sujava o rosto de K., mas, mesmo assim ele enchia sua boca. K. bebia como apetite. Vontade... ele pareceu precisar daquilo, como se fosse mais vital do que a própria respiração.

Naquele momento, ele conseguia ver apenas a imagem de um homem loiro... Tinha os olhos azuis, muito intensos. Muito claros. Eles brilhavam na escuridão daquele lugar - qual não conseguiu identificar mas sabia que era um moinho -, como se fossem olhos de gato. Ele parecia desnorteado, mas, estático. Se perguntava qual era sua real situação... Talvez, como K. havia se perguntado tantas vezes antes. Seus lábios então começaram a gesticular algo... como se ele tentasse berrar, mas, nada. Nenhum som emitido. Os seus gemidos pareciam morrer na garganta. Ele olhou para os lados, sem se mexer, procurando de onde vinham os passos que ele ouvia. Que o K. também passou a ouvir. Ele tremeu com o frio. Que época do ano eles estavam? Ah, podia ser qualquer uma. K. via tudo de maneira nublada, escura. Era como se uma grande camada de poeira ou mesmo um nevoeiro estivesse diante de seus olhos, enquanto ele assistia tudo. Então, ele ouviu novamente o nome...”Rafael”... Mas, pela primeira vez percebeu que a pronuncia era um pouco diferente. Um ar francês ou alemão, mas, por que notar isso apenas agora? hm... Ele olhou atentamente os dois. Então, o mesmo ritual... Aquele homem egípcio tirou o sangue de Rafael... Era uma das cenas mais brutais que ele poderia ter imaginado. Rafael havia se tornado praticamente um esqueleto encapado com a pele do corpo. Era algo asqueroso de se ver... Mas, de repente, quando ele recebeu o sangue... foi como uma revitalização de seu ser. Ele tomou forma novamente, tomou cor... Mas, seus olhos. Ah, seus olhos fizeram com que K. Se afastasse. Se antes eles brilhavam, agora, eles reluziam como diamantes. K. caiu para trás, quando viu o homem se afastar. Algumas palavras foram ditas e ele foi embora...Deixando Rafael na escuridão.

Os olhos de K. se abriram instantaneamente. O egípcio continuava a sua frente e K. olhou bem para o seu rosto.

- Qual é o seu nome?
- Acha mesmo que tenho que lhe dizer algo?
- Acho. Qual é o seu nome?
- Kanope.
- Por que eu? Ou ele?
- Por que eu quis.

E ele foi embora.


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Notas finais do capítulo

Continua.



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