A noite era intensamente fria. Mas era claro, com tamanha quantidade de neve e gelo. Ela ainda perambulava por ali. Não apenas por sobre as pegadas momentaneamente marcadas no chão pelo sangue dourado, mas nas mentes de cada um que sofria. O anjo que de todos era o mais puro, que de todos era o mais complexo e o labirinto mais impossível de ser decifrado. O anjo mais cruel, mas também o mais piedoso. Não havia escapatória alguma de seu beijo cruel ou de seu frio permanente, eles apenas deviam aceita-la assim que sua hora chegasse. Era o Anjo da Morte.

Os corpos ainda jaziam no chão e o sangue que mais parecia ouro líquido escorria dos cortes profundos causados pela lâmina de bronze, que permanecia inanimada ao lado de ambos os cadáveres.

Cadáveres... Era tão estranho chama-los assim. Provavelmente algo me impedia de ao menos imaginar aquela possibilidade. De não vê-la outra vez... Os olhos ferozes completamente negros que vi pela primeira vez contrastaram com a lembrança do castanho caloroso de alguns dias atrás. Sorri. Ela mudara muito desde aquele tempo.

O ar já estava frio, mas quando senti sua aproximação, tornou-se gélido e morto. Eu não podia vê-la, apenas sabia que estava perto, e disso eu tinha certeza. Imaginei que fosse capa negra, invisível aos meus fracos olhos, a tocar minha pele e eu a senti congelar. Um profundo desespero tomou conta de minha mente.

As aparentes pegadas se aproximavam cada vez mais do local da batalha e, quanto mais próximo elas ficavam, mais visível sua imagem ficava. Não era como eu sempre imaginei.

Não. A capa negra com o capuz que cobria seu rosto tomado pelas sombras, o tecido fino esvoaçando ao vento, a foice levada em sua mão negra é a única coisa visível. Era isso o que eu imaginava que o Anjo da Morte fosse, mas estava redondamente enganado.

O corpo belo marcado pelas curvas trazia um vestido negro apenas, mas ela não aparentava sentir frio. Os cabelos negros desciam até a cintura, a pele clara parecia transparente e desaparecia na neve. Na mão, uma curta adaga escondida na bainha era sua única arma. Nos pés, os salto-altos não a impediam de andar sobre o chão macio.

Ela não tinha pressa. Aliás, apesar de eu não ver seu rosto, sabia que estava cansada, mas seus movimentos se mantinham majestosos e suaves. Ela se abaixou, tomando em mãos o corpo inerte de Lilian Spencer. Seus olhos estavam baixados observando o rosto cruel que parecia tão sereno...

Ao sopro de seu hálito, a cerne que compunha a bela garota aos poucos se tornou negra e aos poucos ficava menos e menos densa, até se tornar fumaça e se misturar ao vento.

E era a vez dela. A Morte pegou em seus braços meu belo anjo, e preparou-se para o suspiro final. As batidas de meu coração ameaçaram parar. Eu nunca mais a veria e sabia disso. O fim de sua eterna dívida viera juntamente com o fim de sua eterna vida.

Os passos que dei naquela direção foram fruto da momentânea insanidade e da aversão a pensar. Mas, apesar da ruidosa aproximação, a Morte nem ao menos se importou, alisando os cabelos de Cassie.

– Hey! – chamei, as batidas do meu coração se aceleraram, mas ela continuou indiferente. – Você... Não pode fazer isto!

Ela parecia não me ouvir. Talvez a morte fosse surda, talvez a morte fosse muda. Apanhei um bocado da neve que me faz molhar as mangas do pesado casaco. E atirei em sua direção. Nada. Talvez a morte não possuísse tato.

E, em um ato de pura irresponsabilidade, minhas pernas se moveram em sua direção em velocidade fantasticamente incrível. Toquei a pele fina de seu braço, o que fez com que um calafrio percorresse meu corpo.

Seu rosto se virou para mim. E a Morte me encarou. E eu entendi.

Ela não tinha olhos, mas a tudo via. Era surda, mas a tudo ouvia. Não tinha tato, mas tudo sentia.

Um impulso me fez arredar para trás.

“E meus olhos viram seu suspiro consumir o corpo em sombras.”

Capítulo escrito em: 20/2