A Face Do Desconhecido escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo foi concluído pelo autor (ou seja, eu mesmo).



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"Além do mundo que habitamos, pode haver um ou mais mundos povoados por seres diferentes de nós."

Estrabão (século I a.C.)

"Mas então, onde estão todos?"

Isaac Asimov - Civilizações Extraterrestres

Por fim acontecera. Chegara a esperada mensagem. Eles estavam a caminho.

O tão aguardado, tão temido primeiro contato viria finalmente. Depois de eras sem conta de total isolamento, a raça humana estava prestes a receber os seus primeiros visitantes comprovadamente oriundos das estrelas.

No espaçoporto de Matronis reinava uma tensa expectativa, uma excitação cuidadosamente contida. As pessoas que compunham a equipe de recepção sabiam que os acontecimentos das próximas horas mudariam seu mundo para todo o sempre. Embora fossem cientistas, tinham sido submetidos a um grande choque cultural - o choque do futuro, por assim dizer. E o futuro se aproximava apressadamente, estava chegando rápido sob a forma de uma enigmática nave estelar, fruto do progresso de uma ciência estranha, pilotada por uma tripulação inimaginável.

O homem não é a "coroa da Criação", e sua Terra não é o centro do Universo.

O Dr. Richard Kostis Morvehl, membro do Conselho de Astronáutica, não estava nada satisfeito com a responsabilidade que lhe coubera: ele era o encarregado do controle de recepção em Matronis, capital do Mundo. Na verdade, ele era atstovas, o representante plenipotenciário de toda a humanidade. Em sua opinião, o presidente do Conselho deveria ter nomeado outra pessoa...

E mais! Fora um erro tático, pensava o Dr. Morvehl, permitir que sedops desconhecidos, potencialmente perigosos, descessem no planeta principal da Comunidade. Morvehl não gostava disso; não obstante, tivera de aceitar. Aqueles homens e mulheres do Conselho, cientistas de primeira linha da Era da Navegação Solar, pareciam ávidos de compartilhar dos conhecimentos e maravilhas tecnológicas que os visitantes extrassolares lhes oferecessem. Pois bem. Ninguém haveria de expôr o planeta pátrio dos homens a quaisquer riscos desnecessários.

Sentado atrás da maciça mesa-painel de comunicações na cúpula de controle, cujas paredes eram formadas de telas de videorama, o Dr. Morvehl em mangas de camisa supervisionava remotamente tudo no Centro Espacial, enquanto manejava os consoles de comunicações e análise de dados. Era aqui que se reuniam os fios invisíveis da inforrede urdida no Centro de Voo Espacial, uma teia incrivelmente intrincada que consistia de miríades de raios de neutrinos transmissores de dados. Ao mesmo tempo, o intensivo de tecnologia virtual permitia que o Dr. Morvehl e as equipes de técnicos e voluntários trabalhassem em conjunto, embora eles estivessem fisicamente em lugares distintos da base, através de telepresença. Quase todo o trabalho era feito pelos robôs da Manutenção, que enxameavam por todo o perímetro do espaçoporto.

O Dr. Morvehl não pretendia correr riscos. Os olhos castanhos encimados por uma testa alta espelhavam uma atitude de cautela vigilante; perscrutavam as telas de imagens holográficas em 3-V nas paredes, onde se viam cenas do Centro de Voo ou do exterior, e depois o grande display do telerradar, procurando uma ameaça invisível. Uma ruga vertical surgiu entre as sobrancelhas do astrônomo de rosto estreito e anguloso. Estaria ele projetado sua insegurança e seus temores mais atávicos nesses seres desconhecidos de uma outra estrela? Grande Gaia, é com outrincons que estamos lidando. Como podemos saber o que é que tais seres consideram bom ou mau, certo ou errado, ou se esses conceitos têm algum significado para eles? Não deveríamos procurar descobrir o máximo possível sobre esses seres antes de apressadamente abrir as portas e convidá-los a entrar?

Morvehl suspirou, reclinou-se na poltrona. Olhou para os dígitos iluminados que apareciam no relógio digital em seu pulso esquerdo. O sentimento de insegurança continuou a atormentá-lo. Havia incógnitas demais e isso era perigoso.

"Atsargumas", pensava o cientista, recorrendo à expressão que, na língua-padrão que se falava em Gaia, queria dizer "cautela, cuidado".

Se ao menos tivessem optado por receber e alojar os estranhos em uma base mais estratégica! Thalassa-Quiberon Prime, do outro lado do mundo, era uma ilha artificial no meio do oceano mais vasto do planeta, e seu maior Centro Espacial. Seria tanto mais fácil isolá-lo e manter tudo sob controle. Por que aqui?

Fazia um belo dia de sol lá fora e a movimentação era intensa. O Centro de Voo Espacial localizado no planalto Helopárnonas, a cerca de 30 quilômetros de Matronis, transformara-se numa colmeia de atividade humana e robótica.

Um seleto grupo de especialistas fora convocado para integrar o comitê de boas-vindas incumbido de recepcionar os astronautas sedops que pousariam em Gaia. O Dr. Morvehl os conhecia todos: o astrofísico Dr. Raymond Waff Krauchunas, o biossociólogo Dr. Zancmar Kostas Hodgkins, o engenheiro astronáutico Dr. David Eargoss, a exobióloga Drª Klara Ulmanis, a antropologista e linguista Drª Petra Acastus Menliss e o historiador Professor Ephram Eben. Ali estava a elite científica da Comunidade dos Planetas, num salão panorâmico do Espaçoporto de Matronis. Estavam todos presentes em carne e osso, um fato excepcional nesta era de RV e em um planeta de comunicações instantâneas e universais. A causa era sem dúvida suficiente, pensou Morvehl. Os eventos dos últimos 28 dias tinham levado a velha Gaia a uma encruzilhada do seu destino, às vésperas de um momento histórico. (Se o fim do mundo ou o limiar de uma nova era, ninguém saberia dizê-lo.)

O primeiro encontro entre o Homo sapiens e uma inteligência alienígena vinha sendo objeto de incontáveis obras de ficção científica desde o Século do Carvão. Agora a humanidade se achava na Era da Navegação Solar, e a vida tinha percorrido caminhos bastante diversos daqueles preconizados pelos autores do passado. Até então, em razão de não terem sido descobertos outrincons nos planetas do Sistema, e na ausência de sinais oriundos das estrelas mais próximas, a ciência e a opinião popular concordavam em que o proverbial encontro só se tornaria possível - na melhor das hipóteses - num futuro longínquo.

E então, repentinamente, o futuro chegou, com todas as suas promessas e ameaças.

Não era de estranhar, portanto, que os seis cientistas não pudessem conter a excitação - e, por que não dizer? Um sentimento mútuo de futuro incerto - de que estavam tomados.

A Drª Menliss foi a primeira a romper o silêncio. A expansiva antropóloga que era o membro mais jovem do grupo passou a mão no longo cabelo castanho-escuro, num gesto todo seu, e disse: - Amigos, isso é tão transcendente! Dentro em breve, nos encontraremos frente a frente com sedops de outro sistema solar, que devem ter criado uma civilização técnico-industrial igual ou superior à nossa. Pensem em quantas gerações de homens de ciência viveram e morreram, sonhando com esse momento!

- O que é mais irônico, é que isso acontece justamente quando já começávamos a nos habituar à ideia de que estávamos sozinhos no Universo - comentou o Dr. Eargoss, com seu costumeiro cinismo. Um nativo do espaço, seu lar era a colônia espacial de Naujal Riga, no cinturão de asteroides. Na Era da Navegação Solar havia mais gente vivendo nas "saulyas" ou "ilhas" no espaço do que em Gaia, o mundo-mãe. (Os colonos espaciais se julgavam uma raça diferente e muito melhor, individualistas e materialistas, adeptos do poliamor e da poligamia, e gostavam de ser chamados de "espaciais" ou Homo sapiens spatialis.)

- A solidão cósmica acabou - disse o Dr. Hodgkins laconicamente. Era um homem corpulento, moreno quase mulato, e seu cabelo, crespo, estava ficando suavemente grisalho. - Deixamos de ser o centro do Universo, o que é ótimo. Como biossociólogo, tenho o maior interesse no primeiro contato com outra raça de seres inteligentes, estranhos ao nosso planeta. Transposta a barreira das línguas - e, Petra, isso é contigo - , será possível comparar nossos conceitos filosóficos, éticos e religiosos, puramente humanos, com o produto de mentes verdadeiramente alienígenas, que evoluíram no decorrer de bilênios de períodos geológicos em um ambiente completamente diferente do nosso, e tirar as devidas conclusões. E não nos esqueçamos dos avanços em várias outras áreas do conhecimento que certamente virão: na astrofísica, na química, nas ciências tecnológicas. Podemos aprender muito com esses seres.

- Pressupondo, é claro, que esses sedops queiram partilhar seus conhecimentos conosco - ponderou o Professor Eben. Ele era tão alto quanto Hodgkins, porém magro como um caniço e mais pálido que um espectro, com um nariz adunco de semita.

- Quanto a isso não tenho a menor dúvida, Ephram - interveio a Drª Ulmanis, o primeiro ser humano a se comunicar com os alienígenas. (Como não cobria os cabelos com o tradicional lenço ou nuometas, devia ser solteira, viúva ou divorciada.) - Eles nos contataram, praticamente pediram para serem recebidos no planeta-capital. É óbvio que desejam estabelecer um intercâmbio intelectual com os habitantes de Gaia.

Ephram Eben continuava a mostrar-se cético.

- Gostaria de crer que é assim...

- Eu, de minha parte, estou ansioso pela oportunidade de descobrir o princípio de funcionamento do propulsor da nave sedopiana - disse o Dr. Eargoss em tom enfático. Seus imensos olhos cinza-azulados pareciam profundos e imperscrutáveis. - É evidente que os desconhecidos que ora nos visitam utilizam uma tecnologia que, se não é totalmente compreensível para os humanos, pelo menos está dentro do nível geral das atuais possibilidades tecnológicas. E supera em muitos anos-luz os nossos incipientes veleiros solares.

- Ao pé da letra - acrescentou Petra rindo. De acordo com os vários simulacros obtidos em computador pelo astrônomo Markas Baravykas, a separação média de duas civilizações nesta Galáxia era de aproximadamente 630 anos-luz.

- Uma nave estelar pertencente a uma raça estranha, bem aqui em nossa porta - murmurou o Dr. Krauchunas em tom pensativo. Puxou o palmtop que estava em um dos bolsos do paletó e, após consultar uma base de dados, dirigiu-se aos colegas cientistas (todos "vestidos" com seus computadores, integrados às suas roupas). - Há uma particularidade de que ninguém se deu conta, ainda.

Eargoss e Eben se remexeram, inquietos. Petra olhou imediatamente para Hodgkins, cujo rosto moreno não revelava qualquer emoção. A Drª Ulmanis estava com os olhos verdes fixos em Krauchunas. Parecia trespassar com o olhar o jovem astrônomo de perfil aquilino e cabelos negros como azeviche.

- Não diga! - ironizou a pequena e esbelta senhora. - E qual seria essa particularidade?

Krauchunas respirou fundo e disse, em tom controlado:

- Prestem atenção. Segundo as estimativas atuais, nosso planeta Gaia tem cerca de cinco bilhões de anos e é considerado um orbe de idade mediana. A aparição da vida protoplásmica remonta há aproximadamente 2,5 bilhões de anos e, durante um longo tempo ela evoluiu muito lentamente, desde as bactérias e as algas unicelulares até o atual nível, com uma vida multicelular avançada e complexa. A vida inteligente em Gaia, em particular o homem, é o produto de dois bilênios de um processo contínuo de evolução biológica neste planeta. Se supusermos (e as simulações computadorizadas de alguns astrofísicos apontam nessa direção) que a diferença média de idade entre os 650 milhões a um bilhão de planetas habitáveis presumivelmente existentes em nossa Galáxia é de dois bilhões de anos, e se o Homo sapiens encontra-se atualmente num estágio médio de desenvolvimento, teremos como consequência que uma metade dos planetas habitáveis deve estar dois bilhões de anos atrasada em relação a Gaia e que a outra metade deve estar dois bilhões de anos adiantada. Isto significa que a probabilidade de haver uma civilização sedopiana num estágio de desenvolvimento capaz de coincidir com o nosso por uma diferença de, digamos, 5.000 anos, é de um sobre 250.000 numa escala evolutiva de dois bilhões de anos, se os simulacros por computador dos rapazes da Universidade de Driticus estiverem corretos.

Krauchunas calou-se, fatigado por ter falado tanto.

- Há cerca de 5.000 anos os seres humanos inventaram a escrita, e em algumas regiões do globo a civilização estava em pleno florescimento, com cidades, agricultura e metais - observou Ephram, enfiando a mão no bolso esquerdo da calça e tirando uma caixinha de cigarros de ervas aromáticas. Do outro bolso tirou o isqueiro eletrônico.

- Em outras palavras, apenas uma civilização em cada 250.000 nesta Via Láctea estaria num patamar situado entre o início da nossa, uns 5.000 anos atrás, e 5.000 anos à nossa frente - concluiu a Drª Ulmanis, olhando para o seu palmtop.

- Precisamente, doutora - confirmou Krauchunas.

- Não é de admirar que o programa SETI tenha fracassado, a despeito de trezentos anos de esforços - comentou Hodgkins. - Afinal de contas, as chances de haver alguém, em algum lugar, se utilizando de radiotelescópios, neutrinos ou mésons mu, são bem remotas.

- Agora, no entanto, nós encontramos essa civilização, ou melhor, ela nos encontrou! - exclamou a Drª Ulmanis com ar triunfal.

- Como diria minha santa mãezinha, os deuses sorriram para nós.

Sacudindo a cabeça, o Professor Eben enfiou o cigarro entre os lábios e acionou o isqueiro. O mesmo funcionaria enquanto havia luz solar no mundo, recarregando-se sem cessar e trabalhando inclusive à noite.

- Só sei de uma coisa. Acolher um visitante é assumir um risco. Não houve nenhuma ocasião, na história deste planeta, em que uma raça mais avançada não acabasse colonizando ou subjugando, de algum modo, uma raça menos avançada. Basta ver o que os nossos antepassados fizeram aqui em Gaia, com o genocídio de outras formas de vida e inteligência. Mesmo quando o relacionamento inicial era positivo, a própria diferença de capacidade entre as raças resolvia o "problema" no decorrer do tempo - com a extinção da raça mais fraca. Vejam o que aconteceu com os demônios e a "gente pequena", que foram dizimados.

- Não pode ter a pretensão de julgar sedops desconhecidos com base no que os humanos fizeram no passado - contestou Petra.

- Exato. Seres desconhecidos, possuidores de conhecimento tecnológico igual ou superior e capazes de viagens interestelares, eis o que estamos recebendo em nosso mundo. E isso é arriscado.

- Agora você parece Ricky Morvehl falando - comentou Eargoss, com um toque de malícia.

- Sempre há riscos em tudo que fazemos - filosofou Hodgkins. - Mokslas. Fazer ciência é lidar com o desconhecido.

- O desconhecido só nos é ameaçador se não procurarmos travar conhecimento com ele - retrucou tranquilamente a Drª Ulmanis, repetindo o velho aforismo.

Krauchunas lançou um ligeiro olhar para as telas de plasma de videorama nas paredes e no teto abobadado que mostravam mapas e gráficos hologramados em 3-V, cenas da pista de pouso ou do espaço sideral, transmitidas de telescópios instalados em cidades orbitais e enviadas via canal de neutrinos. Disse: - Sim, tiramos realmente a sorte grande, meus amigos. Dentro em breve, vamos encontrar os nossos semelhantes, ou os nossos mestres, vindos das estrelas.

Algo daquele gênero vinha sendo esperado há séculos, e muitos ainda resistiam a enfrentar essa perspectiva. Todavia, quando finalmente tornou-se realidade, a raça humana fora pega de surpresa.


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Notas finais do capítulo

A título de curiosidade: a língua-padrão, ou idioma de unificação Planetário utilizado nesta sociedade global do futuro, foi toda baseada no lituano, a mais velha das línguas bálticas, e, segundo Charles Berlitz, a mais próxima filologicamente do hipotético e ancestral idioma indo-europeu primitivo que teria sido falado na Eurásia há cerca de 25.000 anos - e por conseguinte, ideal para servir de base "neutra" a uma língua mundial. Já o "pidgin" falado como língua franca nas colônias espaciais teve como base o maltês, essencialm. um dialeto árabe magrebino misturado com inglês e italiano, entre outras influências (jônicas, semíticas etc).