Tributo. escrita por lillyjelly


Capítulo 1
Alguns empecilhos.


Notas iniciais do capítulo

Escrevi esse capítulo muito rápido! Talvez até tenha ficado ruim e não notei, -q.



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            Eu ainda lutava contra minhas pálpebras pesadas com adentrei a gloriosa casa dos Lettecup, empurrando a porta da frente com vigor surpreendente, considerando-se meu cansaço e a mancha negra que rodeava meu olho esquerdo. Merot, a empregada, arregalou os olhos quando viu meu estado, mas logo afastou-se de cabeça baixa, amedrontada com o que os Lettecup poderiam fazer com ela por essa demonstração de espanto para comigo. Eu nada disse, apenas abanei com a mão para que ela se levantasse, com uma expressão taciturna no rosto. Derramei meus materiais sobre a mesa polida de mogno da sala de jantar, uma hábito que eu insistia em não perder e Toend insistia para que eu largasse. Merot apressou-se atrás de mim, recolhendo meus pertences de forma rápida e eficiente, mas eu ordenei que ela os deixasse ali mesmo. Ela os rearrumou da forma mais despojada que conseguiu fazer e saiu rapidamente do cômodo, antes que eu desabasse no sofá de veludo das visitas.

            Alguns segundos depois, a porta de entrada abriu novamente e revelou Chermiser, com a testa franzida e os cabelos louros caindo como uma cascata dourado sobre seus ombros. Durante a minha execução pública hoje no colégio, ela não se pronunciou sobre o modo como eles me arrastaram pelo chão até o centro do pátio, ou como talharam meu rosto com os punhos, ou como Shadowe me acertou aquele soco preciso no rosto, me dando um olho roxo, um dente cuspido e uma réplica rápida, arranhando o rosto imaculado dela com as minhas unhas, ou o que restou delas.

            – Você parece uma aberração sem esse dente – foi sua única observação sobre o episódio. Repliquei atirando-lhe uma estatueta localizada na mesinha ao meu lado, porque simplesmente foi a primeira coisa que meus dedos nervosos por atirar-lhe algo conseguiram alcançar. Ela abaixou-se e o objeto estilhaçou-se na parede. Apenas alguns cacos do enfeite ficaram emaranhados em seus fios lisos e dourados como feixes da luz do sol. Eu tinha uma irritante mania de admirar silenciosamente os cabelos da minha irmã adotiva – título que, graças aos céus, posso atribuir-lhe.

            Vivo com os Lettecup desde que me descobri gente. Minha mãe, segundo eles, morreu ao me dar a luz. Porém, segundo a única carta que recebi de meu pai todos esses anos, ela era uma rebelde que atuou ardentemente nos Dias Escuros. Fugiu para a floresta com meu pai e lá me deu a luz, uma vez que já estava grávida quando fugiu. Porém um dia foi capturada pela Capital. Meu pai fugiu, me levando consigo, e me abrigou nas mãos dos Lettecup, seus primos de segundo grau, que me adotaram com a ladainha de que minha mãe morrera ao me dar a luz e etc. Nunca tive notícias do meu pai desde então. Não sei se os Lettecup sabem a verdade sobre meus pais e a ignoram por completo ou se simplesmente a desconhecem. Não sei se a Capital sabe se sou filha de quem sou, mas presumo que não, uma vez que eu ainda estou viva. Eu simplesmente carrego essa mácula no meu passado como se fosse uma relíquia de joias da família. Orgulho-me da oposição da minha mãe contra a Capital. Amaldiçôo meu pai por ter abandonado minha mãe para morrer na floresta. E demonstro minha própria revolta recusando-me a me rebaixar ao papel ridículo a qual Chermiser, Shadowe e tantos outros se submetem, o de Tributos Carreiristas.

            Sou uma habitante do Distrito 1. A única que não ocupa inteiramente seu tempo com exercícios, dietas para ganho de peso e demais atividades para preparar-me para os hediondos Jogos Vorazes. Jogamos vinte e quatro crianças em um espaço a céu aberto para que matem umas às outras. Não me admira que mamãe e todos os outros tenham provocado os Dias Escuros. O que eu mais ansiava naquele momento era por uma rebelião. Mas eu não poderia fazê-lo sozinha, uma vez que eu não ousava contar a ninguém minha discordância em relação à “benevolência infinitesimal” da Capital. Então eu me contentava em me recusar a treinar para ser um Tributo Carreirista, porque sabia que no momento em que meu nome fosse pego na Colheita, Chermiser rapidamente se apressaria em se apresentar como voluntária, pela simples glória de competir nos Jogos, não numa tentativa desesperada de salvar sua irmãzinha menor da morte certa, como seria aos olhos da Capital.

            Por essa razão – minha recusa em me tornar uma Carreirista – eu era constantemente perseguida. Nas ruas, na escola, até mesmo em casa, com os comentários afiados de Chermiser e os olhares de reprovação de Toend e Cetos, meus pais adotivos. Eu não costumava assumir nenhuma posição defensiva; elas se limitavam apenas a olhares ameaçadores que mantinham os mais fracos e puxa-sacos longe, mas não as crianças truculentas que passavam sua infância e adolescência na esperança de um dia voltar vitorioso para seu Distrito, tendo garantido uma vida próspera e confortável e tendo uma mácula da cor do sangue dos que assassinou em seu passado. E viver bem em relação a isso.

            Merot, atraída pela explosão de cacos de mármore provocada pelo meu acesso de fúria contra Chermiser, fez uma rápida reverência para esta antes de agachar-se ao chão, recolhendo os maiores cacos com as mãos. Os lábios de Chermiser curvaram-se em um sorriso malicioso.

Ela levantou o rosto de Merot pelo queixo. A empregada olhou-lhe com uma curiosidade dotada também de medo, antes de minha irmã adotiva desferir-lhe um tapa contra o rosto. As unhas propositalmente afiadas de Chermiser macularam a bochecha direita de Merot com um talho por onde escorria o sangue da empregada, pingando no chão.

Em desespero, esta começou a esfregar freneticamente as gotas avermelhadas de seu próprio sangue que maculavam o imaculado piso de mármore da casa dos Lettecup. Chermiser entoou gargalhadas que mais me pareceram rosnados vindos do fundo de sua garganta. Levantei-me bruscamente do sofá, na consciência de que estava fazendo uma loucura, e empurrei minha irmã adotiva.

            Em réplica, Chermiser desferiu-me um soco, o segundo que eu tomava naquele dia, porém desta vez sem danos maiores do que um sangramento doentio no nariz. Meus conhecimentos rudimentares em medicina me alertaram que talvez ele estivesse quebrado.

            – Deu a defender a classe proletária, Shaey? Isso não vai te manter viva até depois de amanhã.

            Depois de amanhã. Depois de amanhã vinte e quatro tributos infelizes estarão sendo carregados para fora do âmbito de seus familiares, do carinho e afeto proporcionados pelo lar, para a morte certa. Pelo menos para vinte e três deles.

            A Colheita era no dia seguinte. E para “comemorar” o “aniversário” de vinte e cinco anos de Jogos Vorazes, o governo lançou o primeiro Massacre Quaternário, onde a própria população do Distrito escolhia as crianças que seriam transportadas para a arena. Especulações sem fim sobre os escolhidos rondavam o Distrito 1, assim, como eu imaginava, os outros distritos. A lista de adolescentes ansiosos para participar do massacre era longa, e era difícil classificar o mais forte, capaz ou brutamontes entre eles. Chermiser mal continha sua agitação, imaginando em voz alta as condições da arena neste ano, as armas que lhe dispunham, as infinitesimais formas cruéis e dolorosas com o qual poderia tirar a vida de seus semelhantes.

            As chances de que meu nome fosse escolhido, a fracote Shaey Lettecup em meio aos bem-preparados, robustos, fortes e grandalhões Carreiristas era tão remota que me senti na obrigação de replicar a malcriada observação de Chermiser com uma única e sonora gargalhada.

            Sua reação única foi unir as sobrancelhas, atribuindo ao seu rosto invejado por tantas e desejado por tantos uma expressão taciturna.

            – Ria o quanto quiser, sua covarde. Mas quando eu voltar para esse Distrito junto às fervorosas demonstrações de amor da Capital à mim, com um novo fundo transbordando de cifras, eu não lhe darei um centavo. Mudar-me-ei para a Aldeia dos Vitoriosos com mamãe e papai, e a deixarei nas ruas para morrer, até que o inverno, a doença, a fome ou os outros Carreiristas lhe ceifem a vida, o que vier primeiro.

            O dom de falar pomposamente, orgulho-me de falar, era bem cultivado naquele distrito, até mesmo para pessoas como Chermiser, até mesmo para ameaçar. Principalmente para ameaçar.

            Acordei na manhã seguinte com a luz tênue dos primeiros raios de sol a penetrar o tecido fino e delicado da minha cortina. O sol mal havia mostrado a cara e eu já estava de pé, já havia tomado uma ducha satisfatória e penteava tranquilamente meus cabelos emaranhados apenas com a roupa de baixo, em frente à minha penteadeira. Eu estava surpresa que eu ainda tivesse um quarto neste casa depois do jantar de ontem à noite.

            Enquanto Toend, minha “mãe”, divagava a respeito dos nossos trajes para a Colheita, Cetos, meu “pai”, fez a delicadeza de notar a grande mancha preta que rodeava meu rosto. Eu havia aplicado alguns remédios precários que encontrei no armarinho do banheiro, mas o inchaço era tão grande que eu mal consegui manter meu olho aberto. Eu expliquei frivolamente o incidente na escola, enquanto Chermiser enchia-o com detalhes de quão grande fora a minha humilhação perante todos os jovens do Distrito.

Quanto ao meu nariz quebrado, Merot consertara-o em alguns instantes, depois que eu a ajudei a arrumar a bagunça na sala. Nós duas trocamos olhares de mútua compreensão. O dela expressava receio, medo, mas também gratidão. O meu, pelo menos deveria mostrar minha compaixão e a igualdade que eu sentia para com ela, além de minha empatia. Pelo visto, alcancei o objetivo, uma vez que ela me sorriu levemente antes de sumir pela porta da cozinha.

Toend apenas resmungou um sem-número de reclamações sobre como vou estar hedionda amanhã, na Colheita, com meu olho roxo e corte na bochecha. Cetos tranqüilizou-a e me garantiu que tinha algumas pomadas que diminuiriam o inchaço do meu olho e que no dia seguinte ninguém notaria um único resquício do meu embate com Shadowe.

Isso pareceu melhorar um pouco o humor de Toend, pelo menos nos poucos instantes antes de Chermiser soltar a bomba:

– Shaey quebrou aquela estatueta que ficava ao lado do sofá, atirando-a contra mim. E quando a empregada veio limpar os cacos e eu fui lhe impor algum respeito, ela me empurrou e defendeu a faxineira.

Com ruído, atirei meus talheres no prato.

– Impor respeito? Você lhe desferiu um tapa!

– Merecido, certamente!

– Merot estava fazendo o trabalho dela! – a esta altura, eu berrava a plenos pulmões.

– Ela adentrou o cômodo sem uma reverência respeitosa a seus patrões – ponderou Chermiser, com a pose do vencedor de uma guerra.

– Claro, até porque você é a pessoa que mais merece respeito ou servidão de um ser bondoso como Merot! – berrei, avançando contra Chermiser. Cetos me puxou pelo braço de volta à cadeira.

– Shaey, pare de gritar – ele ordenou com voz calma, porém firme, mas eu não obedeci. Encarei Chermiser com o olhar mais gélido e repleto de cólera que pude reunir no momento. Ela apenas me levantou uma sobrancelha, em tom de desafio.

– Shaey, estamos muito desapontados com você – começou Cetos, com um tom de quem dá uma bronca no gatinho que fez xixi no sofá. Talvez ainda mais infantil.

Toend apenas jazia dura e pálida em sua cadeira, certamente se perguntando se nossos vizinhos teriam ouvido a baderna. Eu não dava a mínima.

– Para começar, você deve parar de meter-se em brigas na escola.

– Claro, porque fui eu que os provoquei para que me emboscassem no fim da aula e me mutilassem na frente de todos! – berrei, mas Cetos permaneceu impassível.

– Segundo, você deve respeitar a sua irmã. A empregada é apenas uma empregada, no momento que em pararmos de fornecer-lhe dinheiro em troca de seus serviços ela nos abandonará, mas Chermiser permanecerá ao seu lado nos momentos mais difíceis da sua vida.

Segurei-me para não gritar as maiores obscenidades do meu repertório para meus pais adotivos. Como eles podiam ser tão cegos? As palavras ameaçadoras que Chermiser me proferira mais cedo ecoavam por minha cabeça.

– Terceiro, não desconte sua fúria nos objetos da casa.

Rolei os olhos. Como se aquele fosse o apontamento mais relevante ali.

– Quarto...

Quando Cetos prontificava-se em numerar o quarto tópico de sua bronca suave, Toend levantou-se bruscamente de sua cadeira, derrubando sua sopa de crustáceos pelo chão de mármore.

– Sua ingrata – ela resfolegava entredentes. – Te damos comida, roupas, teto, bens, dinheiro, liberdade, e você nos revida com desrespeito, desobediência, humilhação e vergonha para nossa família... Todos os meus amigos vivem a cochichar sobre a órfã que nós tão gentilmente abrigamos e acolhemos... Mas que é tão mal-educada, boca-suja, desobediente, rebelde, taciturna... Uma ingrata, é o que você é! Deveríamos tê-la deixado apodrecer no Lar Comunitário, ou simplesmente entregá-la à morte nas ruas!

Mal podia acreditar na torrente de ofensas que despejavam da boca de Toend, que até hoje eu só vira aberta para reclamar de roupas, status social, aparências, para fofocar sobre as outras famílias. Porém, graças aos céus, me recuperei do choque rápido, aprontando uma resposta afiada com eficácia:

– E quanto a respeito, Toend? Respeito, afeto, compaixão, compreensão, amor, ah, amor, Toend! – girei nos calcanhares ali mesmo, ao lado da cadeira, parecendo uma lunática falando de amor naquele lugar frio e formado unicamente aparências. – Vocês me deram o que o dinheiro pode comprar. Não recusei a ajuda. Não tinha pra onde ir. Mas nunca fui nem serei feliz nesse lugar. Eu, polidamente, peço que não me expulse desta casa neste minuto – apressei-me em finalizar rapidamente o pensamento, uma vez que Toend abria a boca para se manifestas novamente, antes que o braço peludo do marido entrelaçasse seus ombros.

– Não o faremos por ora, Shaey, mas você precisará controlar seu mau gênio daqui em diante.

Meu cérebro me repassava resmungos e obscenidade insultuosas, mas eu apenas murmurei uma concordância não muito firme e me retirei para meus aposentos. Eu precisava, afinal, de um lugar para morar, e não podia deixar o palácio dos Lettecup passar por um simples sentimento rebelde incubado dentro de mim. Eu teria de contê-lo, pelo menos até ser livre para administrar meu próprio lar e me impor minhas próprias regras...

Revisei mentalmente a noite anterior nos minutos a fio que perdi penteando inutilmente meus cabelos há muitos desembaraçados. O sol já havia se levantado e a movimentação começava na praça, começando com as viúvas milionárias esbanjando suas joias para o restante da população, certamente crentes de que provocavam efusões de inveja, ódio e admiração. Dei uma risadinha e fechei as cortinas, antes que um olhar indiscreto atravessasse a janela e algum engraçadinho acabasse por me ver de roupa de baixo.

Vesti-me com simplicidade, me preparando emocional e psicologicamente parar o clima aterrador que eu encontraria na sala de jantar, no café da manhã. Merot, eu esperava, não deveria ter sido demitida, então pelo menos eu teria o conforto de um rosto amigo à mesa, mesmo que esse rosto estivesse nos servindo e agüentando os insultos de minha família de cabeça baixa.

Todos já estavam de pé, e os pratos de meus infames parentes já estavam esvaziando-se com rapidez. Ninguém pareceu notar minha chegada, mas vi a sombra de uma carranca perpassar o rosto de Toend. Bom. Recolhi uma porção de pãezinhos, suco, chocolate quente e geléia e assentei-me ao lado de Cetos. Não era minha pessoa preferida na casa (se é que eu tivesse uma à exceção de Merot), mas certamente era a mais inclinada a suportar minha presença sem me meter um murro na cara.

Chermiser estava com seus melhores trajes de fatalmente-sexy. O vestido preto colado emitia um suave brilho dourado à luz do candelabro da sala de jantar. As plumas dos trajes de Toend quase sufocavam o pobre Cetos, sentado ao seu lado. Este, por sua vez, usava um paletó com bom corte e camisa social de qualidade. Apenas eu, em uma camiseta lisa e legging preta, parecia fatalmente deslocada entre os pavões que habitavam aquela casa.

Toend comentava as últimas fofocas sobre as escolhidos para serem mandados para a arena, como se o desentendimento da noite anterior tivesse sido manchado com corretivo.

– Todos estão apostando no menino mais velho dos Travinecek – ela contava, no limite do êxtase. Eu escutava com limitada atenção. Eu salivava para que Shadowe ou Chermiser fossem os tributos femininos e que morressem na arena, livrando-se de fardos desnecessários.

– Horn? – empolgou-se Chermiser, batendo com o garfo na louça de porcelana fina. – Ele é um excelente lutador, além de lindo – ela deixou escapar uma risadinha. Cetos, na função de pai superprotetor, lançou-lhe um olhar de desagrado.

– Sim, deve ser esse o nome – banalizou Toend. – O rapaz é realmente um ótimo partido. Vimo-lo em ação naquele dia na praça, lembra, Cetos? É aquele rapaz louro que deu aquela surra naquele mendigo quando este ousou tocar-lhe. O homem nunca vai recuperar aquele olho! – agitou-se Toend, como se contasse um fato sobre uma festa ou comemoração.

Cetos assentiu vagarosamente, dando mais uma bocada no seu pãozinho coberto com geléia.

– Mas, então, Shaey, como vai seu dente?

Surpreendi-me com a consideração. Numa operação emergencial, os Lettecup me levaram para o hospital naquela noite, onde meu dente fora reconstruído.

– Existente – resmunguei, antes de dar mais um gole no chocolate e antes de levar um tapa na cabeça de Toend e cuspir tudo no chão.

– Olhe lá como fala com seu pai, menina! – ela repreendeu-me. Imobilizada pela possibilidade de ser expulsa da casa, não repliquei, nem física nem verbalmente, à agressão.

Depois do café, subi novamente para meu quarto e troquei minhas vestes por um vestido separado por Toend na semana anterior, um de veludo azul-escuro com detalhes em prata, que eu odiava mais que todos os meus outros vestidos fúteis. Talvez esse fosse o motivo para a escolha de Toend, afinal de contas. Visto-o mesmo assim, na consciência de que se eu não andasse na linha dali em diante estaria passando minhas noites ao relento.

            Vamos para a praça minutos mais tarde.

            A escola foi cancelada por conta do porte do evento. É isso que a Colheita é, uma espécie de feriado no país todo. Um feriado, este ano, especialmente doloroso, uma vez que todos tivemos que escolher entre nossos conhecidos para mandá-los morrerem na arena.

            Mas não no Distrito 1. Os rostos mal conseguem disfarçar a empolgação, e muitos nem tentam. Estamos separados por sexo e idade, de forma que Chermiser fica apenas a alguns passos de mim, na fileira dos dezessete anos, enquanto eu me posiciono de forme entediada na fileira dos dezesseis, enquanto evito meus impulsos de revidar às cotoveladas, empurrões e demais agressões enquanto transito até minha posição.

            O prefeito Hunter estava, em toda a sua glória rechonchuda e corada, sentado ao lado de sua esposa (no mínimo vinte anos mais jovem que ele). À sua frente, Ivy Howell, a acompanhante habitual dos tributos do Distrito 1. Neste ano, sua aparência naturalmente grotesca conta com a ajuda de uma nova operação que atribui aos seus cabelos loiros penas douradas que saíam espetadas do seu couro cabeludo, como extensões animalescas dos seus cabelos. Seus seios, grotescamente aumentados pela operação, saltam como duas melancias de seu decote profundo. A cada ano mais vulgar e detestável, entre ter Ivy Howell e um macaco me acompanhando na preparação para os Jogos Vorazes, eu escolheria o primata.

            Se bem que, de algum modo, ambos pensam como primatas, então a diferença não é sensível.

            Ao lado de Ivy está Chalvord Kater, o último vencedor do Distrito 1. Ele tem em torno de vinte e dois anos, sendo que venceu os Jogos com dezoito, uma fileira de amantes ricas ou riquíssimas na Capital e um suspiro coletivo das mulheres na praça quando ele sobe ao palco. É o treinador dos tributos do Distrito 1. Apenas a ideia de estar respirando o mesmo ar que um grupo de pessoas tão desprezíveis quanto Ivy e Chalvord me dá ânsias de vômito.

            – Bem vindos à vigésima quinta edição dos Jogos Vorazes! – saúda o prefeito, entrelaçando na saudação um longo discurso sobre a causa de nossa grotesca punição, o que foram os Dias Escuros, emendando tudo com uma explicação superficial do sistema do primeiro Massacre Quaternário e divagando sobre a benevolência extrema da Capital. Escuto tudo com a atenção expressada apenas em números negativos.

            Por fim, Ivy e Chalvord aparecem detrás do púlpito, cada um carregando um envelope de papel pardo que informavam os resultados da votação. Durante uma semana, todos os habitantes do Distrito tiveram de comparecer ao Edifício da Justiça e depositar junto a um funcionário seu voto. Os que não o fizessem seriam chicoteados publicamente na praça. Grande parte de população compareceu, porém em alguns dias podiam ser vistos alguns infelizes atados ao poste na praça, inconscientes e sangrando até as almas com as chicotadas.

            Ivy, como sempre, voltou detrás do púlpito saracoteando e relinchando “Primeiro as damas!”, enquanto abria seu envelope, que continha em letras floreadas a inscrição Tributo Feminino. O silêncio foi tão absoluto na praça que eu tinha certeza que a população inteira do Distrito podia ouvir meu coração descompassado. Ivy deliciou-se alguns momentos com o efeito que o suspense causava e anunciou em voz clara:

            – Com cinqüenta e nove por centos dos votos, – algumas pessoas soltaram exclamações de inveja, surpresa e admiração – a escolhida como tributo feminino é Shaey Lettecup!

            Pobre da menina, pensei com meus botões. Deve estar festejando internamente o fato de ter a chance de estar presente no maior banho de sangue da história de Panem, além de exibir seus anos de treinamento para uma máquina mortífera de...

            Espere um momento. Mas Shaey Lettecup sou eu.


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Notas finais do capítulo

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