Lascas escrita por MsWritter


Capítulo 2
Egeu




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            Para ser muito sincero, Watson acordou de fome naquela noite. Ter o jantar impedido foi de longe a coisa menos desagradável que aconteceu nos últimos dois dias, mas mesmo assim, o deixou faminto ao ponto de acordar durante a noite.

            Acordar, porque o que o fez sair da cama foi ouvir uma sucessão de soluços baixos vindo da sala. Soluços reprimidos e abafados, mas preocupantes mesmo assim.

            Holmes.

            Levantou-se devagar, preparando-se mentalmente para encarar o outro. Só seria de alguma validade se estivesse perfeitamente calmo, perfeitamente gentil e perfeitamente acolhedor. Coisa que ele geralmente era, mas com fome, sono e no meio da noite? Fora que, para Holmes, ele tinha que ser aquilo tudo de verdade, não apenas fingir ou querer ser dessa forma. Holmes sempre percebia quando alguma coisa estava errada.

            Foi até a cozinha a passos discretos, procurando alguma coisa para comer na geladeira. Acabou servindo dois copos de leite, que ele só deixou no microondas amornando para enrolar um pouco mais.

            Depois de alguns minutos entre esquentar o leite, adoçar um dos copos, esperar esfriar um pouco e ouvir atentamente os soluços estrangulados de Sherlock cessarem enquanto ele se acalmava e fingia dormir no sofá da sala, Watson voltou a caminhar.

            John sabia que tentar conversar com o amigo agora só iria constrangê-lo, então passou pela sala fazendo mais barulho do que o necessário, deixando o copo adocicado na mesinha de centro.

            Encarou as costas do homem curvado no sofá por alguns segundos, preparando para se retirar, quando ouviu a voz abafada pelo estofado do móvel:

            – Você é mesmo uma mãe super protetora¹.

            – E você é um teimoso irritante. Achei que pudesse estar com fome, só isso.

            – Você mente muito mal.

            – Vai olhar para mim Holmes?

            O homem fez um não, afundando mais ainda o rosto entre o travesseiro e o encosto do sofá. Estava mesmo chorando então. Esse seria o único motivo para não encarar o outro.

            – Holmes. Se você não quer conversar comigo, porque me deixou saber que estava acordado?

            – Você já sabia disso antes Watson. Você já sabia...

            O médico respirou fundo, resignado. Pegou uma almofada jogada na poltrona e a colocou no chão, perto do sofá onde Holmes continuava enfurnado, sentando-se sobre ela.

            – Holmes, olhe para mim.

            – Não.

            – Da forma como seu rosto esteja Holmes, não tem problema... Não tem problema...

            Holmes virou o rosto, mais por afronta do que por estar de alguma forma seguro que de fato não havia problema.

            Seus olhos estavam avermelhados e havia grandes marcas negras abaixo destes, contrastando com sua pele pálida, iluminada pela luz da rua que atravessava as cortinas. Nada mais grave do que daquilo. Pelo que Watson pode ver, foram poucas lágrimas. Deviam ter significado muito para Sherlock, de qualquer forma.

            – A Scotland Yard teria um dia e tanto se me visse nesse estado.

            – Que estado Holmes?

            – Assim, destruído. Inútil... – Falava com desdém e auto-desprezo, o que feria o amigo.

            – Hey. – O médico disse em um tom mais baixo, pousando uma mão suavemente no ombro dele, traçando círculos delicados, mas firmes, com o dedão por cima da camisa que separava a mão da pele do outro. – Inútil Holmes? Scotland Yard? E eles lá têm moral pra falar da inutilidade de alguém? Você completamente bêbado tem mais valia que eles juntos... Lembra-se daquela vez em que...

            –Watson. – Holmes interrompeu. – Olhe pra mim. Como é que eu posso trabalhar dessa forma? Como é que eu vou enfrentar a multidão? Céus, como é que eu vou pagar as minhas contas?

            John respirou fundo mais uma vez, aproximou-se do amigo e deu um beijo suave nos cabelos dele. Murmurou:

            – Preocupe-se em manter a cabeça fora da água e respirar Holmes. Eu cuido das ondas até você ser capaz de nadar de novo.

            – Eu não sei se...

            – Eu cuido das ondas. E dos tubarões, e de o que quer que possa estar nessas águas conturbadas, meu amigo. Pelo menos por enquanto, deixe-me cuidar de você. Daqui a pouco você vai estar forte, irritante e teimoso como sempre foi, mas por enquanto, não precisa se preocupar com o resto do mundo. Só com você mesmo, está bem?

            – E se eu nunca mais conseguir me reerguer?

            – Ai eu vou ter o imenso prazer de viver sabendo que você não se meteu em nenhum caso perigoso, ou que está há dias sem comer ou dormir, trancado no seu quarto, ou ainda que explodiu o teto com algum experimento estranho.

            – Sempre um peso na vida dos...

            – Você não é um fardo Holmes. Na verdade, você é o mais perto que eu tenho de uma família. Tente descansar um pouco, daqui a pouco vai amanhecer.

            Holmes se sentou no sofá, passando o braço por cima do ombro do amigo e pegando o copo de leite, já frio, da mesa. Não estava com fome, nem queria o leite de verdade, mas sabia que Watson ficaria mais tranqüilo se ele tomasse.

            Os dois ficaram alguns minutos tomando leite em goles pequenos, ouvindo os primeiros ruídos da manhã começarem a ecoar pela rua lá fora.

Watson acabou dormindo sentado, ao lado do sofá, sem nem ao menos perceber. Holmes contemplou a possibilidade de mandar o amigo para cama, depois de levá-lo até a cama, mas a presença do outro ali era reconfortante e ele resolveu esperar mais alguns instantes. Cochilou sem realmente ter a intenção, seguro pela companhia de seu único amigo.

_______________________________________________________________

            Na manhã seguinte, mesmo com costas, pescoço e bacia doendo por ter dormido no chão da sala (antes tivesse ficado no sofá), Watson praticamente carregou Holmes até o apartamento em Baker Street. Tarefa do dia? Limpeza.

            John acreditava que pacientes só entravam em depressão profunda por ter tempo para pensar em seus problemas (e só nisso) e que trabalho era o melhor remédio. Na verdade, quem lhe deu a ideia para essa teoria foi o próprio detetive, em seus episódios extremos quando ficava sem um caso. Por outro lado, toda aquela bagunça estava mesmo deprimente. Conclusão? Ah, eles iam mesmo limpar toda aquela bagunça. O ambiente ficaria mais saudável, Sherlock se ocuparia com alguma coisa, John deixaria claro que ainda estava lá para ajudá-lo e pelo menos algum senso de utilidade prática (do tipo que se pode ver o trabalho pronto no final) ia entrar na cabeça daquele teimoso.

            A limpeza não foi lá muito bem, porque nenhum dos dois conseguia fazer muita coisa (e olha que Holmes tentou, toda hora ouvindo seu médico gritando que se ele carregasse peso ia abri os pontos no pulso). Mas no final do dia, estava tudo BEM melhor. Sherlock não acreditava que arrumando o quarto ia arrumar sua cabeça, mas pelo menos Watson estava feliz com o resultado, e isso sim transmitia uma sensação de dever cumprido. Muito bom.

            Mas de repente, ele percebeu uma coisa: só estava em Cavendish Place porque sua casa estava uma bagunça. Agora que estava mais arrumada...

            – Não se acostume com a ideia Holmes, mas eu vou passar a noite aqui.

            – E quando você for embora?

            – Quando eu for embora você vai estar ocupado fazendo suas loucuras outras vez. E ai vai me ligar no fim da tarde e vamos nos encontrar em um bar e beber, ou me pedir ajuda com um caso, ou me mandar um E-mail, coisas que amigos fazem. Tenho certeza que já ouviu falar dessa espécie antes.

            Holmes visivelmente murchou com aquela afirmação, o que foi estranho, já que Watson sempre dizia aquilo e Holmes ria. Maldita depressão estranha.

            – Holmes...

            – Eu sei que eu não devia... Não é certo estar tão apegado a você, sinceramente eu nem entendo esse tipo de comportamento vindo de mim. E mesmo que entendesse não entenderia como ele está transpassando pelos meus poros, sobrepujando o meu orgulho. Mas...

            Uma pausa, Holmes voltou a falar:

            – Eu sou racional demais para entender que não adianta mais segurar essas coisas só pra mim.

            Watson respirou fundo. Aquilo ia longe.

            – Em uma semana você vai assumir que isso tudo foi uma reação lógica a alguma coisa que aconteceu e assumir tudo como normal, então Holmes, por tudo o que é mais sagrado, aproveite esse momento pra se apegar a tudo o que você quiser. Porque depois que racionalizar...– Watson se calou no momento em que percebeu que estava chamando seu amigo de insensível, de anormal, de incompleto, de tudo aquilo que Holmes estava tentando se livrar. Estava cansado, com dor, mas não devia ter dito aquilo. Holmes apenas concordou com a cabeça, se levantou e foi para o seu quarto. Watson respirou fundo mais uma vez, decidindo que apesar dos esforços, o dia estava perdido.

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            Duas batidas. Silêncio. Mais suas batidas. Um chamado. A maçaneta girando. A porta se abriu. Watson.

            – Sherlock. Desculpe-me por hoje a tarde... Eu não...

            –Mycroft te contou, não foi?

            – O que?

            Sherlock apenas ergueu o pulso enfaixado. Ahhh.

            – Ele só tinha dito que não foi a primeira vez... Não disse nada além daquilo.

            –Quando eu era criança, fui a uma vidente uma vez. Ela me disse que um dia, a pessoa que eu mais amava e admirava seria presa e morreria na prisão e que eu seria capaz de dar a vida para tirá-la de lá. Naquele dia, eu pensei que se aquilo fosse mesmo verdade, se eu fosse ser capaz de fazer qualquer coisa, eu tinha a obrigação de facilitar as coisas para o meu lado. Se presa essa pessoa estaria, melhor que eu fosse um carcereiro, um policial, para poder ajudar de verdade. Nesse dia foi plantada a semente da minha profissão. Não pensei mais na vidente, mas a ideia sempre ficou em mim. O tipo de trabalho que teria...

            – Engraçado vindo de você... Já que não acredita nessas coisas...

            – Quando eu completei dezenove anos resolvi meu primeiro caso e eu mesmo prendi o culpado. Meu pai, pelo assassinato de minha mãe. Ele morreu um mês depois, espancado pelos outros presos. E eu não pude fazer nada. Eu daria a vida para aquilo não ter acontecido, para ele não ter feito o que fez, mas a moral estava além de mim, além do que eu queria. Foi quando eu tentei me matar pela primeira vez. Pílulas para dormir. Muitas delas.

            – Holmes... – Watson não sabia bem o que dizer.

            – Se eu não estivesse investigando não teriam encontrado o culpado Watson... Foi tão brilhante, tão bem arquitetado... Somente uma pessoa com acesso tanto aos recursos da Scotland Yard quanto aos hábitos dos envolvidos seria capaz de juntar as peças, e ainda sim era brilhante. Eu quase, quase não percebi. Me pai deixou apenas um fio solto. E isso porque ele achou que eu iria ignorar ou não interpretar... Que a afeição e admiração que eu sentia por ele camuflariam as pistas. Ele só não esperava que eu fosse esse ser torto que não sabe sentir as coisas direito... E que fosse capaz de discernir... – Holmes ficou quieto por alguns instantes, voltando a falar em seguida. – É por isso que Mycroft não se importa. Ele não gosta de mim, porque não vi a tempo. Não fui inteligente o bastante para perceber o que estava acontecendo antes da morte de nossa mãe... Watson... Se eu não quisesse protegê-lo desde o começo eu não estaria investigando... Eu, eu matei os dois. Um por não ser bom o bastante, o outro por não ser humano o bastante...

            Watson ficou em silêncio por alguns minutos. Encarou o amigo mais uma vez, abriu a  boca para falar, fechou de novo. Quando tentou dizer o que quer que fosse, explodiu:

            – VOCÊ É HUMANO!  E VOCÊ NÃO PRECISA SER CONSERTADO! E VOCÊ É BOM O SUFICIENTE! É MAIS QUE ISSO! É O ÚNICO MOTIVO PELO QUAL O PULSO CORTADO É O SEU E NÃO O MEU!

            Quando Watson se recuperou do surto percebeu que Holmes estava com os olhos arregalados e praticamente não piscava mais. Parece que o médico havia falado demais.

            – Você já pensou em...

            Watson apenas concordou com a cabeça, sem olhar mais para outro. Vergonha.

            – E o que...

            – Seu maldito violino às três da manhã.

            – O meu... Violino?

            – É! O SEU MALDITO VIOLINO! QUE VOCÊ NÃO VAI MAIS TOCAR POR SEMANAS PORQUE PARTIU O PULSO EM DOIS!

            – Eu pensei que você não gostasse do violino...

            Watson fez uma pose emburrada. E pela primeira vez em semanas Holmes riu.

            Holmes parou por alguns segundos, finalmente entendendo. Se ele, torto do jeito que era, insuportável e irritante e sem nenhum respeito ou educação, tinha conseguido ajudar um homem como Watson, o médico certamente também conseguiria fazer algo por ele. Consertá-lo, remendá-lo, fazê-lo útil mais uma vez. Inteiro. E ai, inteiro, o que ele teria a temer? Mesmo se Watson não estivesse mais ali, mesmo que à uma ligação de distância. Fechou os olhos e dormiu. Ia demorar para se reconstruir, mas Watson também estava com a alma lascada. Podiam ajudar um ao outro afinal. E tinham tempo. Todo o tempo do mundo. Até porque pelo médico, por seu único amigo, ele iria tentar.

1-    Mother hen em inglês. Para quem assistiu ao filme com o áudio original vai se lembrar da quantidade de vezes que Holmes se dirigiu ao Watson dessa forma.

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo...

Todos os dias
Antes de dormir
Lembro e esqueço
Como foi o dia
Sempre em frente
Não temos tempo a perder...

Nosso suor sagrado
É bem mais belo
Que esse sangue amargo
E tão sério
E Selvagem! Selvagem!
Selvagem!...

Veja o sol
Dessa manhã tão cinza
A tempestade que chega
É da cor dos teus olhos
Castanhos...

Então me abraça forte
E diz mais uma vez
Que já estamos
Distantes de tudo
Temos nosso próprio tempo
Temos nosso próprio tempo
Temos nosso próprio tempo...

Não tenho medo do escuro
Mas deixe as luzes
Acesas agora
O que foi escondido
É o que se escondeu
E o que foi prometido
Ninguém prometeu
Nem foi tempo perdido
Somos tão jovens...

Tão Jovens! Tão Jovens!...


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Notas finais do capítulo

The end (?)



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