Lascas escrita por MsWritter


Capítulo 1
Ícaro


Notas iniciais do capítulo

Apesar de ser movieverse, tem um toque ou outro da série da BBC, mas a história deles em si não corresponde diretamente a nenhum seriado, filme ou livro.
Tecnicamente é um "one-shot", então a música de abertura é "Boats and Birds" do Gregory and the Hawk", encerramento "Tempo Perdido" do Legião Urbana.
A carol está, em algum canto escuro do universo, betando a fic no momento, então quando ela resolver dar o ar de sua graça, eu posto a versão corrigida.
Deixem-me saber o que acharam (primeira SH)



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If you be my star

I'll be your sky

You can hide underneath me and come out at night

When i turn jet black and you show off your light

I live to let you shine

I live to let you shine

But you can skyrocket away from me

And never come back if you find another galaxy

Far from here with more room to fly

Just leave me your stardust to remember you by

If you be my boat

I'll be your sea

A depth of pure blue just to probe curiosity

Ebbing and flowing and pushed by a breeze

I live to make you free

I live to make you free

But you can set sail to the west if you want to

And past the horizon till i can't even see you

Far from here where the beaches are wide

Just leave me your wake to remember you by

If you be my star

I'll be your sky

You can hide underneath me and come out at night

When i turn jet black and you show off your light

I live to let you shine

I live to let you shine

But you can skyrocket away from me

And never come back if you find another galaxy

Far from here with more room to fly

Just leave me your stardust to remember you by

Stardust to remember you by

            Watson encerrou suas consultas mais cedo naquele dia. Ainda bem, estava cansado.

            Caminhava suavemente pelas ruas de Londres, não se importando com a dor sutil e constante em sua perna. Acidente de carro.

            Estava uma noite chuvosa, ele deveria estar sendo mais cuidadoso. Discutia alguma coisa com sua irmã... O que era mesmo? Qual o motivo da discussão? Ele não se lembrava mais, só esperava que fosse importante. Não viu o carro virando em alta velocidade, fugindo da polícia.

            Acordou semanas depois no hospital, com a perna imobilizada e uma dor absurda de cabeça. Estava vivo. Depois de horas sendo examinado e fazendo perguntas que nunca foram respondidas, o Inspetor da Scotland Yard, Lestrade como ele conheceu naquele dia, foi falar com ele.

            Explicou que estavam perseguindo um serial killer, que esse homem bateu no carro que Watson dirigia, que Watson havia sofrido um acidente, que no final o homem tinha conseguido fugir e o pior, que sua irmã não havia resistido.

            Watson mal teve tempo para assimilar todas estas informações e de repente via um policial de cabelos negros e desarrumados, magro e pálido, adentrar seu quarto de hospital de forma brusca e começar a insultar o inspetor de várias formas, sobre como haviam destruído seu caso e deixado seu suspeito fugir.

            Lestrade disse que tiverem que parar para socorrer as vítimas de um acidente e lhe apresentou o homem na cama. Foi assim que Watson conheceu Holmes.

            Agora, cerca de dez anos após o tal caso, Watson nem relacionava mais o homem à terrível morte de sua irmã, ou ao serial killer que Holmes encontrou uma semana depois, tentando se esconder na França. Agora Sherlock era um amigo precioso que lhe dava trabalho, mas que ele gostava mesmo assim.

            O homem era excêntrico, indiferente, arrogante, egoísta e vários outros adjetivos pejorativos que Watson já não perdia mais tempo listando em sua cabeça, mas era também brilhante. Era genial ao ponto de poder se portar da forma como bem entendesse, e ainda assim ser um dos detetives particulares mais procurados da Europa. Detetive, porque há anos havia deixado a polícia alegando que os casos eram chatos e entediantes.

            Essa genialidade foi chamando a atenção do jovem médico ao ponto que logo se tornaram grandes amigos. E a amizade com o tempo foi quebrando a máscara de frieza, invulnerabilidade e indiferença que Holmes vestia, permitindo que o doutor tivesse pequenos vislumbres de o que o amigo realmente sentia: solidão. Watson quase tinha pena de Holmes. Só não tinha porque o que realmente sentia era uma profunda admiração. Novamente, o homem era simplesmente brilhante.

            E foi ver esse gênio louco, distraidamente tomando café em um pub que cortou sua linha de raciocínio. Adentrou o local e se dirigiu à mesa onde o homem estava sentado. Começou a falar, mesmo que Sherlock não olhasse para ele:

            – Você está me seguindo.

            – Meu caro Watson, eu sei que é difícil seguir minha linha de raciocínio, mas você não é o centro do meu universo.

            – Claro que não. Até para minha mente limitada é um tanto quanto óbvio que o centro do seu universo não é ninguém menos que você mesmo. – Disse o médico, puxando uma cadeira e sentando-se à mesa.

            – Observação óbvia e até mesmo tola Watson, uma vez que é claro que apenas aquilo que me cerca pode ser relevante para mim mesmo.

            John pediu um chá para a garçonete, mal se importando com o comentário do outro. Típico.

            – Então, por que está me seguindo? – Insistente.

            – Não estou te seguindo. – Teimoso.

            – Não estava esperando eu sair do trabalho então?

            – Não.

            – Sherlock!

            – John! – Holmes repetiu o tom.

            – Holmes, por favor. Esse é o único pub no caminho da clínica até minha casa, completamente fora do caminho entre Baker Street e a Scotland Yard. Você vem tomar café justo aqui e quer me fazer acreditar que não esperava me ver?

            – Eu gosto do café daqui. Eles temperam com canela. Vale a pena mudar meu caminho.

            – Holmes... Você está mentindo.

            – Por que diz isso?

            – Você odeia canela.

            – Certo. – Holmes encarou seus sapatos. Não tinha como negar aquilo tudo, afinal. – Mas eu definitivamente não estava te seguindo, afinal, eu conheço o seu caminho do trabalho para Cavendish Place...

            – Tudo bem Holmes... O que foi?

            – Nada Watson...

– HOLMES!

– É que... Faz quase dois meses que eu não te via e...

            – Eu sei que não tenho tido muito tempo mas...

            – Então, como anda a vida com Mary? – O detetive interrompeu com um sorriso forçado no rosto. – Espero que esteja feliz em sua nova casa com sua namorada agora que...

            – Holmes. Mary e eu estamos dando um tempo. Faz uma semana que ela voltou para a casa dos pais.

            – Então por que você não?

            – Você sabe muito bem que eu saí de Baker Street por causa da cocaína.

            – Pensei que fosse por causa dela que...

            – Holmes, como eu poderia levar Mary em casa com você drogado no sofá?

            O detetive baixou os olhos. Depois de alguns minutos de um silêncio um tanto quanto embaraçoso, Holmes se levantou dizendo que tinha que ir. Saiu do estabelecimento antes que Watson o impedisse, deixando a conta para trás.

_______________________________________________________________

            – O que deseja, Inspetor? – Watson perguntou para Lestrade, abrindo a porta e permitindo que o Inspetor adentrasse a sala de sua casa.

            – Vim lhe pedir sua opinião acerca de um caso doutor. Pelo tempo que ajudou Holmes, creio que seja a pessoa mais capaz de nos auxiliar.

            – Por que não contatou Holmes diretamente? Ele é certamente a pessoa mais capaz no caso.

            – Eu já o fiz Watson. Holmes não se interessou pelo caso.

            Típico. Era muito comum que Holmes não desse moral para muitos dos casos tolos de Lestrade. O que não era muito comum era tanto o detetive não fazer questão de provar de todas as formas possíveis como o inspetor era obtuso, resolvendo o caso sem nem ao menos sair de casa. Menos comum ainda, era Lestrade procurar Watson por um caso aparentemente tolo. A Scotland Yard era extremamente dependente do intelecto de Sherlock, não de Watson.

            – Bom inspetor, se me esclarecer os fatos. – Sempre gentil, Watson estava disposto a ajudar.

            Quando Lestrade começou a explicar as reviravoltas do caso, Watson se viu extremamente preocupado em manter sua boca fechada. Era um caso sério. Muito sério na verdade. Estavam procurando o líder de uma gangue conhecida vivendo sob identidade falsa e escondido em Londres. Era um homem perigoso. Havia suspeitas de que estava refazendo seu grupo em solo londrino, com quatro mortes já atribuídas a ele. Quando estavam quase alcançando o suspeito, no entanto, se viam completamente perdidos, enrolados por pistas falsas e deduções desmentidas.

            Watson não pôde ajudar. E pôde menos ainda entender o porquê de Holmes ter recusado o caso. Era algo claramente interessante e depois, Holmes nunca deixava um criminoso desse porte solto.

            – Inspetor... Eu sei que parece meio imbecil, mas... Explicou isso tudo mesmo para Holmes?

            – Expliquei sim Watson. Por quê?

            – O que exatamente ele disse a respeito do caso?

            – O de sempre doutor... Que era entediante e não valia à pena sair por isso.

            Conversaram mais um pouco sobre o caso, até que Lestrade finalmente se despediu, deixando Watson em um estado de muita preocupação. Por Londres, sim. Mas principalmente por Holmes. Já fazia quase uma semana que não via o amigo e agora o comportamento dele no pub lhe pareceu estranho. Não era a primeira vez que ele se comportava daquela forma mas...

            Procurou o celular no meio dos papeis que estavam sobre sua mesa. Fácil de encontrar, já que estava tudo muito bem organizado.

            Mexeu um pouco na agenda de telefone, até o nome Clarke brilhar na tela. Apertou o send e esperou poucos segundos até o outro atender.

            – Alô? – Respondeu a voz meio bêbada do policial do outro lado da linha.

            – Clarkey... Watson. Não acha imprudente ficar bebendo com um criminoso à solta?

            – Não seja chato John... Sempre tem um ou outro criminoso a solta. E depois, meu expediente acaba às seis.

            Watson desistiu de argumentar com um bêbado inconseqüente por telefone, indo direto ao assunto:

            – Clarkey, você estava com Lestrade quando ele foi levar o caso do gangster para Holmes?

            – Sim! – O outro respondeu animado. Watson pôde ouvir algumas pessoas a sua volta. Em sua mente, podia até ver o policial levantando seu copo de chopp e derrubando nos outros.

            – Como ele estava Clarkey?

            – O de sempre. Você sabe que ele nunca muda. Nada afeta aquele bloco de gelo... John... você não quer vir beber com a gente?

            Watson se recusou a perguntar quem era “a gente” para não passar raiva com mais policiais bêbados na Scotland Yard.

            Resignado, desligou o telefone e ponderou se era melhor ir atrás de Holmes ou não. Olhando novamente para o visor do telefone, chegou à conclusão de que já era tarde e o que quer que fosse, podia resolver no dia seguinte.

            Acordou às quatro e pouco da manhã com o celular vibrando nervosamente sobre a mesa. Olhou para o visor, o nome Holmes e uma foto do detetive dormindo na tela. Atendeu o aparelho com extremo mal humor:

            – Que você quer Holmes?

            Nada.

            – Holmes, você sabe que horas são?

            Silêncio.

            – Sherlock! Se você não me der um excelente motivo para eu continuar aqui bancando o imbecil eu juro que...

            – Eu sinto muito Watson.... – Uma pausa. – Pode ficar tranqüilo agora.

            E com isso ele desligou o telefone.  Watson só não ficou extremamente irritado porque ficou ainda mais preocupado. Holmes pedindo desculpas já era algo totalmente inesperado, agora, a frase com um sentido tão vago e tão amplo...

            Acabou rolando mais meia hora na cama, decidindo que deveria ir visitar o amigo para tirar aquela cisma de sua cabeça. Pegar um ônibus ou chamar um táxi às cinco da manhã em pleno inverno era quase impossível, então foi a pé mesmo. Já eram quase sete quando finalmente chegou à Baker Street.

            Como não tinha mais a cópia da chave, não teve escolha senão tocar a campainha e esperar que uma Sra. Hudson muito desarrumada e com cara de quem acabara de acordar viesse atender a porta.

            – Doutor Watson? Aconteceu alguma coisa?

            – Holmes, onde ele está? – Watson perguntou, entrando sem cerimônias no hall.

            – Ora doutor... Está dormindo em seu quarto... onde mais? Sabe que ele se tranca em seu quarto com aquele maldito violino quando não está trabalhando... Não sei porque não encontra um emprego fixo... Ou quem sabe um hobby.

            Watson respirou fundo, realmente, aquilo tudo parecia ridículo. Mas ele tinha que saber, tinha que olhar o amigo e ter certeza de... De que mesmo?

            Só esperava encontrar o detetive o fazendo de imbecil mais uma vez.

            – A Sra. se importa se eu for verificar?

            – Bom doutor... Já que está aqui mesmo...

            E Watson foi até o quarto do amigo. Bateu uma, duas, várias vezes. Nada.  Irritado com o absurdo da situação, pegou o celular do bolso e ligou para Holmes, podendo ouvir o toque esganiçado do telefone mesmo do lado de fora do cômodo. Nada.

            Com raiva e frustrado, tentou abrir a porta. Trancada. Esmurrou a madeira. Sem resposta. Desesperado, deu um chute na fechadura. A porta se escancarou, revelando o interior escuro e lúgubre do quarto.

            Watson entrou desviando dos objetos pelo chão, aproximando-se e abrindo a janela para que os primeiros raios da manhã entrassem no quarto. Circular o ar também não parecia má ideia.

            Agora, olhando para a zona no cômodo... COMO SHERLOCK PODIA SEQUER SOBREVIVER NAQUELA BAGUNÇA? Aquilo não podia ser saudável... Fora o cheiro de mofo e ferrugem.

            Começou a coletar alguns poucos itens do chão. Algumas peças de roupa, alguns copos espalhados, o violino. Cadê o arco? Estreitando os olhos, encontrou o objeto procurado, equilibrado sobre uma pilha de livros velhos.

            Foi até lá, tomando cuidado para não derrubar tudo. Tanto cuidado com os livros para tropeçar em uma seringa esquecida no chão e cair em cima da maldita pilha e... Espera, seringa?

            Pegando-a em suas mãos ligeiramente trêmulas, percebeu que estava usada. Estranho. Holmes parecia não ter vergonha do vício dos, como ele chamava, estimulantes externos, mas ele nunca deixava as seringas ou as drogas propriamente ditas espalhadas por ai. Simplesmente porque ele sabia que elas precisavam estar em bom estado quando fosse usar de novo. Tá, a seringa era descartável, mas mesmo assim...

            Holmes. Onde estava Holmes?

            Procurando pelo homem pelo quarto, encontrou uma gravata que deve ter sido usada como torniquete, com vestígios de sangue.

            Ele precisava encontrar o amigo.

            Poucos minutos depois, encontrou o homem encolhido atrás do sofá, abraçado no próprio corpo, como que buscando se aquecer. Preocupante o suficiente pelo fato de o mundo estar congelando lá fora. Pior pelo fato de que nem tremendo o homem estava. Aquele definitivamente não era um lugar confortável para se dormir...

            Watson se aproximou, virando o corpo do amigo para olhá-lo. Pálido. Mortalmente pálido. Buscou o braço dele, encontrando marcas vermelhas sujas de sangue seco. O que explicava o cheiro de ferrugem e... Não. Viu também o pulso ensangüentado. Desesperado, procurou pelo pulso do amigo em sua jugular, encontrando o fraco.

Em meio a gritos, conseguiu que a Sra. Hudson chamasse uma ambulância. Não abandonou o corpo frio de Sherlock em momento algum.

            Quando, aos poucos, Holmes recobrou os sentidos, não tinha forças para abrir os olhos. Tentou entender onde estava pelos sons que ouvia, mas tudo estava muito confuso e era difícil pensar. Ele sentia que algo estava errado, que tinha perdido alguma coisa. Tudo o que ele sabia era que ele queria muito que aquilo parasse. Aos poucos, o sono o engoliu outra vez, e essa angústia ele continuou sentindo em seus sonhos.

            Da segunda vez em que acordou, conseguiu distinguir melhor o que estava acontecendo. Com os olhos apenas semi-abertos, espiou o quarto, pela penumbra. Definitivamente não o dele. Estava deitado com a barriga para cima, com cobertores cuidadosamente colocados sobre o corpo. Definitivamente, não uma posição em que ficaria sozinho. Pressionou as pontas dos dedos contra a cama, sendo capaz de sentir os lençóis finos e gastos, mas impecavelmente limpos. Definitivamente, alguém estava tendo muito trabalho para fazê-lo dormir.

            Sentindo-se estranhamente seguro pelo cheiro do quarto (cheirava a roupa limpa, remédios, fumaça e desinfetante barato. Cheiro de Watson) foi-se permitindo relaxar contra os travesseiros, o cansaço novamente clamando seu espaço na mente e no corpo. O que lhe manteve acordado foi ouvir a voz conhecida, mas estranhamente alterada, de seu único amigo berrar em outro cômodo:

            – Eu sei que parece impossível, mas induzido pelas drogas ou não, o fato é que ele tentou se matar. Não... O corte no pulso não foi tão fundo. Acho que não tinha mais forças... Sim, overdose, mas já está sob controle. – Uma pausa. – Talvez fosse o caso de você vir... – Uma pausa maior. – Não, eu sempre achei que ele se amasse demais pra tentar qualquer coisa nesse gênero. – Silêncio por alguns minutos. Watson pareceu querer cortar o que outro lhe dizia. – Eu sei que ele tem alguns episódios extremos de depressão, mas nunca antes... – Pausa. – COMO ASSIM NÃO É A PRIMEIRA VEZ?

            Então era isso. John o tinha encontrado em um quadro de overdose, imaginado tentativa de suicídio e ligado para Mycroft. Genial. Agora ele teria o irmão e o próprio John fazendo o maior alarde a sua volta nos próximos dias, senão semanas. De onde eles tinham tirado essa ideia tão absurda? Sherlock nunca tentaria... Foi quando tentar mexer o braço direito o fez perceber a dor em seu pulso. Olhando para sua própria mão, descobriu o pulso enfaixado, com alguns traços de sangue. Foi quando se lembrou. Não totalmente, alguns flashes apenas, mas se lembrou das sombras que sentiu atingindo sua mente, do vazio em seu peito. Lembrou-se de ter ligado para John e não saber o que dizer. Principalmente, lembrou-se de ter rasgado sua pele com o próprio canivete, tomando o cuidado de cortar primeiro o direito, por medo de não ter forças para fazer o contrário com a outra mão. Não tinha conseguido cortar a outra?

            Droga... Ele tinha tentado se matar.

            – Como assim não vai vir? Ele é seu irmão! Está doente! Sim, está fora de perigo mas... Tudo bem... Tudo bem... Não, não precisa se incomodar. Não será necessário... Eu ligo. Adeus.    

            Percebeu o telefone sendo desligado. Podia até ver a imagem: Watson com a cabeça apoiada no braço, encostado na porta do quarto, respirando fundo para entrar. Cinco, quatro, três, dois...

            A porta se abriu e um John muito abatido entrou no quarto escuro, tendo a silhueta iluminada pela luz fluorescente do corredor. A porta foi fechada, a silhueta sumiu. Holmes ponderou por alguns instantes se não tinha imaginado o amigo em seu quarto, quando este acendeu a luz. Incomodado, fechou os olhos, resmungando sem forças.

            Percebendo o amigo desconfortável e, principalmente, acordado, Watson se dirigiu até a cama, sentando-se em uma cadeira próxima.

            – Você me assustou sabia? – Disse com um sorriso forçado no rosto. – Como está se sentindo?

            Holmes apertou os olhos, tentando se acostumar com a claridade. Nesse meio tempo, aproveitou para analisar o médico a sua frente.

            – Você está preocupado. – Sherlock balbuciou, tentando se acomodar nos travesseiros.

            Watson empalideceu quase que instantaneamente. Continuou falando em voz baixa:

            – Claro que estou preocupado... Você está em uma cama de hospital e...

            – Não. Estou fora de perigo. E este hospital... Você conhece alguém importante aqui dentro, talvez alguém que esteja lhe devendo um favor. Afinal você trabalha na cirurgia... Esse quarto claramente não é para os pacientes da emergência. Enfim, você não está preocupado com o preço do quarto também, já que sairemos daqui antes que se incomodem ao ponto de cobrar.

            – Holmes, como você...

            – Mycroft se ofereceu para pagar as despesas. Você recusou. Só prometeu que o avisaria caso precisasse de alguma coisa para poder desligar o telefone. Watson... O que lhe levou a acreditar que ele se importaria ao ponto de deixar seu emprego sem supervisão para me visitar? Isso seria ridículo...

            Foi interrompido por um ataque de tosse. Quando o acesso passou, percebeu-se sentado na cama, sendo apoiado pelos braços de John. Mal entendeu onde estava e era empurrado para a cabeceira da cama.

            Watson pegou um copo d’água e ofereceu. Holmes ergueu a mão direita para pegá-lo. Watson preferiu não soltar o copo afinal. Alguns poucos goles depois, Holmes finalmente se recostou novamente nos travesseiros. Desta vez, mais sentado do que deitado.

            – Então Watson. Por que está preocupado?

            – Holmes, você quase morreu!

            – Não... Estou fora de perigo... E depois, você vive dizendo que eu ainda vou ser minha própria morte. Você não está preocupado comigo. Está preocupado porque não percebeu isso chegando. Aconteceu uma coisa que você julgava impossível.

            – Holmes eu...

            – Não é culpa sua Watson.

            O médico respirou fundo, tentando se acalmar. Alguns segundos depois, levantou-se, e com uma mão no ombro do outro, disse:

            – Você vai ter alta ainda hoje. Eu mesmo vou te levar embora. Descanse por hora.

            – Embora para onde?

            – Para minha casa Holmes. Por enquanto.

            – Por quê?

            – Porque a sua casa está uma bagunça.

            – Watson?

            – Sim Holmes?

            – Alguém mais sabe?

            – Mycroft.

            – Só ele?

            – Sim. Mesmo os funcionários do hospital só sabem da overdose.

            – Quero que continue assim...

            No final daquele mesmo dia, Watson levou Holmes para sua casa, em Cavendish Place. O imóvel era mais ou menos do mesmo tamanho que a casa em Baker Street, mas como estava bem organizado, parecia ter três vezes o tamanho da casa de Holmes.

            Apesar de possuir um quarto de hóspedes, este acomodava grande parte da mudança que o médico não teve tempo de organizar ainda, então restaram duas opções para o detetive: a cama do médico, ou o sofá da sala.

            Holmes podia ser egoísta e um tanto quanto insensível, mas sabia que além de não fazer a menor questão da cama (em sua própria casa ele não dormia na cama) se Watson passasse a noite no sofá, acordaria reclamando de dores absurdas no corpo, a maioria em função de suas cicatrizes em seus muitos acidentes e casos em que auxiliou Holmes.

            Conclusão? Holmes ficaria no sofá. Aliás, ele já estava no sofá, mexendo nos canais da televisão sem realmente parar em nenhum.

            – Está com fome Holmes? – Disse Watson por detrás da porta da geladeira na cozinha, procurando coisas para fazer o jantar.

            – Não.

            Watson sentiu o tom entediado do amigo, fechou a geladeira e caminhou para a sala, erguendo as mangas da camisa branca que ainda usava.

            Sentou-se na poltrona que ficava ao lado do sofá onde Holmes estava estirado:

            – Holmes?

            – Sim Watson?

            – Você pode me contar o que foi que aconteceu?

            – Overdose.

            – Você nunca erra na dose Holmes... Você fez de propósito.

            Holmes desviou os olhos da televisão, focando-os nos azuis e preocupados do amigo.

            – Se já sabe, por que pergunta?

            – Holmes... E por que cortar o pulso?

            – Pra ter certeza.

            – Certeza de que?

            – Que eles iriam embora.

            – Eles quem Holmes?

            Holmes levou a mão esquerda à cabeça, correndo os dedos nervosamente pelos cabelos bagunçados.

            – Todos eles. Eu não quero mais... Não me deixam em paz...

            Foi quando Watson percebeu que Holmes deveria estar falando de seus próprios pensamentos. Nunca antes ele havia visto Holmes por aquela perspectiva. O homem era um gênio, capaz de enxergar os menores detalhes e chegar a conclusões brilhantes acerca deles. Mesmo sem se dar ao trabalho de memorizar a cena, sabia se qualquer objeto estivesse fora do lugar, e porque ele saiu do lugar. Não era algo que lhe parecia necessitar de esforço.

            Agora, isso acontecia o tempo todo? Sempre com uma torrente de fatos e detalhes inundando sua mente? Sem lhe dar sossego, com imagens e deduções que ele não conseguia controlar... Girando e girando e... Céus, era por isso que Holmes se recusava a dormir, tocando aquele maldito violino durante a madrugada? Era por isso que sua mente brilhante se rebelava ante a estagnação? Porque nunca ficava em silêncio... Ele precisava ter em que focar. Casos, problemas, trabalho.

            – Watson? – A voz baixa de seu amigo lhe despertou de seus devaneios.

            – Holmes? – Respondeu em um tom mais calmo.

            ­– Watson... Você consegue me definir “tudo”?

            – Tudo é... Bom, tudo é tudo...

            – E “bem”?

            – Bem é... aquilo que é bom, que está certo. Que é, bom que é “Bem”... São conceitos básicos Holmes, nenhuma pessoa normal questionaria, é como “sim” e “não”...

            – Como é Watson?

– Como é o que Holmes? – John já estava se cansando daquele assunto tão confuso.

–Como é ser normal?

            O quê? O médico piscou algumas vezes, com a expressão chocada no rosto. Primeiro pelo absurdo da pergunta, depois por não saber responder.

            – Holmes... Você...

            – Como é não precisar ser consertado Watson? Como é ser aceito? Não ficar procurando onde está seu defeito e não encontrar?

            Watson fechou as mãos com força, gastando sua energia para não explodir e dizer poucas e boas na cara do amigo. Ele não precisava de uma explosão agora.

            – Você não precisa ser consertado Holmes! Não há nada de errado com você!

            Sherlock pareceu murchar com aquela afirmação, sem se convencer de verdade, aceitando que não era Watson quem o ouviria. A realização disso apertou o coração do outro como se uma mão espremesse suas entranhas. Se ele não ouvisse o amigo, quem o faria?

            – Holmes... Sherlock... O que está acontecendo? O que está se passando na sua cabeça?

            O detetive pareceu pensar um pouco sobre como responder aquilo. Watson continuou:

            – Eu sei que posso demorar um pouco pra entender, mas eu me preocupo Holmes. Eu quero saber...

            – Não é isso Watson... É que... – Respirou fundo, desviou o olhar e continuou, quase como num sussurro. – É que não tem nada...

            – Holmes?

            – Se pensamentos fossem barcos Watson... Que navegassem sem rumo em dias calmos e ensolarados, e em mares conturbados durantes as crises... Minha mente seria uma tempestade... Troveja, faz barulho, o mar está em fúria. Mas não há um único barco que sobreviva à maré...

            Watson não sabia o que dizer. Ele realmente não tinha entendido o que o amigo disse. Pior, não sabia como reagir àquilo.

            – Sherlock... Eu não sei o que...

            Parou a fala a meio caminho, reparando que o olhar de Holmes estava fixo na jaqueta jogada no chão, a mesma que usava quando Watson o encontrou. Estava segura na mala quando o médico o trouxe do hospital, esperando para ser lavada, mas o detetive a tirou e jogou no chão.

            O que aquela jaqueta tinha de tão diferente? Watson se levantou e rumou em direção à peça descartada, indiferente ao protesto baixo, mas desesperado do outro.

            Fuçou na jaqueta, encontrando um recorte amassado de jornal num dos bolsos internos. Uma nota de casamento. Um banqueiro e sua esposa, Irene Smith. Que ele conheceu como Irene Adler anos atrás.

            Toda vez que aquela mulher aparecia trazia problemas. Holmes ficava semanas em um estado que beirava a catatonia, só para pegar os casos mais desastrosos depois. Para Watson eram três trabalhos: primeiro de tirar Holmes de seu episódio depressivo, depois de remendar o corpo ferido do amigo, e ai obrigá-lo a ficar na cama pelo menos o tempo suficiente para os pontos não abrirem e ele ter que fazê-los outra vez. Retificando: eram quatro trabalhos.

            Mas... Foi isso? Saber que ela havia se casado (de novo), obviamente por dinheiro (de novo) e depois de tantos meses (de novo) e com um divórcio palpável aos olhos (de novo) e seu inevitável retorno para o lado do amigo e breve abandono (de novo) que deixou Holmes naquele estado depressivo tão drástico ao ponto de pensar em suicídio (de acordo com Mycroft, de novo)?

            O próprio Holmes interferiu na linha de raciocínio do amigo:

            – Eu sei que ela vai voltar, John... Não é isso que...

            – Ela está se casando por dinheiro Holmes. Não é por amor.

            – Eu sei que não, é que...

            – É o que Holmes? – Watson quase mordeu a língua ao perceber que, ao mesmo tempo em que exigia respostas, era ele quem impedia que o amigo continuasse.

            – É que ela sempre vai embora... Eu não, eu não sou bom o bastante... E eu não sei o que está errado... Não é só o dinheiro...

            Watson percebeu o amigo tremer um pouco, com os olhos buscando todo e qualquer objeto na sala, sem de fato focar em alguma coisa.

            Sentou-se novamente ao lado dele, puxando-o para um abraço que ele não aceitou em um primeiro momento.

            Talvez não fosse Adler afinal. Talvez a partida dela fosse só a gota d’água. A morte dos pais, a indiferença do irmão, a partida tão drástica do médico... Irene foi só o gatilho que liberou as emoções presas por tantos anos no peito do detetive. Emoções perigosas quando somadas, potencializadas pelos anos de repressão.

            Holmes era um viciado, estava doente. O médico já sabia disso. Sabia que era propenso à episódios extremos de humor, mas não imaginou a miséria em que seu estado de espírito se encontrava. Estava deprimido, precisava de ajuda. Estava doente de uma forma que Watson não sabia cuidar.

            Então fez o que achou correto, mostrar para o amigo que estava ali, que era sólido e que não estava indo a lugar nenhum. Não dessa vez.

            Depois de alguns segundos, o próprio detetive se afastou, endireitando-se no sofá.

            – Está tudo bem agora, Holmes?

            Os olhos enviesados dele foram resposta o suficiente. Ele finalmente entendeu a natureza de algumas das perguntas que o amigo tinha lhe feito momentos antes.

            – Acho que estamos todos cansados, meu caro. Por que não nos retiramos e conversamos pela manhã?

            – É aqui que eu vou dormir Watson. – Holmes declarou, fazendo menção de se ajeitar melhor no sofá.

            John apenas se levantou e foi até seu quarto, deixando o outro na sala. Não sabia se conseguiria dormir ou não, mas pelo menos daria ao amigo uma oportunidade de descansar.


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Notas finais do capítulo

To be continued...



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