Entao desci as escadas de madeira velha que rangiam a cada passo. Era um barulho perturbador. Finalmente, cheguei à porta, toquei a maçaneta fria e a girei. Quando meus olhos se viraram para quem estaria me esperando. O vi. Com olheiras, um sorriso no rosto, sua farda e segurando algumas flores. Ninguém menos que Tom Kaulitz, o soldado da noite passada.

Fiquei esperando ele dizer algo. E então, sem jeito, tomou coragem:

- Ola, senhorita.

- Ola, senhor Kaulitz.

- Gostaria de me desculpar por ontem a noite. Fui mal educado sendo que não sabia – e nem sei – seu nome. Sei que fui grosso, e nem te conhecia, então, aqui estão algumas flores de desculpas.

Ele me entregou algumas rosas, um pouco murchas, mas bonitas e eu as cheirei. Era um cheiro delicioso. Talvez aquele soldado não fosse tão idiota e grosso como os outros. Me concentrei nele, e queria mostrar um pouco de compaixão e gratidão pelas flores.

- Muito obrigada, senhor Kaulitz...

- Por favor, me chame de Tom – disse ele me interrompendo.

- Tudo bem, obrigada Tom, pelas flores. E bem, meu nome é Annelise, mas a maioria das pessoas me chama de Anne.

E um sorriso sincero se abriu no rosto de Tom, como se estivesse aliviado. Por um instante, percebi que ele não parava de olhar nos meus olhos.  E vi um brilho no olhar dele, mas desviava meu olhar sempre que podia.

Ele então disse:

- Muito prazer então, senhorita Anne, foi um pra... – de repente vi duas pernas no ar, ele tinha escorregado no gelo das escadarias.

Desci correndo, e rindo ao mesmo tempo. Me ajoelhei para ajudá-lo, mas não conseguia parar de rir.

- Você esta bem? – disse rindo. Entao tapei minha boca para tentar parar.

- Estou bem, sem problemas.

E com as mãos nas costas, ele se levantou, disse um “ate logo” e saiu pela rua na manha gélida de domingo.

Tom parecia ser diferente. Aposto que a maioria dos soldados não faria tal coisa. Muito menos me trazer rosas. Ainda mais no inverno.

Ele era bonito, de fato, mas não queria me apaixonar. Muito menos por um soldado alemão socialista. Quem dera eu ser tola como era antes. Me apaixonando por cada um que me desse flores e me levasse para passear no parque. Naquela época não tinha nada a perder, mas dessa vez eu tinha e não podia nem queria ceder meu coração tão fácil. Muito menos por alguém que havia me molestado e bêbado ainda por cima. Apesar de ser tão doce quando sóbrio.

Sai da neve gélida para o conforto da casa. Quando fechei as portas, segurando as rosas, encontrei o olhar assustado de Julia me encarando.

- O que foi Julia? Você está bem?

- Eu estou como sempre. Você que deve ter perdido a cabeça em algum lugar. Posso não ser adulta, mas acho que você está entrando numa fria. Minha Irma? Aceitando flores de um soldado? Me desculpe Anne, mas acho que você perdeu sua cabeça de vez.

- Julia, você não pode falar nada! Olhe o seu tamanho! E eu aceito rosas de quem eu bem quiser, está me entendendo? Se você se lembra, agora sou eu que cuido se nós minha cara, e você não tem o direito de falar assim comigo!

Quando percebi, já estava gritando, algo que não era normal para mim. Sempre fui calma, mas Julia tinha me tirado do serio.

- Anne, você prometeu! Não sou eu, é você! Pelo o que eu me lembre, você que prometeu a si mesma que odiaria os soldados para sempre! Ou você já esqueceu do papai, da mamãe e do nosso irmãozinho? Pense bem!

- Eu já estou bem cansada dos seus dramas Julia, e não pense que estou brincando, você não para! Tente ficar alguns minutos sem fazer drama!

- Só que não fui eu que prometi algo tão importante a mim mesma e não estou cumprindo.

Ao dizer isso, Julia se virou e foi embora fazer algo. Pelo jeito que a conhecia ela não gostaria de ficar perto de mim de jeito algum. Quando ela fica com raiva, não quer ver nem falar com ninguém, muito menos a pessoa com quem discutiu, no meu caso, eu.

Por outro lado, Julia tinha toda a razão de ficar brava comigo. Eu tinha, de fato, quebrado minha promessa, mas nunca estive tão confusa minha vida toda. Amor de família e amor a alguém são coisas totalmente distintas, como poderia ter me feito prometer algo assim? Amor realmente é algo complexo. Porem, não era exatamente amor o que eu sentia por Tom Kaulitz. Ao contrario, apenas gostava dele. Tinha medo de fazer aquilo crescer, mas ele me atraia de um modo estranho, como um ímã, e temia no que essa atração poderia me levar.

Fui levar as rosas para a cozinha, colocá-las na água quente. Nem as flores mereciam aquele frio. Quando cheguei à porta, vi Herr Fritzwald encarando a neve com as luzes acesas. Ele se virou para mim com a mesma expressão cansada e sem se mover, disse:

- É bonito, não? A neve.

Estava pasma em como a expressão dele havia mudado em alguns minutos.

- Herr Fritzwald, o senhor está bem?

- Venha cá, Anne.

Me aproximei e percebi os braços dele me envolvendo num abraço. Sem me soltar, disse:

- Anne, Frau Fritzwald está morta.

Agora eu entendia tudo. Porque ele estava tão estranho ultimamente. Por outro lado, eu estava completamente chocada e comecei a chorar. Nunca resistia ao choro.

- Como?

- Ataque cardíaco, os médicos falam, mas eu não confio neles.

Entao, ele me soltou e limpou as lagrimas que escorriam, então continuou a falar:

- Só não conte para Julia por enquanto, apenas quando ela perguntar, está bem?

- Sim, senhor.

Morte. Como algo tão pacifico poderia afetar a tantos? Agora a alma da pessoa estaria em paz, e a paz é a coisa mais perfeita que se pode ter. Por outro lado, a morte é algo chocante. Apenas o corpo sem sua áurea continua na terra, enquanto a alma se vai. A alma sai do corpo, se descola. Algo muito estranho, de fato, porem, algo natural.