Entre Os Corvos escrita por Batatisa


Capítulo 1
Capítulo Único - O ultimo dia


Notas iniciais do capítulo

Um pouco confuso no começo, mas vai se desenrolando com o tempo.

Nota: Texto de autoria de Isabela Coelho.



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Um antiquado celular azul-escuro tremia, gritava e cantava em tentativas vãs de chamar a atenção de seu dono, concentrado demais na estrada para atendê-lo. O pequenino, porém, não desistia, continuava com aquele tilintar irritante e agudo, amplificado pelo silêncio do carro. A qualquer momento eu seria capaz de arremessá-lo pela janela, tanto me irritava, mas agora não havia tempo para lidar com essas banalidades.

Como uma tarde tão normal pôde transformar-se de tal maneira nesse horrível pesadelo? Que erro fatal eu cometera para ser perseguido até a morte por estranhos? Não me agradava pensar nas respostas para essas perguntas, mas elas vinham à tona contra minha vontade.

Lembrava-me perfeitamente de minha primeira noite nesta terra desconhecida, da qual agora eu fugia desesperadamente: Havia hospedado-me num hotel mediano da região para passar a noite, próximo ao centro da cidade (não que fosse grande coisa, o lugar deveria ter ao todo incríveis dois mil habitantes, no máximo). Todas as casas tinham paredes escuras e foscas, num cinza pálido que refletia o céu lá fora. Formavam em conjunto um forro xadrez e opaco, entrecortado apenas pelas inúmeras estradas vermelhas, de terra batida, que formavam o complexo labirinto estendido ao meu redor. Era um ambiente um tanto claustrofóbico com todas essas ruas idênticas - até mesmo os nativos (como o ruivo ao meu lado) tinham certa dificuldade em transitar sem perder-se pelo local. E foi naquele hotel insignificante que conheci minha perdição: Gerold e Grace Olakahn. Eu estava no dia, lugar e hora errados para minha grande sorte. Ouvi o que não devia e... Bem, aqui estava, fugindo desesperadamente para não ser morto junto a mais um condenado. Não darei mais detalhes - eles provavelmente iriam perseguir-te, também.

Ambos estávamos tensos demais para atender ao pequeno e incômodo celular, concentrados apenas em sair da cidade-labirinto. Achávamos que havíamos despitado-os no subúrbio, e agora, com o cerrado infiltrando-se cada vez mais entre as casas, uma mísera centelha de esperança brotava em meu peito, apenas para apagar-se minutos depois, quando um estouro indicou que um pneu estourara. Não éramos inocentes o suficiente para sequer supor que aquilo ocorrera por acaso, mas levamos algum tempo para decidir se enfrentaríamos o perigo saindo lá fora ou esperaríamos que ele viesse nos buscar.

— Se sairmos irão nos matar — murmurei, o pânico tomando-me lentamente.

— E se ficarmos? Dá na mesma!

— Morrer lutando?

Passaram-se alguns segundos de silêncio absoluto enquanto refletíamos.

— Há mais um jeito. — Um brilho obsessivo surgiu em seus olhos, ao que meu estômago deu um loop completo, compreendendo suas palavras.

— Não...

— Eles não sabem que estamos juntos, se um de nós sair o outro poderá esconder-se aqui até que o outro morra.

— Mas quem?...

— Tiramos na sorte — disse sacando uma moeda

— Deve haver outro meio.

— Cara.

— Nem pensar! — Não que a ideia de sobreviver me desagradasse, mas sacrificar-me por outra pessoa... Não era o sonho de minha vida. Sempre havia admirado gente que consegue colocar-se em situações de risco simplesmente para salvar um desconhecido, mas era óbvio que o rapaz apenas agarrava-se em sua ultima esperança de sobrevivência.

— Eles estão vindo. É isso ou ambos morremos.

— Está bem — murmurei. Não havia tempo para refletir, o jeito seria confiar nele, que outras opções eu tinha? — Coroa.

A moeda foi lançada ao ar, caindo e quicando no piso acolchoado.

Eu temia o resultado. Como pudera entregar minha vida à própria sorte? Agora a moeda já apenas rodava nos segundos finais de nossa espera angustiante. Cara, coroa, cara, cara, coroa, uma volta e meia a mais - Cara! Ah, não, ainda não parou: Coroa, cara de novo, agora volta a ser coroa, iria virar mais uma vez?... Uma alegria incrédula surgiu em meu rosto quando vi que ganhara, agora era ver se o homem cumpriria o combinamos.

— Melhor de três? — balbuciou, esperançoso.

— Fizemos um trato.

Com um suspiro, ele saiu do carro, ao mesmo tempo em que eu escondia-me no oco do banco de traz (bem abaixo do acento que se soltara dias atrás. Agradei a Deus por não se encontrar mais peças de reposição). Eles não me procurariam ali - ou assim eu esperava.

O som da porta se fechando foi simultaneamente seguido pelo estrondo de um tiro, ao mesmo tempo que o carro balançava ligeiramente. Pude ouvir o grito abafado do garoto enquanto a vida lhe era tomada. Seu corpo provavelmente permaneceria ali, sendo lentamente devorado pelos corvos, vermes e abutres - um símbolo pressageiro para aqueles que sequer pensassem em desafiar os irmãos Olakahn.

Se minha sorte abençoada permitiria que eles deixassem o carro ali, intocado? A resposta é óbvia. Poucos segundos depois já estavam revistando-o, o celular silenciado repentinamente. Prendi a respiração, assustado, aguçando os ouvidos para detectar a saída dos homens. Eles felizmente não checaram meu esconderijo (quem imaginaria que o acento estava solto, estragado?), mas decidiram levar o carro de volta à cidade. A cada segundo tornava-se mais difícil não fazer ruídos, e senti que em breve seria hora de agir.

Após algum tempo na estrada, empurrei o acento para cima, pulando em cima do carona e tomando-lhe a arma. Não hesitei em apertar o gatilho, a bala atravessando sua cabeça e destroçando seu interior. O sangue misturado a pedaços de ossos e outras coisas menos comentáveis espalhou-se por meu rosto, não deixando de manchar também o estofado. O motorista, aturdido, sacou sua arma, mas até isso eu já havia saltado para fora do veículo, metendo um chute no volante numa tentativa falha de desgoverná-lo.

Concentrei todas as minhas forças em fugir para o mais distante o possível, mesmo sabendo que já estava morto, àquela altura. Esta era a cidade deles, tinham total controle sobre a situação. Arrependi-me amargamente de não ter escapado antes, era inviável fugir daqui. Não podia contar com a ajuda dos moradores, pois eles temiam os Olakahn tanto quanto à morte (o que era um tanto plausível, já que os dois andavam usualmente de mãos dadas), então apenas minha escassa perícia poderia dar-me mais alguns minutos de vida. Como que para confirmar minhas expectativas, um tiro passou zunindo por minha orelha, enquanto eu saltava instintivamente para o lado, por pouco não perdendo o ritmo da corrida.

Uma pergunta: Por que é que as pessoas tem de esperar-nos criar esperanças para só aí esmagá-las com todas as forças? Por que aquele cara não podia ter saltado em cima de mim cinco minutos antes, quando eu ainda não supunha conseguir sobreviver? Pois era exatamente isso que eu pensava enquanto duelava corpo-a-corpo contra dois dos capangas dos gêmeos.

Meti um soco na cara do primeiro, partindo-lhe o nariz, mas logo o outro já havia quebrado uma de minhas pernas com um simples movimento - eu não tinha técnica alguma, estava perdendo feio. Soltei um grito torturado, abafado pela mão que agora cobria minha boca. Não hesitei em mordê-la, livrando-me de seu dono com um chute na virilha. Meu corpo podia estar coberto por hematomas latejantes agora, mas isso não me impediu de tentar correr para longe.

Após perdê-los de vista dobrando algumas esquinas, diminuí o ritmo, arrastando-me para uma ruela. O sangue escorria por minhas pernas e braços, formando uma trilha por onde eu passava, seria fácil localizar-me.

Eu sentia como se uma mão esmagasse meu peito, tamanha era a angústia de encontrar-se impedido de evitar a própria morte, mesmo ainda respirando. Eu não tinha forças, mas devia continuar lutando, não podia desistir, não enquanto ainda respirasse.

Um vulto ergueu-se sobre mim, uma pistola em mão, apenas não esperava que eu ainda estivesse com a que furtara no carro. Mirei-a, impotente, sabendo que não seria capaz de atirar, mesmo que com tempo. Era muito mais fácil matar em um jato de adrenalina do que ali, inerte e subjugado, fugindo do inevitável.

—Vai me matar? — sussurrou, risonho. Obviamente meus pensamentos deveriam ter transparecido mais uma vez em minha face. Larguei a arma, fitando o chão e esperando o fim de minha tortura.

• • •

O último som que ouvi foi o da bala que me matou. Hoje meu corpo apodrece em um beco imundo, servindo de alimento para um corvo qualquer, a penugem opaca e azulada, manchada por meu sangue, esticando-se pelos ossos em um sinal do quão fraco estava. O bico arrancava febrilmente nacos de carne pútrida para levar aos filhotes. Um consolo? Por um breve instante salvei a vida de alguém, nem que fosse uma mísera ave moribunda.


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Notas finais do capítulo

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(Revisado 25/08/2019)