Roberta escrita por Rapousa


Capítulo 1
Roberta




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Eu tinha sete anos quando, pela primeira vez, percebi que era diferente. Havia sido criado com pequenas e sutis leis que me eram ensinadas dia após dia. No entanto, ia reparando que os meus gostos não condiziam com o que me era sutilmente imposto. As meninas me adoravam, queriam namorar comigo, mas eu odiava aquilo, odiava aquelas que grudavam em mim e se diziam minhas namoradas, ficava zangado e ofendido, não achava graça alguma. Diziam que era a idade, logo eu entenderia o que elas sentiam e as corresponderia. Logo seria eu a estar querendo namorá-las, mas eu acreditava piamente que jamais ia gostar de qualquer menina além da amizade. No fim, não estava errado.

A cena mais vívida daquela época em minha memória é uma festa na casa de uma das minhas tias. Eu tinha sete anos e já percebia que as pessoas tinham algumas expectativas a respeito de como eu deveria me comportar e o que deveria escolher. Mas Roberta, afilhada de uma das minhas tias, simplesmente parecia me ver como eu realmente era. E não se importava com o que enxergava, não impunha nenhuma censura ou regra comportamental.

Sempre fui o caçula da família, a criança que nasceu quando os outros primos já tinham mais de vinte anos, e quando tinha sete anos, todos estavam quase chegando aos trinta. Roberta tinha vinte anos naquela época, e ainda assim, de todos, parecia a única que poderia ter a minha idade. Conversava comigo de forma natural, entendia o que eu queria e sabia aproveitar a vida como uma criança. Ela sentava ao meu lado no computador e juntos buscávamos jogos, não era como um adulto tentando brincar, era como uma amiga qualquer do colégio. A única diferença era que ela inspirava uma espécie de respeito natural, que eu perceberia ao longo dos anos que era imutável. Não importava a idade ou quem fosse, Roberta era sempre respeitada. Já naquele tempo ela me entendia. Eu sabia que não deveria gostar de alguns jogos ou brincadeiras, sabia o que os outros meninos preferiam e o que era esperado que eu também preferisse, os jogos que deveria escolher, assim como os outros garotos. Mas Roberta conseguia me ler facilmente, mesmo que eu inicialmente negasse as propostas dela, como fui treinado para fazer com os demais.

Naquela festa na casa de minha tia, entramos em um site onde se podia montar o visual de uma pessoa. Eu queria fingir que não ligava muito, que nem queria tanto assim jogar. Olhei para ela algumas vezes em busca de um sinal de repreensão, ironização ou censura, contudo, serenamente, Roberta não parecia fazer caso, não ligava para o que eu queria jogar e não transformava as minhas escolhas em coisas de “terríveis” boiolas. Foi a minha primeira lição: você pode ser e fazer o que quiser. Não demorou muito e eu já estava amando aquele site. Lembro até hoje da primeira página, onde se podia escolher montar um personagem feminino ou masculino e a pergunta de Roberta que soou quase inocente: Você prefere menino ou menina? Com sete anos eu já estava escaldado com aquele tipo de brincadeira. Olhei-a de esguelha, já ciente da mania dos adultos de brincarem com aquele tipo de assunto, no entanto, apesar do sorriso simpático, ela parecia sinceramente fazer a pergunta em seu sentido mais simples. Apenas anos depois eu entenderia a real profundidade do que ela queria me passar. Respondi: 

"Claro que menino, eu sou menino."

“Ora, mas tanto faz quem você escolher.”

Essa afirmação só ganharia novas proporções e significados quando, anos depois, eu relembrasse a cena. Naquela jovem, que parecia ser uma semelhante, havia mais compreensão do que eu poderia assimilar aos meus sete anos. Ela me entendia mais que eu mesmo. Já naquela época, Roberta percebia e aceitava o que muitos levariam anos de negação para compreender.

A primeira parte do boneco a ser montada era o formato do rosto. Escolhi qualquer um, pois estava realmente interessado em montar o cabelo. Lembro de dizer: Quero cabelo comprido, acho lindo aqueles cabelos macios e ondulados! Roberta riu e me ajudou a escolher, não disse nada e pareceu achar normal quando fiz uma junção de cabelo vermelho e olhos verdes. Ela inclusive brincou de colocar batom ou outras coisas suspeitas no personagem. Quando ela fazia suas brincadeiras, eu respondia o que havia sido treinado para fazer: Não! Ele é menino, não pode colocar maquiagem! Mas ela respondia: E daí? Só por isso ele não pode usar um batom verde? E eu ria. Ela fazia parecer natural e divertido colocar maquiagem em um personagem masculino, me convenceu tanto daquilo que, na minha inocência infantil, chamei alguns parentes na festa para ver o menino que estávamos criando.

“Olha o menino que estamos fazendo! Ele usa batom roxo!”

Só depois fui perceber que Roberta ficava sem jeito nesses momentos. Só depois entendi que ela, apesar de dissimular comigo, ficava levemente temerosa de culparem-na por me deixar fazer algo que meninos não deveriam fazer. Ela estava quebrando mansamente todas as leis de censura que me eram ensinadas no cotidiano, tornando natural algo que eu me obrigava a achar ruim.

Ao sentir que ela não ligava para as minhas escolhas como os outros faziam, sabendo que não me recriminaria nem me obrigaria sutilmente a fingir que eu não gostava de algo que achava legal, me senti livre para dizer que deveríamos criar depois do menino, uma menina naquele site.

Diverti-me e me viciei naquela brincadeira após perceber que ninguém parecia me recriminar por estar ali, principalmente depois de ver Roberta tratando o fato de passar maquiagem em um homem de forma natural. Aquele foi o primeiro passo para que eu me sentisse um pouco mais livre. Pelo menos ao longo do dia seguinte, até a realidade do mundo do proibido voltar a recair lentamente sobre mim.

Porém, antes disso, fiz diversos personagens masculinos, a maioria sem blusa. Eu gostava de ver os desenhos da musculatura masculina, achava-os, de uma forma infantil, atraentes. Mais do que fingir que, assim como meus amigos, me importava com os decotes femininos que o site permitia ver, eu queria mesmo era ver os personagens masculinos sem blusa. Eu era tão inocente e já tão inevitavelmente gay.

O segundo fato que acho marcante aconteceu aos dezessete anos, quando resolvi revelar minha sexualidade a meus pais e posteriormente à minha família. Alguns primos (dentre eles minha madrinha e meu padrinho) ficaram sabendo, mas me pediam discrição e segredo para as tias mais velhas, todas já senhoras idosas. Doía me sentir como um criminoso vergonhoso dentro de minha própria família. E foi novamente Roberta que aliviou um pouquinho mais aquela pressão social.

Era mais uma festa de família na qual ela estava presente. Fomos para o quarto da minha tia e ficamos conversando. Os anos passavam e eu ainda continuava a adorar a presença dela, como se falasse sempre com alguém da mesma idade que eu, alguém simples e fácil de entender. Foi então, que no meio da conversa, sem mais nem menos, soltei:

"Roberta, tenho que te contar: sou gay."

A resposta dela foi tudo, menos o que eu esperava.

“Uhn, e daí?”

Ela deu de ombros, pegou a minha revelação aterradora e bombástica e diminuí-a até ficar do tamanho insignificante de um átomo impotente e irrelevante. Ela foi a primeira pessoa mais velha que recebeu aquela notícia como se tivesse a mesma importância da declaração pública da minha cor favorita. O olhar dela me dizia: o que isso tem a ver com qualquer coisa? Que diferença faz? Estávamos falando do que mesmo?

Meu olhos, por mais que eu tenha lutado contra isso por quase um minuto inteiro, encheram-se de lágrimas. Aquela simples e curta resposta era tudo que eu, sem ter me dado conta, queria ouvir do resto da minha família.

“Tia Fátima, sou gay.”

 

“É, Arthur?… Quer um pedaço de bolo meu filho? Você está tão magrinho…”

Seria o paraíso.

Roberta abriu os braços, e assim como havia adivinhado o que eu queria ouvir, soube antes de mim que o que eu precisava naquele momento: um abraço. Chorei em seu ombro pelo que pareceram horas, até que um de meus primos, velho em seus quase quarenta anos, surgiu à porta.

“Arthur, Roberta… está tudo bem?”

“Claro. É só que contei para o Arthur que a Madonna morreu esta manhã.”

“Mesmo?”

“Não, mas seria trágico.”

Roberta sempre foi o tipo exato de pessoa que eu admirava. Desfez a tensão do momento fazendo não só meu primo rir, mas também a mim, que rapidamente esqueci minhas lágrimas, beijei-lhe a face, limpei o rosto e voltei visivelmente mais leve para a festa familiar.

Durante meus anos de rebeldia, comecei a fumar. Algo quase irrelevante caso se considerasse que eu era a ovelha negra, o gay, o único sujo dentro de uma família católica. Era Natal, e eu me sentia relutantemente obrigado a ficar ali, junto das tias velhas e antiquadas, que insistiam em perguntar quando eu traria alguma namorada, como andava a minha vida amorosa, se eu ainda fazia sucesso com as meninas como quando criança. Um saco.

Saí para a varanda para fumar um cigarro, precisava relaxar. Estava apoiado na murada de alumínio quando Roberta surgiu da sala. Pela primeira vez ela me encarou com o que seria uma sombra da recriminação, ela estava desapontada.

“Fumando?”

 

“Se você reage assim por conta de um cigarro, imagino o que dirá se souber que também puxo um beck”

Por um tempo houve apenas o som que atravessava a porta de vidro, as vozes familiares conversando animadas na sala. Ela olhou para longe de mim e me dilacerou com a sincera e profunda decepção. Queria que ela gritasse comigo, me olhasse com desprezo e dissesse que eu não merecia viver. Teria doído menos.

“Não esperava que você fosse tão sem personalidade.”

Ela não me olhou mais nos olhos, e conseguiu o que meus pais e padrinhos jamais haviam conseguido: me fez sentir vergonha. Minha amiga, a pessoa que sempre estivera lá para fazer tudo parecer normal e simples, estava decepcionada comigo. Joguei o cigarro longe e me senti frustrado. Durante os meses seguintes, toda vez que colocava um cigarro na boca, sentia-me um imbecil. Se eu aceitava uma tragada de beck dos meus amigos, me sentia um lixo. Não demorou muito e parei com os dois vícios. Percebi que Roberta não era uma grande amiga apenas por sempre dizer o que eu queria ouvir, mas também por dizer o que eu precisava ouvir.

Nossa relação se fortaleceu depois daquilo, e sempre que sentia saudades de relaxar com um beck, ia para a casa dela. Aparecia para um almoço, um jantar, um lanche. Vez ou outra até dormia por lá se ficasse muito tarde. Assim o tempo foi passando e minhas visitas passaram a ser costumeiras, contudo, não mais para me salvar de um vício.

Logo fui amadurecendo e me encontrando dentro de mim. As visitas foram se tornando escassas. Estava perto da formatura da faculdade de Música quando, para minha surpresa, em uma das festas de aniversário de casamento dela, reencontrei seu filho mais velho, Robert, no auge de seus 15 anos.

Para mim, ele tinha a idade de uma criança, porém, como seu pai, aparentava ser mais velho. Sério e determinado, risonho e inteligente, de olhar firme e, ao mesmo tempo, devorador. Ele me lembrava muito a própria mãe, Roberta. Atraiu-me imediatamente. Conversamos longamente e sua personalidade me cativou. Não foi surpresa notar que ao final da festa me sentia irremediavelmente encantado por ele.

Voltei a frequentar a casa de minha velha amiga, decorei instintivamente os horário de Robert e sempre dava um jeito de me encontrar com ele casualmente, como se estivesse prestes a ir embora no exato horário que ele sempre chegava do colégio.

“Ah, Robert! Que coincidência, já estava quase indo embora!”

Rapidamente surgiu uma boa amizade entre nós. Às vezes íamos para o quarto dele e conversávamos, esparramados na cama ou no pufe, às vezes jogando vídeo game, às vezes ouvindo música. Eventualmente ele aproveitava para me fazer perguntas discretas sobre a vida adulta, coisas que se sentiria sem jeito de perguntar ao pai ou à mãe, ainda que os dois fossem os pais mais simpáticos e abertos de que eu tenha tido notícia.

Aquele menino crescera em um ambiente tão saudável e aberto, que todos em sua casa – incluindo ele – já sabiam de sua sexualidade e pareciam não dar importância para esse fato mais do que dariam se ele começasse a mostrar interesse por garotas. Robert era discreto, superficialmente sério demais para que se notasse qualquer coisa logo de cara. Era necessário conhecê-lo um pouco mais a fundo para notar o que seus gostos e o jeito quase fluido com que se sentava queriam dizer. A sorte era que ele herdara a beleza de Roberta, moreno, o rosto quase de modelo, como o da mãe. Simétrico, belo, perfeito. Revirava-me de ciúmes só de imaginar a quantidade de jovens que estariam interessados nele.

Se eu tivesse um pouco mais de juízo, nenhum ato teria saído da minha muda admiração. No entanto, Robert era maduro, inteligente e perceptivo. O primeiro beijo não tardou tanto quanto deveria se eu fosse sensato e ele, menos adulto.

O começo foi assustador. Sentia-me traindo Roberta, apunhalando-a profundamente pelas costas, a única pessoa que sempre estivera lá para mim. Esperava que a qualquer momento, pela primeira vez, ela me desprezasse pelo que eu era, expulsasse-me de sua casa e nunca mais servisse como meu suporte nas piores horas. Sentia-me cuspindo no prato que comia, e ainda assim, não resistia aos macios lábios de Robert, que exploravam os meus cada dia com mais intensidade.

Às vezes ia buscá-lo de carro no colégio, embora ele não gostasse daquilo. Sentia-se infantil, como se alguma espécie de tio visse buscá-lo em seu carro do ano. Disse-me uma vez, numa explosão de fúria, que eu o estava tratando como uma criança. Então passei a visitá-lo a pé, andávamos de ônibus juntos, ele parecia mais relaxado e me fazia sentir jovem outra vez, como apenas mais um adolescente buscando seu lugar especial e feliz no mundo.

Um dia, como iria acontecer mais cedo ou mais tarde, Roberta me chamou para uma conversa séria quando eu cheguei a sua casa pouco antes do horário em que Robert voltava do curso de artes-marciais.

“Olha, não sei porque estão agindo como os representantes gays de Romeu e Julieta, mas esperava mais de você. Entendo Robert e sua fase adolescente, mas você já é homem suficiente para poder me dizer que está saindo com meu filho!”

Ela não parecia realmente zangada, apenas levemente frustrada e, para a minha imensa felicidade, não era o meu relacionamento com o filho dela que causava a frustração.

“Estamos namorando. Seriamente.”

Um sorriso brincou nos lábios dela ao ouvir isso. No entanto, ela logo se recompôs e voltou a olhar dura para mim.

“E porque vocês precisam fingir para mim que não há nada demais? Sinto-me um monstro com isso. Parece até que sou uma mãe intragável!”

 

“Tive medo que você não aceitasse, que pela primeira vez me odiasse pelo que sou. Eu amo o Robert.”

Mais uma vez um sorriso carinhoso brincou em seus lábios. Ela parecia querer dizer mais algumas coisas, parecia preocupada e, ao mesmo tempo, aliviada. Abriu os braços e me abraçou, como fizera por toda a minha vida, só que dessa vez, ela é quem se apoiava em meu ombro. Eu havia crescido.

“Você é um idiota. E deveria ter incentivado Robert a me contar as coisas. Senti-me traída.”

Olhei-a cheio de culpa, sabia que ela ainda queria dizer alguma coisa, parecia angustiada. Depois de um momento de silêncio, perguntou abrupta:

“Vocês já… Vocês já fizeram…”

“Não! Não, ainda não” apressei-me em tranqüilizá-la. Pretendia que a primeira vez de Robert fosse tranqüila e maravilhosamente inesquecível. Eu mesmo não me sentia pronto para aquele evento. Roberta pareceu imediatamente aliviada, pôs a mão sobre o coração e soltou um suspiro.

“Olha, Arthur, não quero parecer muito intrometida, mas é do meu filho, da minha criança, que estamos falando. Gostaria que você não tentasse nada nesse sentido com ele por enquanto. Robert é ainda muito novo e… bem, não vou poder impedir isso de acontecer um dia, mas preferia que vocês fossem com calma. Por favor, seja carinhoso e… use sempre camisinha.”

Rodei os olhos com o último acréscimo desnecessário dela, abracei-a e beijei-lhe a testa, tentando reconfortá-la e assegurá-la de que cuidaria muito bem de seu filho. Mais uma vez aquela mulher havia tirado o peso do mundo das minhas costas, provando por suas ações que eu era de fato a Drama Queen que ela sempre me acusara de ser. Senti vergonha da minha própria covardia.

Robert chegou em casa naquele exato momento. Sua mãe se afastou de mim enxugando uma lágrima no pano de prato quando ouviu o som das chaves do filho sendo postas sobre a mesinha da sala.

“Vou deixar vocês a sós e… comportem-se” disse ela lançando um olhar incriminador para mim.

Robert entendeu no mesmo instante o que se passava. Perguntou com aqueles olhos castanhos e vívidos “ela já sabe?” e eu, dando de ombros, respondi, no silêncio dos gestos, “sim”.

Ele sorriu, um daqueles raros sorrisos espontâneos e sem motivo, veio até mim, abraçou-me pela cintura e buscou meus lábios. Não fechei os olhos, chocado. Robert não ligava que a mãe soubesse da nossa relação. O único problemático ali era eu.

Pelo menos foi o que achei, tão acostumado com a tranquilidade daquela família, não calculei o impacto da revelação para meus pais de que namorava um menino que ainda frequentava o primeiro ano do colégio. Fui chamado de pedófilo, e perguntaram se eu sabia o que aconteceria se alguém me denunciasse. Chamaram Roberta na casa deles e expuseram tudo isso, eu era dez anos mais velho que Robert, perguntaram se ela também não tinha medo de ser presa por aceitar um crime desses.

Roberta tinha idade de ser filha dos meus pais. Ela parecia serena mesmo quando ouvia o que os dois tinham a dizer, contudo, perdeu a paciência quando eles começaram a insinuar que Robert era o que se poderia chamar de ninfeto. Não houve briga, pois Roberta nunca brigava, ela trabalhou por muitos anos como representante internacional de empresas, diplomacia era sua segunda língua. Mas houve um fora memorável que eu seria incapaz de traduzir. O tom de voz formal, a frieza, o olhar, a classe. Roberta costumava falar ainda mais rebuscadamente quando irritada. Ao invés de descer de nível, ela subia.

Namorei Robert durante três bons anos. Até que ele começou a amadurecer assustadoramente, e logo estava mais velho que eu. Tornou-se um jovem sério, preocupado com os estudos ao ponto de não poder sair comigo, determinado a passar no curso de medicina, nosso namoro foi esfriando, nos distanciamos e ele me fazia sentir ao mesmo tempo velho demais e infantil. Quando eu aparecia de surpresa, sentia-me culpado por atrapalhar seus estudos, ele me olhava friamente enquanto estudava, num pedido mudo para que eu me calasse, e só para irritá-lo eu falava mais e mais, até que ele colocava um fone de ouvido ou me mandava embora.

O fim mesmo só chegou quando o encontrei em seu quarto com um amigo de escola. Bati na porta antes de entrar e ouvi claramente o som de pessoas se movendo rapidamente, uma cadeira se arrastando e respirações arfantes. Escancarei a porta antes de ouvir o “Pode entrar”.

Encontrei um jovem de cabelos e olhos cor de mel abaixando a blusa, sentado sobre a cama desarrumada. Robert estava sentado torto sobre a cadeira e estava desarrumado, tremendo, a mão ainda buscando a lapiseira sobre a mesa cheia de livros abertos. Olhou para a porta cheio de uma culpa quase infantil, até ver que era eu e assumir um ar petulante.

“Ah, é você” lembro dele dizer dando pouco valor, ainda que suas mãos continuassem a tremer, o outro menino parecia ainda sem jeito, corado, olhando para seus próprios pés.

Eu abri a boca, pensei no que falaria, pensei em gritar, xingar, expulsar o outro menino no susto. Eu era mais velho, tinha o poder da experiência. No entanto, catei os pedaços do meu orgulho esparramados pelo chão, fechei a boca e bati a porta atrás de mim. O olhar irônico de Robert gravado na minha retina. Não derramei uma lágrima. Nunca mais apareci naquela casa, pelo menos não até que Robert se mudasse para a sua própria casa.

Era estranho perceber que eu provavelmente fora primeiro-tudo de Robert, e ele se cansara de mim. Eu estava ficando velho, querendo um relacionamento tranquilo e estável e Robert estava no auge dos hormônios, ansiando experimentar o que havia de bom na vida, divertir-se. Desejei ter nascido dez anos depois do que havia nascido, ter a mesma idade dele. Calculei a possibilidade de Roberta ter engravidado dez anos antes… e não daria certo. Não seria de todo saudável ela ter engravidado aos treze anos, ainda que isso se tornasse cada vez mais comum. Roberta ainda vinha da época que quatorze anos era até cedo para se dar o primeiro beijo.

Quando o segundo filho de Roberta fez dezoito anos, olhei melhor para ele. Era um menino de sorriso fácil, cabelos claros, uma mistura balanceada das belezas do pai e da mãe, sem se prender muito a nenhum dos dois. Divertido, era bom contador de piadas, tinha mãos largas e um corpo mais largo que o do irmão mais velho. Comecei a olhar melhor para David em sua festa de aniversário da maioridade, Robert já estava com vinte anos e eu já era um senhor de trinta.

Reparar naquele garoto e desejá-lo me fez sentir sujo como nunca me sentira. O que havia de errado comigo? Tinha de dormir com todos os filhos da minha grande amiga para me sentir, de vez, um ser nojento? Só me faltava surgir dali há uns anos interesse pela caçula, Ana, vinte anos mais nova. Descobriria eu uma faceta hétero apenas para me interessar também por aquela menina de dez anos?

O desejo por David, o filho do meio, passou tão rápido quanto chegou, efêmero como um suspiro de excitação. O menino era irremediavelmente hétero. Uma perda para a comunidade gay, se eu pudesse opinar. Sonhei que ele fosse ao menos bissexual, contudo, de filhos da Roberta já me bastava Robert, a lição fora muito bem ensinada.

Afastei-me da família por um longo tempo, mas tive ao menos o prazer de ser convidado para a formatura de Robert em medicina. O médico que destruíra o coração do músico. Cada dia mais eu me sentia medíocre com o meu emprego de meio expediente em um colégio dando aulas de música. O mundo evoluía e se tornava grande e eu ficava para trás, infantil, incurável e velho.

Soube, observando sempre de longe, que Robert se tornara um médico renomado ao terminar os estudos na França. David se tornou cartunista e foi morar nos Estados Unidos, e até Ana, a pequena e distraída Ana, ganhara um prêmio em uma olimpíada de física e com isso uma bolsa de estudo na melhor faculdade do país. Os filhos de Roberta haviam saído pequenos gênios predestinados ao sucesso, uma família de ouro. E eu no lixo, com meu carro já velho, ensinando crianças e vivendo na mediocridade.

Só dei a volta por cima em uma tarde de verão, perto do meu aniversário de trinta e oito anos. David lançava seu primeiro HQ independente, e estava realizando um tour mundial que incluía uma passada pelo seu país de origem. Fui especialmente convidado para o coquetel a ser realizado em um dos hotéis mais chiques da cidade. Senti-me honrado por ser lembrado, contudo, imaginei que havia sido um pedido de sua mãe, que eu ainda visitava raramente e por quem mantinha o mesmo apreço de sempre.

Ir naquele coquetel me evocou diversos sentimentos. Lá estavam Robert, amor da juventude, belo, esnobe e imponente, com o ar maduro que lhe cabia tão bem, e David, que mesmo apenas dois anos mais novo parecia ainda uma criança em um corpo de adulto, todo sorriso e carisma, e Ana, a pequena Ana, bela e elegante como deveria ser uma jovem mulher. Cursava a faculdade de Engenharia e apesar da reconhecida inteligência, escapava dos parâmetros de feiúra nerd. Mesmo não sendo uma beldade estonteante como o resto da família o era em sua idade, ela ainda enchia os olhos de muitos homens. Roberta e seu marido eram um casal de aparência incrivelmente conservada, jovem. Poderiam passar por irmãos de seus filhos.

Sentia-me mais velho que todos. Isso pelo menos até conhecer Michael, assistente gráfico de David. Alguns dedos mais baixo que eu, cabelos pretos, olhos azuis escuro, não era tão bonito e nem tão feio. Na verdade, o que me atraiu nele foi o sorriso: branco, perfeito e espontâneo. Ele não falava absolutamente nada de português e tive de recorrer ao meu inglês fora de uso. David nos ajudava a conversar, contudo, após o quarto copo de Martini, a comunicação deixou de ser por meio da fala, ainda que permanecesse oral. Saímos daquela festa para um táxi, e do táxi para a minha casa.

“You have a great ass.”

O som dessa frase ficou gravado na minha mente, ainda que eu tenha demorado algum tempo (até recolocar em prática meu inglês) para entender seu sentido pleno.

Michael acabou ficando pelo país mais do que as duas semanas previstas de tour. E ao invés de viajar por várias cidades, ficou comigo o tempo todo.

Acho que ele é meu final feliz.

Após tantos anos, indiretamente ainda vejo Roberta como meu pilar, minha sustentação, minha força, minha melhor amiga e, acima de tudo, parte da minha família. Quando meus pais morreram, ambos na faixa dos noventa anos, ela esteve lá e me fez sentir que a perda era um pouquinho menos pesada, porque ela é e sempre será uma daquelas pessoas que te fazem acreditar que se tudo não está bem, é porque ainda não acabou.

Eu e Michael nos revezamos passando sempre um tempo no Brasil, onde reencontro minhas raízes e o ensino a falar cada vez melhor, quase como um nativo. Ele aprende rápido. Sinto-me feliz em viajar com ele para outros lugares do mundo de vez em quando, ou só de ficar em casa e deitar lado a lado no nosso quintal cheio de neve com uma garrafa de whiskey ao lado, brincando de fazer anjos na neve enquanto rimos de nada em específico. Se tivesse desistido de ser quem era ainda jovem, talvez eu não fosse tão feliz hoje.

Agora preciso ir. Roberta, nossa filha adotiva, já deve estar chegando do colégio e prometi que hoje a levaria ao ringue de patinação.

 


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Notas finais do capítulo

Sei que às vezes a Roberta parece perfeita demais, porém, lembre-se que a história é pelo ponto de vista de alguém que a admira e quase endeusa. Na verdade, eu pensei sim na background history da Roberta, porém, claro, não havia espaço nessa narrativa.
 
De qualquer forma, se achar a história digna de um comentário, o faça, por favor