Samantha Roberts - O Livro de Sócrates escrita por Duda Chase


Capítulo 8
Reunião familiar




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— Já pegou o cantil de néctar? Primeiros-socorros? — Mary perguntou. — Prisma? Lanterna? Aposto que você esqueceu das pilhas extras.

Ri baixinho do desespero de minha companheira de beliche.

— Já peguei tudo o que tinha que pegar, Mary. Não se preocupe.

Briana estava revirando seu baú. Ela pegou algumas camisas e uma bermuda.

— Pegue isso emprestado. —ela disse ao me entregar as roupas. — Não conseguimos contrabandear muitas calças ou coisas assim. Desculpa. Isso deve ajudar. E ninguém também merece sair desfilando por aí só com as blusas do acampamento.

Eu agradeci e pus as roupas na bolsa de viagem. Fechei o zíper e fiquei olhando para meus irmãos, que acordaram no rabo da manhã comigo somente para se despedirem de mim.

— Acho que isso é um até logo, galera.

Mary me abraçou e aquilo em pouco tempo virou um grande abraço de grupo. Eles me desejaram boa sorte e eu agradeci a cada um. Briana disse que estava na hora de ir embora; despedi-me uma última vez de meus irmãos e fui com ela até o topo da Colina Meio-Sangue.

No caminho, Briana me passava mais algumas dicas:

— Fazer o que é necessário nem sempre é fazer o que é certo, entende?

Franzi o cenho.

— Não.

— Você vai saber na hora.

“Na hora do que?”, perguntei, mas não em voz alta. Encolhi-me ligeiramente ao lembrar que Briana podia ler meus pensamentos, porém ela não comentou nada. Estava ocupada demais verificando se esqueceu de me passar alguma informação útil ou importante.

Assustei-me, pois me dei conta de que sabia em que ela estava pensando — golpes de defesa pessoal e passos básicos de sobrevivência em florestas. Eu não sabia o que exatamente estava em sua mente, algum tópico específico. Mas a ideia superficial de tudo o que ela estava revisando impregnou em minha cabeça, certeira como um tiro.

Seria aquilo um poder? Lógico que sim, Briana também era telepata. Como eu controlava aquilo?

Jenny e Nick estavam esperando por mim no topo da colina, junto com Quíron e um cara estranho com olhos pelo rosto inteiro e pelas mãos — era o que ele deixava amostra, pelo menos. —, que eu nunca tinha visto. Quíron apresentou-o para mim como Argos, o chefe da segurança do acampamento. Uma semana naquele lugar já tinha me preparado contra qualquer esquisitice. Não me importei muito com sua aparência.

Briana pôs a mãos nos meus ombros e me olhou nos olhos.

— Você vai se sair bem. – ela afirmou. – Afinal, você teve uma ótima treinadora, não teve?

Dei uma risada nasalada.

— Ótima. Cheia de virtudes, inclusive humildade.

Briana me puxou para um abraço apertado.

— Se cuida. — ela disse ao lado de meu ouvido.

— Eu vou. Eu prometo.

Briana soltou-me. Dei um último cumprimento com a cabeça e dei as costas para ela. Jenny, Nick e eu nos entreolhamos rapidamente antes de começarmos a descer a colina. E, mudos, seguimos Argos até o carro que nos aguardava no pé da Colina Meio-Sangue.

A metade do caminho continuou naquele tortuoso silêncio. Tudo o que se ouvia era o motor do carro acelerando e Nick batucando com os dedos em sua coxa.

Jenny, felizmente, estava sentada ao meu lado, separando os dois. Ela vinha com a cabeça apoiada no meu ombro caminho inteiro, dando leves cochiladas. Seus olhos estavam vermelhos e era possível notar que ela se esforçava para deixá-los abertos.

– Não pregou o olho à noite? — perguntei.

— Não. — ela respondeu e, então, bocejou. — Tive muitos pesadelos. Depois das quatro da manhã, desisti de tentar dormir.

— Sobre o que? — Nick quis saber.

— Nada relevante, eu acho — ela respirou fundo. — Vocês acham que qualquer pessoa pode ser corrompida?

— Sim. — eu respondi.

— Não. — Nick disse ao mesmo tempo que eu.

— Claro que sim! — eu rebati. — Cada pessoa tem seu lado bom e seu lado mau. Cabe a ela escolher entre os dois. Mesmo escolhendo um lado, sempre terá nela o outro.

— Isso é tão teórico! Você não acredita na verdade, na integridade, na persistência? Gandhi. Você acha que Gandhi seria corrompido? Eu digo que não.

— Isso é totalmente prático. Na verdade, você, neste exato momento, está despertando meu lado mau. Então cale a boca. — eu disse, irritada. Respirei fundo e pus na minha cabeça que eu tinha que parar de brigar com ele. Pelo sucesso da missão. — O que eu quis dizer é que todas pessoas podem ser corrompidas, não que elas necessariamente serão corrompidas em algum momento de suas vidas. Mas eu não entendi o porquê da pergunta.

— Nem eu entendi. — Jenny admitiu. — Eu não controlo meus sonhos. Reclame com Hipnos, Morfeu ou com qualquer pessoa desse departamento.

— Quem, exatamente, foi ou será corrompido? — indagou Nick.

– Eu não sei, gente. Eu não sei.

Ficamos quietos por mais um minuto.

— A quantas horas estamos do Olimpo? – perguntei, curiosa. Eu tinha ouvido qualquer baboseira sobre ele ter mudado de local, mas eu não tinha a menor ideia de onde era.

— Horas? Com esse trânsito, chegamos no Olimpo em meia hora. — Nick informou.

—Meia hora?

— O Olimpo fica no Empire State Building. — Jenny explicou. — No 600º andar.

— 600º andar? – perguntei. — Como isso é possível?

Jenny sorriu.

— Uma semana nessa vida de semideusa e você ainda me vem com perguntas do tipo “como isso é possível?”.

— O Empire State não tem seiscentos andares. — rebati.

— Você verá.

Argos nos deixou tão perto do grande edifício quanto pôde. Achar uma vaga de estacionamento por aqueles lados era praticamente impossível. Pegamos nossas coisas e nos despedimos de Argos.

— Eu poderia visitar papai. — eu disse enquanto andava.

— Talvez seja melhor deixar para uma próxima. — Jenny aconselhou. — E nem estamos tão perto assim de casa.

— Eu sei, mas...

— Foca na missão. —Nicholas me interrompeu. —Sem distrações familiares.

— Sem coração. – resmunguei baixinho.

— Eu ouvi. – ele falou.

Cogitei em mostrar a língua para ele, mas logo me censurei. Criancice, pensei. Conte até dez e ignore.

O salão de entrada não estava tão cheio quanto das últimas vezes que eu havia entrado lá. Alguns funcionários trabalhavam na limpeza, outros engravatados andavam apressados falando no celular. De turistas havia apenas um casal de idosos e uma família de gordinhos ruivos. A mãe não conseguia dar dois passos sem parar os quatro filhos para tirar uma foto.

Jenny me guiou até o balcão do porteiro. Nicholas percebeu que seu tênis estava desamarrado e parou no meio do caminho para amarra-lo.

O porteiro daquele turno era um quarentão com barriga de chopp. Ele lia o jornal, desinteressado com qualquer coisa a sua volta. Seu rádio estava jogado em cima do balcão, ligado. Varias vozes se intercalavam e chamavam pelo porteiro, que, pelo jeito, atendia pelo nome de Hank.

Jenny deu algumas batidinhas no balcão.

– Por favor, nós temos uma audiência no seiscentegésimo andar.

Hank abaixou o jornal lentamente e olhou para nós, cansado.

– Não tem esse andar, moça.

Jenny deu um sorriso falso.

– Acho que o senhor na entendeu. – ela disse como aqueles caras do suporte técnico que já estão de saco cheio do cliente. – Queremos falar com Zeus.

O porteiro coçou a grisalha barba mal feita e voltou para sua leitura.

– Não conheço nenhum Zeus. – ele disse por trás do jornal.

Olhei para Jenny como “E agora?” e ela respondeu dando ombros. Virei-me para Hank e abaixei seu jornal com delicadeza.

– Vocês de novo? – ele perguntou.

– Sim. – respondi. – Bem, veja só. Está reunião é importantíssima para nós.

– Vocês tem hora marcada?

– Hora marcada?

– Ninguém fala com Zeus sem hora marcada.

Fechei a cara e cruzei os braços, enfezada. Nick apareceu entre nós duas. Quem demora tanto tempo para amarrar o cadarço?

– Algum problema aqui, garotas? – ele perguntou.

– Ele não quer dar o cartão pra gente. – Jenny contou.

– Deixa comigo.

Ele estralou os dedos das mãos e se debruçou sobre o palcão.

– Fala, Hank! – Nick cumprimentou o porteiro.

– Sr. Johnson.

Nicholas olhou para mim e arqueou rapidamente as sobrancelhas, com um sorriso idiota na boca. Bufei. Sr. Johnson.

– Sabia que você ia se lembrar de mim! – Nick continuou. – Você é um cara legal, Hank. Estou falando sério. Mas eu não entendo qual é o problema. Por que não nos deixa passar? É claro que estão esperando pela gente lá em cima. Quer dizer, por qual outro motivo eu sairia do acampamento? Meu tio não gosta muito de visitas espontâneas, não é?

– Principalmente de pirralhos como vocês.

– Principalmente minhas! – Nick riu. – E eu também não gosto muito de ver o velho, então você pode concluir que estou aqui... a trabalho. Vamos lá. São ordens do Oráculo. Ele nos mandou pra cá.

Hank olhou para Nick, pensativo. Ele expirou fortemente e começou a revirar uma gaveta de seu balcão. De lá ele tirou um cartãozinho azul e branco e o apoiou na superfície de vidro do balcão. Nick pegou o cartão.

– Muito obrigado, cara! – ele disse ao jogar um dracma de ouro para o porteiro.

Então ele seguiu caminho em direção ao elevador, sendo seguido por Jenny e eu. Esperamos o lento elevador enquanto Jenny assoviada uma música do Bob Dylan. Eu batia o pé no ritmo da canção.

Certificamo-nos de que ninguém mais esboçava a intenção de nos acompanhar no elevador antes de entrar. Nick enfiou o cartão num orifício do painel com dezenas e dezenas de botões. O número 600 apareceu no led do painel. Ouviu-se um pling e as portas se fecharam a nossa frente.

– Vamos ver qual é o hit de hoje. – Nick disse com um meio sorriso na boca.

Não entendi de imediato o que ele quis dizer, mas Jenny começou a olhar em volta com expectativa e divertimento nos olhos. Uma música começou a soar nos alto-falantes, esta que reconheci como Stayin' Alive.

Nick deu uma risada curta e encostou a cabeça na parede cromada do elevador.

Bee Gees nem é tão ruim! – Jenny disse. – É aceitável. – ela virou-se para mim. – Quem faz essa playlist do elevador não viveu nesse século. Juro para você. As músicas são lamentáveis.

– Vocês devem vir muito para cá. – conclui.

– Eu não. Só em algumas excursões durante o solstício. Teve uma missão também.

– Para a infelicidade do meu amado tio – Nick falou –, sim, eu venho. Tudo sempre sobra pra mim nesse acampamento.

– Coitadinho do bebê. – Jenny disse com uma voz melosa e brincalhona.

– Estou falando sério! Podiam mandar minha prima, não podiam? Hailey é a filhinha do papai. Não teria que passar pela metade dos perrengues que eu passo.

– Só reclama, só reclama... – Jenny revirou os olhos.

Acompanhei ansiosa os números aumentando no led do painel. A cada andar, eu estava me afastando do mundo mortal e indo em direção a um plano totalmente elevado. Para que querer me enganar? Eu realmente estava uma pilha de nervos, como uma criança prestes a abrir seu presente na manhã de Natal.

As portas se abriram ao soar de outro pling, roubando-me o fôlego por inteiro.

Deuses, era lindo!

A nossa frente, uma plataforma de terra batida nos levava a uma ponte, que era construída a partir de pedras. Como ela se sustentava eu não sabia. Mas estava lá, e me parecia bem resistente.

Uma cadeia de montanhas se estendia um pouco antes da linha do horizonte. Grandes escadarias interligavam grandes construções que lembravam os templos da era clássica. Eu ainda estava longe demais para afirmar com certeza, contudo eu avistava lugares que me pareciam ser praças e também um tipo de anfiteatro num local mais elevado.

E na localização mais alta, entre finas nuvens, eu vi. Estava lá. Era o Olimpo. Uma gigantesca mansão que deixava as demais no chinelo. Eu podia sentir o poder que a construção emanava; ele fazia meu sangue fervilhar.

Adiantei-me sem esperar meus companheiros e andei apressadamente para frente. Ao passar pela ponte, vislumbrei o abismo sem fim que parecia estar sob a mesma. Tinha um fim. Seiscentos andares abaixo.

Nem parecia que uma das cidades mais populosas do planeta estava em plena atividade lá embaixo. Nada do mundo humano podia ser ouvido. Ao invés disso, o que chegava aos meus ouvidos era um canto de um pássaro distante e os passos de Jenny e Nicholas logo atrás de mim.

Antes de chegarmos ao pé da primeira montanha, passamos por um maravilhoso jardim. As rosas e as petúnias coloriam e davam vida ao cenário. Uma espaçosa pérgola convidava-me a sentar e relaxar um pouco em um de seus bancos postos em cima do piso de madeira. A videira que se enroscava na pérgola projetava sombras em cima das mesas de centro.

Olhei para cima, para o Monte Olimpo. Foque na missão, Sam.

Continuei andando e, por fim, cheguei ao primeiro degrau. Engoli seco, sofrendo por antecedência pela subida colossal, e segui a rota.

– Cada vez fica mais bonito. – Nick disse baixinho.

Demoramos um longo tempo até chegarmos ao nosso destino. Tentei absorver cada detalhe do lugar o caminho inteiro. Eu nunca me perdoaria se esquecesse um pedacinho sequer daquele paraíso.

Enfim chegamos.

Eu, Samantha, estava de pé em frente ao Olimpo. Chegava ser até engraçado de tão inacreditável.

A construção era feia de mármore branco e imaculado. Sinceramente, eu estava implorando por óculos de sol. O branco era mais branco que o sol ao meio-dia. Depois de mais uma considerável escadaria, colunas caneladas se erguiam, imponentes. O capitel astrágalo acima da coluna exibia desenhos entalhados.

Uma enorme porta nos aguardava mais à frente. Paramos em frente a ela e empurramos os três juntos. Entramos na residência dos deuses.

Um imenso corredor nos mostrava que caminho seguir – reto, sempre reto. Uma tapeçaria lindíssima decorava o ambiente. Isso foi feito no tear, pensei. E saber disso causou em mim uma sensação de conforto familiar. Os detalhes nas quinas nas paredes foram finalizados em marfim e ouro. As cores que reinavam eram o dourado, branco e vermelho.

Jenny e Nick andaram em direção a última porta do corredor, e eu fui, como já de costume, seguindo. Uma discussão calorosa parecia estar se desenrolando do outro lado da porta.

– Vocês se preocupam demais! – disse uma voz jovial, alegre.

– Irmão – uma voz feminina austera respondeu –, realmente temos muito para que nos preocupar. Não temos tempo para seus joguinhos fúteis. Esclareça de uma vez por todas essa situação estúpida!

– Uma deusa da sabedoria que não sabe de nada.

– Não me provoque ou eu juro que vou...

– Basta! – uma voz grave ecoou.

Dei dois passos para trás, surpresa e já com os batimentos cardíacos acelerados. Deusa da sabedoria. Ele disse deusa da sabedoria! Eu me negava a acreditar que, depois de quinze anos, eu estava prestes a ficar cara a cara com minha mãe.

Olhei para Jenny, desesperada, mas ela estava com um sorriso no rosto.

– Uma reunião familiar agradável, como sempre. – ela disse.

– Jenny. – pronunciei seu nome com a voz trêmula. – Não, Jenny. Não. Eu não quero.

Seu sorriso se desfez e ela olhou para mim.

– Você tem que fazer isso. E vai conseguir. Acredite em mim, vai ser bom.

– Não, Jenny, eu não vou! Essa mulher me largou no mundo!

– Eles sempre fazem isso. – Nick deu ombros.

E, antes mesmo que eu pudesse desistir, Nicholas abriu a porta dupla e tirou e esparadrapo de uma vez.

Ela lá estava ela. De pé, em frente aos doze tronos que formavam um U, Palas Atena olhava zangada para outro indivíduo, este que aparentava ser uns cinco anos mais velhos que nós – eu sabia que não ele não tinha, ele era um deus. Ela prendia seus cabelos loiros com um... lápis? Eu esperava os deuses vestidos de roupas de linho branco ou togas, mas minha mãe estava vestida com uma camisa e calça social, como se estivesse indo para uma reunião de negócios.

Ela direcionou seu olhar para nós e, então, quando seus olhos cinzas encontraram os meus, suas sobrancelhas se arquearam, demonstrando surpresa.

O jovem deus ao seu lado parecia estar se divertindo com a cena toda. Usava uma calça cáqui e uma blusa azul marinho, com um óculos de sol pendurado na gola. Seu cabelo cor de areia estava despenteado e seu sorriso era algo contagiante.

O terceiro personagem era um meia-idade vestido de terno. Como ele estava sentado no trono do meio, conclui que ele seria Zeus. Ele sentava com uma postura exemplar e se parecia mais agradável se seus olhos não fuzilassem com ódio mortal Nick, que estava ao meu lado.

– Aí está a resposta de seu enigma, minha adorável e linda irmã. – disse o deus mais novo, contente. – Nossas proles! E, hm, o outro.

Jenny sorriu. Ah, sim. Agora eu havia entendido tudo. Certo que era bizarro que o pai de minha melhor amiga era o maior gostoso e que parecia ser um universitário. Francamente, eu casaria com ele. Olhe o cara!

Nick deu alguns passos a frente e se ajoelhou.

– Minhas reverências. – ele disse.

Jenny e eu imitamos o gesto.

– Levantem-se. – disse Zeus. Obedecemos. – Agora, Apolo, explique porque todos nós estamos aqui.

Ele piscou para Jenny e foi andando em direção ao seu trono, estalando o dedo em ritmo compassado. Minha mãe esperou um pouco antes de fazer o mesmo. Ficou ali parada, me estudando. Eu olhava pro chão a minha frente, procurando evitar qualquer contato visual e sufocar o conflito de emoções que eu estava sentido.

– Eu previ algumas coisinhas. – Apolo começou. – Algumas coisinhas inevitáveis e desagradáveis. E é um tipo de problema que, futuramente, nós, deuses, não poderemos resolver. Logo, precisaremos de ajuda especial. Lembrei-me, então, de minha filha, Jennifer e, já com ela em meus pensamentos, senti que a garota desempenharia um importante papel neste conflito.

Jenny respirou fundo e assentiu, como se já aceitasse qualquer cargo ou responsabilidade que seu pai lhe daria.

– Mas eu sabia que Jennifer não seria a peça chave na trama. – continuou Apolo. – Esta pessoa seria, papai, a amiga de Jenny, Samantha Roberts. Essa mesma garota que se sentia coadjuvante em sua própria história, a mesma garota renegada pela mãe. Iria passar por uma existência mortal se eu não interferisse.

Coadjuvante. Renegada. Essas duas palavras me acertaram como dois socos na boca do estômago. Olhei para minha mãe, com raiva. Ela não ligou para mim, apenas lançou um olhar de censura para Apolo.

– E sinto muito por te trazer para essa vida, Samantha, mas foi uma decisão necessária. Eu enviei aqueles cães infernais até o colégio. Estava na hora de você saber quem era e de tomar posição em seu próprio destino.

– Você não tinha o direito de fazer isto, Apolo! – ralhou Atena. – A filha é minha e, se eu não a reclamei, foram por motivos próprios. Já discutimos isso anos atrás! Agora não é a hora.

– O agora passou a ser a hora. – Apolo rebateu. – Ou o depois não será tão agradável. Espero que não se importe.

– Eu me importo. – Atena disse entre os dentes.

Para minha desaprovação, notei certa semelhança entre mim e a deusa. Eu também odiava ter meus planejamentos frustrados por algo inerente a mim.

– Que seja. – o pai de Jenny deu ombros. – Sam, Jenny, Nick, ordenei ao Oráculo que viessem aqui pois vocês precisam de minha instrução e a de Atena. Eu já estava de visita marcada com Zeus para resolver alguns negócios, então achei que a ocasião seria apropriada. Irmã.

Minha mãe mudou de posição em seu trono, apoiando o cotovelo no braço do móvel e o queixo em sua mão. Ela dividiu seu olhar amedrontador entre Nicholas, Jenny e eu. Não falou por algum tempo, como se estivesse selecionando as palavras que usaria.

– Lembro-me de quando instruí Sócrates a escrever o livro. Seu potencial era descomunal; o homem era um perfeito observador e isso era um importante diferencial. Acumulando seus conhecimentos provindos da sua vasta experiência como meio-sangue e as descobertas realizadas pela sua observação, Sócrates tinha armazenado em sua cabeça um verdadeiro tesouro. Armas não vencem guerras, tampouco o número de soldados. O conhecimento vence. E aquele conhecimento necessitava ser transmitido plenamente para as futuras gerações semideusas. A língua fala o que ela quer, muda o que lhe for agradável; a escrita é perpétua.

“Em uma visita conversei com ele, que aceitou o cargo. O livro permaneceu em mãos confiáveis, a grande maioria sendo meus filhos, por mais quase três séculos, até quando os romanos tomaram a Grécia. Depois disso, o livro passou de mão em mão. Eu não podia deixar isso acontecer. Amaldiçoei o livro de tal modo que só o sangue de meu sangue pudesse reavê-lo. Há setenta e cinco anos, por ordens minhas, o livro foi transferido ao Talmapais por uma filha minha e depois foi trancado. Samantha, você saberá como abri-lo.”

Senti um pontada em meu peito. Ela havia falado meu nome. Ela se dirigido a minha pessoa.

Quis responde-la de modo grosseiro, jorrar para fora tudo o que estava entalado em minha garganta, mas me contive. Atena, querendo ou não, era uma deusa. Merecia respeito (ou me mataria com apenas um olhar).

– Lembrem-se de que são mais capazes do que pensam. – minha mãe prosseguiu. – Tomem consciência do que realmente significa ser um semideus. Todos vocês têm seu lado divino. Use-o. E pensem bem antes de fazer qualquer coisa. Escolhas são difíceis, mas necessárias.

– Decisões definem destinos. – Apolo enfeitou, com um sorriso. – O grande 3D. Engraçado tocar nesse assunto, irmã, pois é algo que eu sei que irá pesar muito a partir de agora. Escutem aí, vocês três. Cada um terá de fazer uma escolha importante em determinada altura. Pensem bem no que estão fazendo.

Evoquem seu deus interior. Recuperem o livro que é considerado um tesouro. Ah, e escolham o certo. Destinos estão em jogo. Sem pressão.

– Prestem atenção em Jenny. Ela verá algumas coisinhas interessantes. Sejam cuidadosos. – Apolo olhou para Nick e eu. – E tentem não se matar.

– Já que eu sou totalmente dispensável nessa reunião. – Zeus se levantou. – Tenho muitas afazeres mais importantes. Seria melhor se vocês se virassem.

Sem entender muito bem o que ele queria, obedeci. Afinal de contas, o cara ainda era o rei do Olimpo. Um clarão que iluminou a sala inteira veio juntamente com um vento forte, este que bagunçou todo meu cabelo. Jenny e Nick se viraram novamente e, quando repeti o ato, vi que Zeus se fora. Todos trataram o evento com maior naturalidade, então eu não fiz perguntas.

Apolo pôs as mãos nos bolsos da calça.

– Jenny, Nick. – chamou Apolo com sua voz cativante. – Por que não damos uma volta, sim? Fiz um haicais lindíssimos. Vocês verão o que é a verdadeira arte! – ele sorriu.

Os quatro olharam para Apolo com revolta. Jenny revirou os olhos e empurrou Nick, que saiu do portão aos protestos. Apolo foi atrás dos dois.

Eu e minha mãe nos encaramos por vários segundos, a tensão suspensa no ar. Juro que nunca havia sentido meu coração bater tão forte assim. Eu sentia no peito uma sensação calorosa e, ao mesmo tempo, sufocante.

Cerrei os punhos.

– Não pense que eu irei ouvir seu lado da história, ficar comovida, te perdoar e correr para te abraçar. – disparei. – Prefiro continuar com estava: você me ignora, eu te ignoro. Sem aborrecimentos. Agora, se a senhora me permitir, tenho uma missão para terminar.

Atena ergueu o canto da boca num quase sorriso.

– Vejo que fui mal interpretada.

A revolta tomou conta de mim. Eu estava determinada em apenas olhar para ela mais uma vez e ir embora. Mas não, depois daquilo eu quis jogar tudo pro ar. Estava na hora de falar algumas coisas que eu ensaiei durante anos.

– Mal interpretada? Eu cheguei no acampamento e vi semideuses, até irmãos com doze, treze anos. E eu? Você me esqueceu no mundo. Nem se daria ao trabalho de me reclamar se não fosse Apolo.

– Eu estava te preservando para propósitos maiores. Acredite em mim.

– Propósitos maiores. – dei uma risada seca. – Preservar. É um jeito mais elegante de dizer que me deixava como peça reserva em seu tabuleiro, mamãe? Devo te chamar assim?

Atena lançou-me um olhar severo.

– Samantha, pare de agir feito uma criança mimada. Você tem quinze anos, ponha-se no seu lugar. E não ouse duvidar de minhas intenções. Não sabe um quinto do que eu sei, não tem visão para compreender tudo.

– Está aí, mamãe. – depositei todo o escárnio que eu sentia na palavra mamãe. – Eu queria saber. Eu tinha o direito de saber. Saber quem eu sou, de quem eu sou filha de verdade, do que eu tenho que fazer. Você me negou isso tudo.

– Queria o que, Samantha? Que eu aparecesse na sua vida só pra dizer que eu não podia mais aparecer? – SIM! – Não havia necessidade disso, não no momento. Mas houve algumas alterações nos planos.

Lágrimas inundaram meus olhos. Lutei bravamente para detê-las, mas estava sendo difícil. Eu fantasiara tantas, tantas vezes meu encontro com minha mãe e tudo o que eu tinha era aquilo. A desilusão e a decepção vieram casadas, e eram piores que um tapão na cara.

– É isso o que eu sou para você? Planos? É isso o que tudo é pra você? Por que tem que ser tudo planejado, sistematizado, cronometrado? Hein? Me diz! Será que você não tem a capacidade de ser mais...

Humana.

Não, ela não tinha. Ela não era. A notícia caiu feito um balde de água fria. Senti a primeira lágrima escorrer por minha bochecha e olhei pro chão, envergonhada. Meu rosto estava quente e meus olhos ardiam.

Atena andou até mim e levantou meu rosto. Ela era mais alta que eu, então eu tinha que olhar para cima para ver dentro de seus olhos.

– Nunca vou poder ser a mãe que você quis. – ela deu uma pausa. – A mãe que você merece. Mas saiba que eu senti estive presente, só que você não viu. Eu estive sempre te observando, assim como faço com todos os meus filhos. Posso não ter um instinto maternal tão aguçado, mas eu me importo. Não se esqueça disso. Você é forte, determinada, e é uma líder nata. Eu confio em você. Sei que vai se sair bem nessa missão. É minha filha, não é? – a deusa sorriu. – Fico feliz por Apolo ter escolhido. Claro que a ideia não me agrada em nada, mas pelo menos é você. Não irá me decepcionar. Posso contar com você, não posso?

E lá vem ela de novo com esse papo de que me selecionaram para algo há muito tempo, só que isso deu errado. A curiosidade estava me irritando.

Respirei fundo.

– Pode.

– Isso é maravilhoso. Agora que foi tudo pelo ralo mesmo, tentarei ajudar você o máximo possível. Claro que vou deixar você dar seus próprios passos... Mas, é. É isso. Lembre-se de tudo o que a gente disse. É uma grande responsabilidade, mas é possível executa-la com excelência.

Mordi meus lábios, trocando o peso do corpo de um pé para o outro, o meu cérebro fazendo várias conexões ao mesmo tempo.

– Mas é só pegar o livro. – eu disse baixinho. – É um livro importante, mas é só ir lá e pegar. Por que tantas escolhas, tantas responsabilidades? – dei uma pausa antes de afirmar: – Tem algo por trás. Algo maior. É isso, não é?

Os olhos de deusa brilharam com aprovação, esse mesmo brilho que milésimos de segundos depois foi ofuscado por uma sombra de tristeza.

– Receio que sim. E não é algo que nós, deuses, podemos interferir. Nossas próprias regras são contra isso. – ela deu uma risada sem humor. – E eu ainda ajudei a escrevê-las. Mundo irônico, não?

— Demais. — eu disse num suspiro, baixinho. Olhei para a porta atrás de mim, verificando se meus amigos estavam em vista. — Tenho que acha-los. Temos que ir.

Atena expirou com força pelo nariz e varreu o local com os olhos.

— Aquele cérebro de miolo mencionou que iria declamar alguns haicais. Procure pelos jardins perto da entrada. Ele vive dizendo que aquelas flores deveriam ser a fonte de inspiração do artista interior de cada um. — ela falou a última parte carregada de sarcasmo.

— Deus da homossexualidade.

Ela olhou para mim por um curtíssimo período de tempo, séria, então não conseguiu se segurar e soltou um risinho. Tentei até sorrir, mas não consegui. A presença de minha mãe ainda não me permitia sentir confortável.

— Acho que é isso. Até o dia que a senhora quiser se manifestar. Ou quando Apolo estragar seus planos novamente.

E sem mais nem menos, dei as costas a ela. Sempre fora mais fácil desse jeito: fazer de uma vez, sem prolongar ou adiar o momento. Sem pensar. Arrancar o esparadrapo de uma vez.

Atena deixou que eu desse alguns passos antes de soltar:

— Lembre-se que uma vida sem desafios não vale a pena ser vivida.

Parei onde estava.

— Quem disse isso? — indaguei ao virar de leve o rosto para o lado.

— Sócrates. — ela respondeu. Notei algo em sua voz que não soube dizer ao certo o que era. — Só para você entrar no clima.

Meneei ligeiramente a cabeça para ela e retomei meu rumo.

Encontrei Nick e Jenny na pérgola pela qual havíamos passado anteriormente. Apolo estava no centro da construção, em frente ao banco que os dois estavam sentados. Ele gesticulava entusiasmadamente e fazia caras e bocas. Jenny curvava-se para frente, como se ficar mais perto centímetros dele ajudassem-na absorver as palavras que ele dizia. Um brilho jovial estava estampado em seus olhos. Por outro lado, Nick estava jogado no banco, completamente entediado.

Ele foi o primeiro a notar minha chegada — pulou do banco como se esperasse isso por anos. Ele olhou para mim como se dissesse “Graças aos deuses. Eu não tava aguentando mais”.

Apolo se interrompeu.

— Ah, mas nem deu para terminar de contar a história! — ele queixou.

— Não tínhamos muito que falar, na verdade.

Ele pôs as mãos nos bolsos e abriu um sorriso para mim.

— Compreendo. Bom, é minha vez de aturar sua mãe. Ainda temos alguns assuntos pendentes. Bla bla bla. — ele se virou para Jenny, esta que havia se levantado e estava indo em minha direção. — Já disse que eu odeio reuniões? Porque eu realmente odeio reuniões.

— Umas quinze vezes. — Nick murmurou.

— Ouvi isso.

Nick desviou o olhar e se encaminhou para meu lado.

Depois de se despedir da gente, Apolo partiu. Sem desaparições em clarões ou sem sair voando. Andando, como um ser normal. Na verdade, eu só diria que ele era um deus por causa de sua aura notável.

Jenny tomou a frente, andando de volta para a ponte. Acompanhei-a.

— Como foi? — ela perguntou depois de um tempo. — Você está bem?

Por algum tempo, eu realmente não soube como responder a pergunta. Fiquei quieta. Jenny respeitou meu silêncio, sabia que a resposta viria.

— Acho que sim. É que eu imaginei esse reencontro tantas vezes e...

— Não foi como você esperava ser. — Nick completou.

Lancei um olhar homicida para ele. Senti como se ele estivesse se intrometendo, invadindo um momento meu com a Jenny. Suspirei ao me dar conta de que tinha que ser assim a partir de agora. Ele estava lá e eu não podia simplesmente ignorar sua existência. Quer dizer, poder eu até poderia, mas Jenny iria me dar uns tapas.

— Ela ficou tentando se justificar. — acrescentei. — E ficou falando que confia em mim e que me escolheu. Não sei se consigo acreditar nessa baboseira toda.

— Ela não tem motivos para mentir. — Jenny argumentou.

Franzi o cenho, frustrada.

— Mas pelo jeito tem muita coisa para omitir. E eu não gostei disso. Nem um pouco.

— O que acha que está acontecendo?

— Faço a menor ideia. — admiti. — Mas algo me diz que não vamos saber nada pela boca deles. Temos que descobrir sozinhos.

— Como? — Nick perguntou.

— Vamos pegar aquele maldito livro. Pra ontem.


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